Tom Zé
Tom Zé, aos 85 anos, lança "Língua Brasileira" - foto Fernando Laszlo

A única letra não escrita por Tom Zé no álbum Língua Brasileira é também aquela que o representa por inteiro. O batuque eletrônico “San Pablo, San Pavlov, San Paulandia” remete imediatamente a “São São Paulo“, música com a qual o migrante nordestino baiano interiorano venceu o 4º Festival da Música Brasileira da TV Record, em 1968, mas com uma diferença primordial: o texto é assinado pelo poeta e estudioso das poéticas indígenas Douglas Diegues, nascido no Rio de Janeiro e criado nas fronteiras entre o Mato Grosso do Sul e o Paraguai. Embora escrito em mirabolante língua babélica, o poema é cristalino:

“O que seria de ti, San Pablo, e de tuas ruas mais prostis,/ de tus arrogantes edifícios, de tuo poder, de teu lixo, de tua fama?/ quem lavaria vostras casas y apês?/ quem prepararia tuo plato preferido?”, pergunta o tropicalista de Irará (BA), aos 85 anos. O fogo é o mesmo com que protestava, no documentário Fabricando Tom Zé (2006), de Décio Matos Jr., contra os maus tratos a que era submetido por técnicos europeus no Festival de Montreux na Suíça (veja aqui, a partir de 57min 40seg). O fogo é o mesmo com que denunciava no álbum Com Defeito de Fabricação – Fabrication Defect (1998) o condicionamento pavloviano aplicado a nós, brasileiros, para que nos acreditemos sub-humanos diante dos colonizadores. “O que seria de tuos bairros/ de tus supers/ de tuas villas/ de tus fabelas/ de tuos jardins/ de tuos trianons/ de tuos museos/ sem la ayuda de los otarios?”, prossegue sem meias perguntas a nova canção, para enfim chegar ao Nordeste (ao Norte, ao Centro-Oeste, ao coração da América do Sul):

“O que seria de vostras noches salbajes/ sem nosotros/ los nordestinos/ los dandys kangaceiros/ o que seria de tuos bares y restorans?/ o que seria de ti, San Pablo ou San Paulandia City/ sem nostra feiura/ sem nostra gracia/ sem nostro savoir-faire/ sem nostra capacidade de limpar imundices y servirles a full?”;

“O que seria de ti, San Pablo, San Pavlov ou San Paulandia/ sem nosotros, los nordestinos/ para vos servir manhanas y noches, tardes y nuebas manhanas?/ o que seria de ti sem nosotros/ los mais paraguaios/ los kabroboles/ los kabras de la peste?/ e quem, quem limparia vostras latrinas?”.

Outro momento explícito de Língua Brasileira, já sob autoria exclusiva de Tom Zé (como todo o restante do álbum), é a faixa de encerramento, “Os Clarins da Coragem“, que revisita o disco-manifesto tropicalista de 1968 sob diversos ângulos, desconstruindo o “descobrimento” do Brasil em palavras violentas (“calabouços”, “punhais”) e versos corrosivos: “Os clarins da coragem de nossos heróis/ quiseram criar um Brasil que até hoje não há/ liberdade ainda que tarde, porém essa tarde já tarda natais/ natais demais/ cada morro, favela no alto/ é um cadafalso/ que elege carrascos letais/ os tais”. O clamor por libertação e abolição jamais concretizadas termina com palavras em tupi, “ibirabaré”, “abacatu”. Enquanto Douglas Diegues pede justiça a nordestinos e latino-americanos, Tom Zé faz as honras a outros marginalizados (indígenas, afrobrasileiros etc.) e, mais que tudo, a nossa língua não portuguesa, mas legitimamente brasileira, povoada por Obatalá, Ñamandu, Orumilá, Irará, no pico do Jaraguá, no Olorum…

As inconfundíveis células musicais de Tom Zé dividem as glórias, desta vez, com outros fragmentos sonoros, células-palavras, células-frases, concebidas no contexto da peça teatral homônima do paranaense Felipe Hirsch (também diretor artístico do álbum), que estreou no início do ano. Polifônico e fragmentário como parece soar tudo que Tom Zé Faz, Língua Brasileira ganha unidade, ou “unimultiplicidade” (como nomeia a quarta faixa), pela soma das células todas, sob produção musical precisa e nítida de Daniel Ganjaman e Daniel Maia.

Da ópera (“A Língua Prova Que”) ao rap (“Pompeia – Piche no Muro Nu”), os corais engenhosos confirmam e reafirmam o artista tropicalista como co-autor da vanguarda paulista (ou vanguarda baiano-paulista, em seu caso migrante) do paranaense Arrigo Barnabé, do paulista interiorano Itamar Assumpção e da sul-matogrossense Tetê Espíndola. Em quase dez minutos de duração, “A Língua Prova Que” celebra os orixás afro-brasileiros em ritmo de samba-batuque-candomblé-funk-carioca, mais um interlúdio de morte e velório para um “silêncio absoluto/ prisão que veste luto”.

“Que chique piche o piche/ do chique piche o piche no muro nu”, trava línguas a canção “Pompeia Piche no Muro Nu”, versando sobre a inscrição em latim que Tom Zé admirou na histórica-mitológica-arqueológica cidade de Pompeia, na Itália. Se o piche remete à cultura hip-hop e às pichações dos jovens (descendentes de nordestinos) das periferias paulistanas, o mistério da linguagem faz a célula “namoro no muro nu” soar como idioma indígena, sob arranjo unimúltiplo do cearense Fernando Catatau.

“Hoje como fortaleza/ o negro é luz-legado/ suas mãos plantaram pátria/ no solo do passado”, plagicombina Tom Zé em “Unimultiplicidade“, fantasia em torno da palavra-célula “humanidade”. “Para criar minhas estradas/ cavalgo nas palavras/ quero arrumá-las com carinho/ para atrair as fadas”, elabora o poeta, antes de concluir, epicamente, que “cada homem é, sozinho, a casa da humanidade”.

Única composição já gravada anteriormente, “Língua Brasileira” (2003) tem participação vocal da cantora e compositora catarinense Maria Beraldo e explora a “babel das línguas em pleno cio”, em mais uma observação panorâmica sobre este chamado Brasil: “Em nossas terras continentais/ a cartomante abre o baralho/ abismada vê, entre o sim e o não,/ nosso destino ou um samba-canção”.

Não plenamente desvencilhado de algum etnocentrismo, Tom Zé dá protagonismo aos povos originários não só em “Os Clarins da Coragem”, mas também em “Hy-Brasil Terra sem Mal”, “Gênesis Guarani” (“a honra do índio foge do nosso domínio”) e na divertida “Índio Desliga Jaraguá”: “Foi aquele berra-berra/ o índio é dono da serra/ e depois/ vieram tomar a terra/ homem branco não tem lisura/ tomou a terra de volta/ e para o índio só resta sua revolta/ (…) índio pra se vingar/ desligou as torres de lá/ pra ficar tudo fora do ar/ socorro, quem nos ajuda?/ sem TV, rádio e celular/ o apelido gruda:/ São Paulo é o cu do Juda”. São Paulo é o cu do Judas: o filho adotivo, nem sempre amado ou acolhido com orgulho, belisca mais uma vez a cidade-estado construída por ele, operário-músico, junto a seus conterrâneos nordestinos.

O Nordeste retorna ao primeiro plano em “Metro Guide”, um gostoso forrobodó sertanejo cantado em portinglês. Aqui, as células-palavras dão à luz células-números, como o autor já fazia em “Identificação” (1984), na qual declamava-cantava os números de seus documentos RG, CIC, ISS, INPS, OAB, CGC… Em “Metro Guide”, Tom Zé faz um arrastão de números telefônicos dos “fire departments” de Mahattan, Bronx e Brooklyn com “os telefones úteis de Irará”, de Samu, SUS, vigilância epidemiológica, mas não do corpo dos bombeiros: “Sinto muito, lá não tem/ vá apagar seu fogo em Nova York”. O índio come o colonizador.

Reside ali possível menção cifrada ao caos bolsonarista-neofascista-neoliberal. Algo parecido acontece na suave “Clarice“, em que “carece Clarice esclarecer” a “tensa resistência” que somos forçados a exercer indígenas, afro-brasileiros, indígenas, nordestinos, mulheres, LGBTQIAP+, cartomantes, ciganos etc. etc. etc.

Se “San Pablo, San Pavlov, Sampaulandia” centraliza na capital mundial do Nordeste as críticas à violência, ao preconceito e à segregação, “Hy-Brasil Terra Sem Mal” abre Língua Brasileira universalizando o braseiro inteiro, numa aproximação além-tempos e espaços entre a “ilha maravilha” Hy-Brasil, da mitologia celta medieval, com a “terra sem mal” ameríndia (o “mito da terra sem mal que alimentou o profetismo tupi-guarani e que, ao contrário da vida eterna no céu cristão, prometia um paraíso encontrável na terra”, decifra o paulistano Zé Miguel Wisnik em texto de apresentação). Ao contrário do Brasil rebatizado pelos portugueses, Hy-Brasil era segundo a canção “uma ilha sem fuzil”, “sem ba-ba-ba-ba-ba-bala civil” (antibolsonarista, portanto), “que só aparece sete dias por ano”, cantada em vanguarda nordestino-paulista, batuque e sambão. “Nessa terra sem mal/ o índio é imortal”, idealiza o poeta.

"Língua Brasileira" (2022), de Tom Zé

Língua Brasileira. De Tom Zé. Selo Sesc.

 

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome