Ainda sobre 2022…

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As cores fortes de Luísa e Os Alquimistas
As cores fortes de Luísa e Os Alquimistas - foto Rudá de Melo

Seguem abaixo mais algumas mensagens na garrafa atiradas nos últimos meses ao oceano de lançamentos, por artistas da velha ou da nova guarda. O ano de 2022 foi rico em trabalhos inéditos de veteranos da MPB de 90, 80, 70, 60, 50 anos, como João Donato (Serotonina), Flora Purim (If You Will), Djavan (Luanda), Alaíde Costa (O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim), Tom Zé (Língua Brasileira), Martinho da Vila (Mistura Homogênea), Antonio Adolfo (Octet and Originals), Gilberto Gil e seu clã (Em Casa com os Gil), Laércio de Freitas (Moderno e Eterno), Dom Salvador (Samborium), Francis Hime (Inéditas – Estuário das Canções), João Bosco (Gênesis), Dori Caymmi (Canto Sedutor, com Mônica Salmaso), Antonio Carlos & Jocafi (Alto da Maravilha, com Russo Passapusso), Hyldon (Parceiros), Fagner (Naturezas, com Renato Teixeira, e Meu Parceiro Belchior), Lô Borges (Chama Viva e, em janeiro de 2023, Não Me Espere na Estação), Simone (Da Gente), Zé Ramalho (Ateu Psicodélico), Amelinha (Todo Mundo Vai Saber), Alceu Valença (Alceu Valença e Paulo Rafael, dividido postumamente com o parceiro morto em 2021, e Valencianas II), Almir Sater (Do Amanhã Nada Sei), Moacyr Luz (A Música do Músico), Luiz Tatit (Vai por Mim), Zé Miguel Wisnik (Vão)… A esses se somam, ainda, documentos históricos retirados do ineditismo, de Hermeto Pascoal (Planetário da Gávea), Ednardo (Sarau Vox 72) e Robson Jorge (o póstumo The MM Sessions 1985-1992).

Nas gerações intermediárias, o período pós-emergencial da pandemia abriu as vozes de Badi Assad (Ilha), Vitor Ramil (Avenida Angélica), Daniela Mercury (Baiana), Ivete Sangalo (Onda Boa com Ivete), Vinícius Cantuária e Zeca Baleiro (Naus), Chico César (O Canto de Macabéa ou A Hora da Estrela, com Laila Garin, e Vestido de Amor), Rita Benneditto (Rita Benedditto Convida Jaime Alem), Titãs (Olho Furta-Cor), Paulo Miklos (Do Amor Não Vai Sobrar Ninguém), Mundo Livre S/A (Walking Dead Folia), Otto (Canicule Sauvage), Silvério Pessoa (Sangue de Amor), Pedro Luís (Terral, com Yuri Queiroga), Manoel Cordeiro (Levadas de Festa, com os pupilos Kassin, Pupillo e Marlon Sette), Raça Negra (O Mundo Canta Raça Negra), Art Popular (Batuque de Magia) e Leandro Lehart (Violão É no Fundo de Quintal 2), Carlos Malta e Pife Moderno (Carlos Malta e Pife Muderno em Gil), Roberto Corrêa (Concerto para Vaca & Boi), Mawaca (De Todos os Cantos do Mundo e Nama Pariret), Edson Natale (A Egípcia e o Mecânico), Mônica Salmaso (o já citado Canto Sedutor e Milton, com André Mehmari), DJ Memê (Som Bacana!)…

Enquanto a juventude negra define as diretrizes afrofuturistas da nova música brasileira (leia aqui), as gerações mais recentes não necessariamente atreladas à música afrobrasileira abrem um leque que vai de Anitta (Versions of Me) a Zé Vaqueiro (Vem com Zé Vaqueiro), passando por Filarmônica de Pasárgada (PSSP), Johnny Hooker (Ørgia), Almério e Martins (o belo encontro Ao Vivo no Parque), Bala Desejo (Sim Sim Sim), Chico Chico (Ao Vivo na Macaco Gordo), Fernando Catatau (Fernando Catatau), Benjão (Axé), Lívia Mattos (Apneia), o FogoFera de Adriano Cintra e Tiê (Eu Te Amo), Tim Bernardes (Mil Coisas Invisíveis), Lazúli do Francisco, el Hombre (De Lua), Arthur Nogueira (Brasileiro Profundo), Jana Linhares (Tempo de Delicadeza), Bruno Morais (Poder Supremo), Wado (O Disco Mais Feliz do Mundo), Tatá Aeroplano (Não Dá pra Agarrar), João Cavalcanti (Ivone Rara), Terminal Guadalupe (Agora e Sempre), Caramelows (Viralata), Remobília (ex-Móveis Coloniais de Acaju, em Ponto Final), Mulamba (Será Só aos Ares), Maglore (V), Vanguart (Oceano Rubi), O Teatro Mágico (Luzente), Triz (Triz), Tiago Iorc (Daramô), Gloria Groove (Lady Leste), Pedro Sampaio (Chama Meu Nome), João Gomes (Acredite), Os Barões da Pisadinha (Paredão Explode e Resenha Preferida)… Abaixo, mais algumas boias que vagam pelo oceano dos streamings.

JOÃO DONATO TROCA O BARATO TOTAL PELA SEROTONINA

“Serotonina”, de João Donato, Sete Mares

João Donato, Serotonina. Aos 88 anos, o papa acreano da bossa nova João Donato esbanja saúde musical em Serotonina, uma espécie de versão orgânica das maluquices químicas mitológicas do clássico Lugar Comum, gravado em 1975 ao lado de Gilberto Gil, ambos em estado de graça, em barato total. A farra canábica setentista de “Bananeira”, por exemplo, dá lugar à placidez de “Doce de Amora”, e os mantras musicais se renovam em “Órbita“, “Azul Royal”, “Prata” e a faixa-título, única sem letra no álbum. Sempre usada com parcimônia, a voz peculiar de Donato ressurge em todas as faixas, e ele conta também com as participações vocais sedosas da forrozeira Anastácia (também co-autora de “Simbora“) e Céu (idem, em “Floriu“), além de parceiros de composição como o paraense Felipe Cordeiro (“Eu Gosto de Você”) e o carioca Rodrigo Amarante (“Estrela do Mar”). Diante de João Donato, quase se acredita que a MPB clássica, aquela inventada no intervalo entre a bossa nova e a tropicália, é criada por semideuses imorríveis.

JOYCE, PRESENTE E PASSADO

“Brasileiras Canções”, de Joyce Moreno, Biscoito Fino

Joyce Moreno, Brasileiras Canções e Natureza. Caçula da velha guarda revelada nos anos 1960, a classuda cantora e compositora carioca Joyce Moreno apresentou programa duplo mais que especial em 2022, com Brasileiras Canções, só com composições inéditas, e a retirada do baú de um trabalho mitológico por seu ineditismo, Natureza, gravado em Nova York em 1977, sob produção, arranjos e condução orquestral do maestro alemão Claus Ogerman, então egresso de trabalhos históricos com Tom Jobim (Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim, 1967, com Frank Sinatra, Matita Perê, 1973, e Urubu, 1976) e João Gilberto (Amoroso, 1977). Primeiro saiu Brasileiras Canções, pelo selo nacional Biscoito Fino, com 12 composições inéditas, inclusive parcerias com Marcos Valle (“Nas Voltas do Tempo”), Cristovão Bastos (“Quem Nunca” e “Alimento”), Moacyr Luz (“A Morte É uma Invenção”) e Tiago Torres da Silva (“Tantas Vidas”). Em “Tantas Vidas“, num dueto com Mônica Salmaso, Joyce volta às reflexões filosóficas de “Feminina” e “Essa Mulher”, ambas do ano de sua segunda eclosão, 1979: “Eu sou tantas, mas não esqueço/ que ser eu e meu avesso/ é o que me torna mulher”. Em “A Palavra Exata”, a poeta narradora declara sinais de exaustão, mas não desiste do artesanato da escrita: “Vivo ensaiando, esperando que alguém me combata o desalento, o cansaço, esse desfalecer/ (…) amanhã pode ser/ hoje não veio a palavra exata/ essa palavra exata/ mas sei que ela virá/ sem precipitação, no precipício em frente uma declaração/ que venha num repente com a precisão de uma bala de prata/ essa palavra exata”. Se “Nas Voltas do Tempo” afirma que o tempo é uma ilusão, “A Morte É uma Invenção” faz o mesmo em relação à finitude: “Se tudo vai passar somente a morte não/ amores, ideais, construção/ tudo se faz por distração/ até que a morte chegue/ e a morte é pura ilusão”. Apenas de raspão, Joyce cita nessa canção mortal o pesadelo neofascista que a flagrou mais calada a partir de 2018: “A morte de um país/ a morte dos seus sonhos/ de amigos, pais, irmãos e então/ parece tudo estranho”. Em 20 de dezembro de 2022, Joyce acrescentou a essa safra de inéditas o single tristíssimo “A Chuva sem Gal“, parceria e dueto com Marcos Valle, em alusão à morte de Gal Costa, 41 dias antes.

Produzido por Claus Ogerman, “Natureza” ficou inédito 45 anos

Finalmente resgatado pelo selo inglês Far Out após 45 anos, Natureza é dividido com Maurício Maestro, futuro integrante do grupo Boca Livre, numa formação que soma instrumentistas brasileiros (como o percussionista Naná Vasconcelos) e estadunidenses. Se não fosse arquivado, numa demonstração das agruras submetidas a mulheres que reivindicassem autonomia como compositoras nos anos 1970 (e além), Natureza teria trazido à luz “Mistérios“, de Joyce e Maurício, que Milton Nascimento tornaria imortal em 1978, no Clube da Esquina 2, e “Feminina”, enfim destinada a ser ponta de lança da breve ascensão de Joyce no circuito comercial brasileiro ao ser incluída (em gravação do Quarteto em Cy) na trilha sonora do seriado protofeminista Malu Mulher (1979), da Rede Globo. Composto por sete peças longas (principalmente “Feminina“, com 11 minutos e meio de duração), Natureza ficava indeciso entre Joyce (protagonista da instrumental “Pega Leve”, depois lançada no disco coletivo Trintade, de 1978, e de “Moreno”, tema de seu início de namoro com o baterista Tutty Moreno, só publicado em 1981) e Maurício (à frente das faixas “Coração Sonhador” e “Ciclo da Vida”). Completado pela até aqui inédita “Descompassadamente“, de Joyce e Maestro, Natureza soa inacabado, mas prenuncia em atmosfera de free jazz o suingue-samba-jazz-bossa nova de Joyce, hoje mundialmente admirado. Em 1977, a tentativa de voo livre sucumbiu, entre outras circunstâncias mais obscuras, à recusa da artista em verter as letras do álbum para o inglês, como pretendia Claus Ogerman, que nos anos 1960 e 1970 trabalhava com astros como Sammy Davis Jr., Aretha Franklin e George Benson.

O SKATE ROCK INTELIGENTE DE KAREN JONZ

“Papel de Carta”, de Karen Jonz, BMG

Karen Jonz, Papel de Carta. O single “Coocoocrazy“, parceria de Lovefoxxx, do CSS, com Karen Jonz lançou refletores a mais sobre o trabalho musical da tetracampeã mundial de skate, sacando uma fórmula de punk rock dançante de provocar suspiros de saudade do antigo Cansei de Ser Sexy. Karen lançou Papel de Carta, seu primeiro álbum, no ano passado, com produção afiada do marido, Lucas Silveira, da banda Fresno. Paulista nascida em Santos, berço do skate rock do Charlie Brown Jr., ela alça identidade própria para lá dos domínios sólidos da banda de Chorão, com um indie rock compenetrado, acrescentando aos paredões de guitarra um vocal aveludado, límpido e portador de apelos atormentados, mas sutis, sempre sob original ponto de vista feminino. É o caso de “Hiperventilando” (“como é que faz pra ter certeza que eu existo?/ se foi descaso é só me pedir que eu fico”), “Bigmuff” (“sou um trem sem direção/ esperando a colisão”), “Terapia” (“falei de nós na terapia/ logo mais vou superar”), “Tirem-Me Daqui” (“tenho um coração que já cansou de acelerar/ escrevo mil canções que eu nem sei tocar/ tantos anos e eu nunca soube respirar/ como é que eu faço pra não sufocar?”) e a climática “Exausta” (“assumir que não dou conta sempre dói/ e pensar só no pior de tudo me corrói”), que compôs quando sua filha, hoje com 7 anos, era recém-nascida. A faixa mais enérgica e divertida é “ET“, que reaparece agora no single também enérgico e divertido de “Coocoocrazy”.

Karen Jonz em “Bigmuff”

LUÍSA, OS ALQUIMISTAS E O ELIXIR DO POP PERFEITO

“Na Minha Rede”, música popular para balangar de Luísa e Os Alquimistas
“Elixir”, de Luísa e Os Alquimistas, independente

Luísa e Os Alquimistas, Elixir. Em seu quarto álbum, Elixir, a banda potiguar Luísa e Os Alquimistas depura com criatividade e vitalidade seu rock psicodélico polvilhado por ritmos populares do Nordeste, do Norte (e do mundo). Em busca do pop perfeito ao sul do Equador, a banda cria um caleidoscópio sonoro que liquidifica guitarrada, tecnobrega e tecnomelody, bregapop e bregafunk, galope, piseiro, arrocha e pagodão, carimbó, funk carioca, samba-reggae e reggaeton, electro, pop latino, k-pop, rap, manguebit… Liderados por Luísa Nascim, Os Alquimistas divertem e hipnotizam em canções gostosas como a preguiçosa “Na Minha Rede”, as praieiras-lascivas “Praia do Amor” e “Pedacinho do Céu“, as babélicas “Like a Popstar“, “Guapetona“, “Blue Gemstone”, “Open Your Window”, “Durga & Saraswati”… O êxtase fica próximo em “Boto pra Torar”, um comentário sagaz sobre o supremacismo a que o Brasil subtropical tenta submeter as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste: “Na pisadinha da patroa/ da bruxona que avoa/ não cutuca, tô de boa/ abre a roda pra eu dançar/ eu vou soltando a minha rima/ nossa voz se dissemina/ quanto mais tu subestima/ mais eu boto pra torar”.

“Boto pra Torar”, a babel musical de Luísa e Os Alquimistas

CELSO SIM, O HERÓI MAUTNER E A ANJA ELIZETH

“O Herói das Estrelas & a Anja Astronauta”, Selo Sesc

Celso Sim, O Herói das Estrelas & a Anja Astronauta. Celso Sim e João Camarero, Divina Dádiva-Dívida. Cantor, compositor e ator paulistano, Celso Sim demonstrou verve em 2022 em dois álbuns-tributos, um veio aberto por ele em 2017, quando devotou O Amor Entrou Como um Raio ao cancioneiro do sambista baiano Batatinha (1924-1997). Aparentemente díspares, O Herói das Estrelas & a Anja Astronauta, dedicado a reler parcerias de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, e Divina Dádiva-Dívida, uma homenagem à cantora Elizeth Cardoso (1920-1990), assemelham-se e se entrelaçam na manifestação de amor à música brasileira que contêm. O primeiro remonta à estreia discográfica de Celso, Pedra Bruta (1992), compartilhado com o mestre Mautner, e evolui desenvolto pelo imaginário hippie-tropicalista-existencialista-viajandão do compositor carioca hoje com 82 anos (e de Jacobina, morto em 2012). Suingue, tropicália e samba-rock frequentam releituras inspiradas como as de “O Relógio Quebrou” (única só de Mautner), “Herói das Estrelas” (1974), “Mil e Uma Noites de Bagdá” (1976), “Namoro de Bicicleta”, “Samba Japonês” (1981) e “Tataraneto do Inseto” (1985), entre outras. Reluzem as participações femininas de Lia de Itamaracá, no clássico “Maracatu Atômico” (1974), Denise Assunção, em “Labirinto” (1997), e Tulipa Ruiz , em “Herói das Estrelas”. “Lágrimas Negras” atiça a saudade de Gal Costa, que lançou a tristíssima balada em Cantar, de 1974.

“Divina Dádiva-Dívida”, de Celso Sim e João Camarero, Circus.

Fundado na voz de Celso e no violão do paulista João Camarero, Divina Dádiva-Dívida é bem mais introspectivo, mas em contraponto toma maiores liberdades com a caudalosa obra em samba-canção de Elizeth, entremeando-a com textos de Davi Kopenawa (“A Queda do Céu”), Grace Passô (“Olho da Terra”) e Oswald de Andrade (“Serafim Ponte Grande”, “Canto de Regresso à Pátria” e “Pau Brasil”), esse último fazendo ponte com a tez antropofágica de Celso em seus trabalhos no Teatro Oficina. Entre as lembranças de Elizeth, há antiguidades de Silvio Caldas e Orestes Barbosa (“Chão de Estrelas“, que ela gravou em 1957), Lamartine Babo (“Serra da Boa Esperança”, regravada em 1971 com o intérprete original, Silvio Caldas), sambas de Nelson Cavaquinho (“Luz Negra” e “A Flor e o Espinho”, do antológico LP Elizete Sobe o Morro, de 1965) e Cartola (“Autonomia”, 1978), mas também inovações (para a época de Elizeth) de Paulinho da Viola (“Minhas Madrugadas“, 1965), Caetano Veloso (“É de Manhã”, 1970), Chico Buarque e Tom Jobim (“Sabiá”, em 1969) e a dupla sambista Romildo e Toninho (“Aroeira“, 1974).

DEBOCHE E NONSENSE COM TOTÔ DE BABALONG

Totô de Babalong e Milla Zuti cantam o hit “Caipirinha de Milão”
“Contém1Drama”, de Totô de Babalong, independente

Totô de Babalong, Contém1Drama. Mistura é a tônica do som do baiano Heitor Alencar Pinto, que criou em Brasília a marca de roupas Babalong (consumida por estrelas como Iza, Anitta, Ludmilla e Pabllo Vittar) e consolidou em São Paulo a persona musical Totô de Babalong, estreia de 2022 com o álbum Contém1Drama. A debochada “Caipirinha de Milão”, com vocais de Milla Zuti, é hit discreto desde 2021, e a receita soma axé music, funk carioca, arrocha, anarquia sexual (“Femme Queen”, “Pauta Quente“, “20 Jantar”), bate-cabelo, “Bossinha”, pop de praia, algum romance e nacos de humor nonsense (“David Koma”, “Suspende as Fritas Que o Filé Chegou“).

JOÃO GORDO NO BREGAPUNK

“Brutal Brega”, de João Gordo, Wikimetal

João Gordo, Brutal Brega. Não parece existir interseção possível entre o punk rock, o metal e o hardcore, de um lado, e a música brasileira conhecida, por preconceito, como “cafona” ou “brega”, e esse é um senso comum que João Gordo, dos Ratos de Porão, se dedica a demolir no álbum Brutal Brega. São 12 temas popularíssimos do cancioneiro nacional transformados em pauleira por João, inclusive a impensável balada romântica “Não Se Vá“, sucesso com a dupla Jane & Herondy em 1977, agora em dueto amoroso de brutos apaixonados com Marisa Orth. Há hits que conquistaram o país nas vozes de Agnaldo Timóteo (“Os Verdes Campos da Minha Terra”, de 1967), Nilton Cesar (“A Namorada Que Sonhei”, 1969), Reginaldo Rossi (“Tô Doidão”, 1971), Ângelo Máximo (“Domingo Feliz“, 1972, que não perde a saltitância original na versão punk), Lindomar Castilho (“Eu Vou Rifar Meu Coração”, 1973), Sidney Magal (“Amante Latino”, 1977, “Tenho”, 1978), Carlos Alexandre (“Feiticeira”, 1978, “Ciganinha”, 1979) e Almir Rogério (“Fuscão Preto”, 1981). Um único desvio de rota sai da pista do “cafona” e adentra a música caipira, na impagável versão da impagável “Pepino” (1975), da dupla Jacó e Jacozinho. “Eu Não quero mais pepino/ nem do grosso e nem do fino/ eu sofro do intestino, Deus o livre de pepino”, esbraveja João Gordo, esquecido do romantismo desbragado predominante nas peças de Nilton Cesar, Lindomar Castilho e Jane & Herondy. Brutal Brega é um álbum de curto-circuito, e essa é sua mais deliciosa virtude.

“A Namorada Que Sonhei”, original de Nilton Cesar, com o punk João Gordo

DANILO DUNAS: CLASSE MÉDIA SOFRE

“Me Deixa Falar”, de Danilo Dunas, independente.

Danilo Dunas, Me Deixa Entrar.

Registro diverso ao de João Gordo é o de Danilo Dunas, mestre e doutor em direito penal, medicina forense e criminalística além de compositor, cantor e sanfoneiro afeiçoado a fusões entre gêneros realmente populares da música brasileira, tais como sertanejo universitário, “cafona”, “brega”, forró, pagode, piseiro, marchinha, vanerão, rock’n’roll etc. Indiretamente identificado também com as vanguardas paulistas de Premeditando o Breque e Rumo, Danilo esparrama picardia em seu quatro álbum, Me Deixa Entrar, que bole com temas, digamos, universais como horóscopo (“Puro Fogo“), micos carnavalescos (“É Ruim, mas É Bom“), ejaculação precoce (“Segura Aí“: “Na hora da cama/ você reclama do meu apogeu/ mas já acabou, garoto?, e eu?”), problemas de coluna durante o sexo (“A Serpente e o Dromedário”, que transforma o côncavo e o convexo de Roberto Carlos em rinha de escoliose versus cifose, “eu te deito de bruços/ corro o dedo em teus ossos/ e me lembro das curvas da estrada de Santos”) e pitis de Tim Maia (“Passagem de Som”).

O desmonte da binariedade das identidades sexuais é o tema explorado com maior brilho por Me Deixa Entrar, como em “Puro Fogo” (“homens são de Marte, eu sou de Áries”), “Cunhada Não É Parente” (“sempre com a cara enjoada, ela chega no almoço me chamando de cunhada/ ela reclama de tudo, o meu irmão fica mudo e eu que fico de mal educada/ cara feia para mim é fome/ mas ela terá meu sobrenome/ vai dançar com ela a valsa/ vai ser mala assim sem alça lá no inferno, mulher falsa”) e “Faz um Filho em Mim” (“hoje à noite você não escapa/ que eu já fiz as contas/ te quero sem capa/ me amando sem medo do início ao fim/ não tem papo nem boca nem bunda/ meu útero grita/ vai fundo, fecunda/ me faz mais feliz/ faz um filho em mim”).

Danilo Dunas na “Marchinha Antimotivacional”

A sátira sócio-político-ideológica, por outro lado, rende momentos mordazes como “Marchinha Antimotivacional” (“teu deus morreu, só basta acreditar/ a vida sempre pode piorar”, “por mais que te arrase/ é só uma fase/ que não vai passar nunca mais”), “Classe Média Sofre” e “Jesus Te Ama”. “Classe Média Sofre” é tributária das sátiras anti-hipster de Zeca Baleiro, com a participação vocal do próprio: “Pega o Rivotril lá na Onofre/ classe média sofre, classe média sofre”. Danilo começa com “tive uma bad no show do Radiohead/ quando você menosprezou meu poliamor/ por que você não quer gentrificar comigo/ se eu sou DJ, designer, chef e ator?”, Zeca arremata com “levei meu Mac pra estudar em um café/ cabô a carga, esqueci carregador/ tenho que por mais um artigo no meu Lattes/ não tem pilates que alivie a minha dor/ queria ver o filme do Gael na Mostra/ que fila monstra no Espaço Itaú/ chamei o uber pra comer num peruano/ me deu o cano, outra vez tomei no cu”. “Jesus Te Ama”, enfim, tenta instilar amor próprio em Jesus Cristo e bagunça o coreto falso-moralista de cristãos bolsofascistas com auxílio heavy-blues do vanguardista paulista Carlos Careqa: “Se Jesus te ama, não faça joguinho/ se você não ama deixe livre o caminho/ pra que então Jesus encontre alguém que o ame e tenha paz/ porque ter amor platônico não satisfaz”. Hahaha.

Danilo Dunas consola Cristo e Carlos Careqa faz voz de Tom Waits em “Jesus Te Ama”

O CÁUSTICO CARLOS CAREQA E A IGREJA DA SALVAÇÃO PELA GRAÇA

“Sossegue a Brasa – Teu Culto em Casa”, de Carlos Careqa

Carlos Careqa, Restos Imortais e Sossegue a Brasa – Teu Culto em Casa.

O iconoclasta catarinense-paranaense-paulistano Carlos Careqa aparece furibundo com o estado de coisas do Brasil de 2022 na música gráfica da dupla de álbuns Restos Imortais e Sossegue a Brasa – Teu Culto em Casa. No primeiro, se apoia em São Nelson Rodrigues para retratar o “cretino fundamental” brasileiro, devidamente adaptado aos anos minions. “O bom cretino também é um bom cristão” e “os grã-finos fundamentais desprezam o Brasil”, constata “Balada do Cretino Fundamental”. A zoeira careqiana satiriza caricaturas da modernidade como o exército de cupins do agrobusiness (“Rodeio e Modão – Terças e Quintas”); a tropa engajada no “Curte e Compartilha”; cyber-obsessivos “Canceladores e Cancelados”; cinéfilos compulsivos em monólogo mental (em “Filmes“, versão marota para “Feelings”, do gringo fajuto Morris Albert: “Filmes, oh, oh, oh, mais filmes/ qualquer tipo de filme/ expressionismo alemão”); e, motivo recorrente, o “cretino fundamental” enebriado pela nova arquitetura gastronômica, em “Marcha do Cooktop” (“lá em casa na cozinha é cooktop/ cooktop é bem maneiro/ se eu cozinho eu não lavo/ se eu lavo eu cozinho o dia inteiro) e “Cooktop” (“eu quero um cu que tope pra mim”). Uma provocação ferina a mais afirma que “Só os Comunistas Vão pro Céu“: “Os capitalistas vão sentir/ a foice e o martelo”.

“Balada do Cretino Fundamental”, por Carlos Careqa e o fantasma de Nelson Rodrigues

Mais mordaz, Sossegue a Brasa – Teu Culto em Casa foi concebido em parceria com o artista visual e performer paranaense Hélio Leites, idealizador da Igreja da Salvação pela Graça, cujo lema-chacota é “Deus é humor”. Menos musical que performática, a gozação corrosiva investe ferozmente contra o fundamentalismo religioso cristão, desnudando o neopentecostalismo, por sua natureza ultracapitalista neoliberal, mas principalmente o velho catolicismo, satirizado nos cáusticos discursos de retórica e sotaque latino-vaticanos (mas eventualmente estadunidenses, como em “O Vovô”).

Os sermões do pregador (“de botão”) encarnado por Careqa esbanjam chistes ácidos, como nas duas partes de “Sermão do Planalto (Eva e os Sete Adões)” (porque “não tivemos pique para subir a montanha”). Aqui, Deus forma um trisal deveras afetivo com Adão e Eva, e Adão sente a falta da “torneirinha” em Eva. Situada “à direita do Senhor” e “de caráter anarco-conservador”, a Salvação pela Graça é auto-explicativa em alguns títulos: “Cântico Oferecido“, “Plano de Saúde Unimédium“, “12º Mandamento” (pronuncia-se “dôzimo”), “Cântico do Abotoamento” e “Porque Somos contra a Masturbação“.

O “Sermão do Planalto”, em “Sossegue a Brasa – Teu Culto em Casa”
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