Fernando Catatau
Fernando Catatau - foto Jamille Queiroz

Assim se passaram 20 anos, e o jovem líder da banda cearense de rock Cidadão Instigado virou um homem grisalho, compenetrado, a um tempo sério e manso. No ano em que completa 51 anos, Fernando Catatau lança uma tardia estreia solo, batizada apenas com seu nome, em que radicaliza na sofisticação sonora e numa placidez musical apenas esboçada em certas passagens do Cidadão Instigado.

Sobre uma cama macia de sintetizadores operados pelo colega de banda Dustan Gallas, Catatau se esparrama por baladas de amor sem medo de soarem “bregas” (herança efetiva do Cidadão), como “Completamente Apaixonado” (enriquecida por vocais à la Serge Gainsbourg a cargo da jovem cantora paulistana Yma), “Raios na Imensidão” (“eu sinto uma paz/ quando você chega perto de mim/ parece que me faz reacender/ me iluminando na escuridão”), a canção de dor de cotovelo “Sinceramente” e a faixa final, “Quando o Dia Amanhecer” (com participação do mestre das guitarradas paraenses Manoel Cordeiro).

“Não Há Mais Nada a Dizer” parece mais uma balada de amor, mas transpira, desde o título, uma angústia precoce pelo fim (da vida, do mundo, da Terra, de tudo). Em “Nada Acontece”, a placidez se confunde e se mistura com estagnação, ao lado do baiano Giovani Cidreira e da paulista interiorana Juliana R. Por essas e outras participações, Fernando Catatau se ergue como um encontro do artista com seus pares nas gerações mais recentes.

Embora guie o álbum todo, o romantismo estropiado não se deixa afogar pelos fantasmas que habitam as obras do  cantor, compositor, letrista, produtor e guitarrista cearense desde o início do Cidadão Instigado, que Catatau divide até hoje com Regis Damasceno (guitarra, violão, teclado e voz), Dustan Gallas (teclado e voz), Rian Batista (baixo e voz) e Clayton Martin (bateria). Em “Os Monstros” (“os monstros estão vindo/ com suas injeções estou sentindo/ seus dentes estão rindo/ eles olham para nós, estão famintos”), a placidez é hospitalar e se resolve em piados surreais e fantasmagoria kafkiana: “O meu grito foi uma confusão/ e os monstros começaram a morrer/ seus corpos pelo chão começaram a feder/ e em outra direção eu respirei/ uma reflexão, nos fazem perceber/ que o monstro poderia ser você”. Essa canção conta com vocais da artista trans Melindra Lindra, da banda queer cearense Glamourings.

Da fornada fantasmagórica é também “Tempos Sombrios” (dividida com o ator e poeta cearense Uirá dos Reis), que fala de vários vírus – o biológico, o ético, o político – sem citá-los: “A vida aqui não tá fácil/ olhos de aço/ que tomam conta de mim”. Onipresente em Fernando Catatau e na discografia do Cidadão Instigado, a melancolia não vence no final de “Tempos Sombrios”: “E eu só seguindo em frente/ vendo ao longe a alvorada/ que acalma a minha mente/ eu sei quem sou“. “Nostalgia”, que rima com melancolia, segue a mesma linha: “A nostalgia criou cascas em meu corpo/ e com o tempo elas caem no chão/ me machucando pouco a pouco/ sutilmente me arranhando/ descrevendo a saudade em mim/ naturalmente e eu me vendo nesse corpo/ feito tatuagem”.

O momento mais corrosivo do álbum é “A Fraternidade”, grave e de dedo apontado para a elite dos vírus que enferrujam precocemente o Brasil: “A fraternidade e seus famintos/ não surpreendem mais a sociedade/ comendo alguns dedões, bebendo vinho/ em taças de cristais da Escandinávia/ fizeram um banquete pros amigos/ para comemorar a sociedade/ a real realeza e seus princípios/ escolhem seu vassalos pela carne/ eles estocavam seus escravos de manhã/ pois ao meio dia era hora de comer/ e a sociedade aplaudia sem saber/ que na realidade esperavam a tal hora de morrer”. A conclusão remete aos Secos & Molhados: “Nossos corpos estão postos na mesa/ num prato, na sala de jantar/ esperando pra se levantar”.

Repousado num cruzamento improvável entre Gainsbourg, BelchiorGiorgio MoroderDire Straits, brega nordestino e paraense e Radiohead, o álbum solo sedimenta uma história já comprida, que não se fecha no Cidadão Instigado nem no Ceará. Sempre próximo do manguebeat pernambucano, Catatau compôs com DJ DoloresKarina Buhr, IsaarFábio Trummer (da banda Eddie) e Otto, mas também com a cearense Karine Alexandrino, a mato-grossense Vanessa da Mata, o paraense Felipe Cordeiro, o carioca Kassin, os paulistas Rica AmabisCéuKiko DinucciThiago França Juçara Marçal. Tocou com Nação Zumbi, Vanessa da Mata, Los Hermanos, Céu, Otto e Karina Buhr. Cantou com Arnaldo AntunesSibaCombo Cordeiro (de Manoel e Felipe Cordeiro), Don LGuilherme Held, e Juçara Marçal (em “Lembranças Que Guardei”, do celebrado Delta Estácio Blues, de 2021). Produziu os discos Iê Iê Iê (2009), em que o paulistano Arnaldo Antunes experimentou com a jovem guarda e o brega, Avante (2012), do pernambucano Siba, e Viagem ao Coração do Sol (2018), do Cordel do Fogo Encantado, e foi um dos produtores de Roteiro para Aïnouz III (2017), do rapper brasiliense-cearense Don L.

Com o Cidadão Instigado, Catatau lançou quatro álbuns: O Ciclo da Dê.Cadência (2002), Cidadão Instigado e o Método Túfo de Experiências (2005), Uhuuu! (2009) e Fortaleza (2015). A estreia em 2002 foi áspera e rascante, com o rock desafiador “O Verdadeiro Conceito de um Preconceito” (“quando você olhar para algum corpo/ que não seja tão perfeito/ olhe direito/ pois cada olhar/ contém o seu defeito”), mas também o mantra “Lá Fora Tem…” (“lá fora tem/ um lugar que me faz bem/ e eu vou lá”). Em 2005, o brilhante O Método Túfo de Experiências foi dominado pelo amor à música dita cafona ou brega, em baladões climáticos como “Te Encontra Logo…”, “Silêncio na Multidão” e “O Tempo” e experimentos irônicos/nonsense como “Os Urubus Só Pensam em Te Comer” (“todas as vacas estão velhas/ todas as vacas estão quase lá”), o caribenho “O Pobre dos Dentes de Ouro” (“imagine/ o pobre dos dente de ouro/ qué sim, qué sim, qué sim/ um pouco de dente de ouro michelin”) e “O Pinto de Peitos” (“sim, meninos, o pinto de peitos tem/ o bico preto e o seu pio é escuro”).

Em 2009, Uhuuu! investiu em arranjos sofisticados, começando com “O Nada” (“abram as portas das suas casas/ deixem os ladrões entrarem/ eles vão tentar levar tudo que puderem”) e mantendo a crítica irônica em “Ovelhinhas“, “Deus É uma Viagem” (“olhos/ dedos/ mãos/ pés/ me mostram que Deus é uma viagem”) e “O Cabeção” (“o cabeção vai invadir o mundo/ e tomar posse de todas as coisas surreais”). O experimental Fortaleza, por fim, falou de “Besouros e Borboletas” (“olho no espelho e vejo a possibilidade pelo ar/ pois vejo besouros e borboletas voando sem se esbarrar”), de “Ficção Científica”, da cidade natal (“tão profunda é tua história que eu me refiro a ti/ como quem perdeu a hora simplesmente por não ir”) e, com amargor, de “Quando a Máscara Cai“: “existe um momento na vida/ em que todo zé doidim se depara com a realidade/ e a partir desse momento/ ele começa a se encolher/ lacrado em seu mundo ele morre de medo /de se descobrir/ e descobrir que por detrás de sua máscara/ não existe nada”.

No amadurecido Fernando Catatau, a crepuscular “Luz do Fim de Tarde” reflete sobre envelhecimento e recomeço: “Os ventos de setembro não param de soprar/ carregam sentimentos/ quem sabe eu vou voar/ outubro é o começo/ e o que eu puder lembrar/ que aos poucos envelheço/ pra recomeçar”. Enquanto evoca musicalmente o Elton John de “Goodbye Yellow Brick Road” (1973), “Luz do Fim de Tarde” sintetiza o recado do jovem senhor: “É preciso mudar”.

"Fernando Catatau" (2022)

Fernando Catatau. Estreia solo de Fernando Catatau. Independente/Tratore.

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