Nara Couto convoca as todas as mulheres de sua cor, especialmente as "retintas" para o afrofuturismo no presente: "Linda e preta" - foto Edgard Azevedo/DuoAzu

A ascensão da música orgulhosamente afrobrasileira dominou o ano de 2022 e dá indícios de que veio para ficar, o que se reflete em um florescimento admirável de novos artistas, quase sempre embebidos em estéticas ditas afrofuturistas, que celebram a identidade afrobrasileira com olhos, ouvidos e sentidos apontados para o futuro. Há quem divirja das tendências gerais e faça contraponto a elas, como a poeta e rapper pelotense B.Art, que afirma, num álbum do conterrâneo Zudizilla: “Uns falam de afrofuturismo e eu quero falar do presente/ esse espaço forjado por nós longe do nosso continente/ a minha mente quer tudo nesse instante/ não é meu o direito de não ter pressa/ então eu quero tudo hoje”.

Se não a pressa, a urgência une os anseios afrofuturistas da nova geração à caminhada de artistas mais escolados, promovendo conexões sensoriais entre as obras de nomes diversos comentados ao longo do ano passado em FAROFAFÁ, como Áurea Martins, Orquestra Rumpilezz, Ilú Obá de Min, Xenia França, Alabê Ketujazz, Leila Maria, Russo Passapusso, Luedji Luna, Tulipa Ruiz, Criolo, Doralyce, Chico César, Black Pantera, Karol Conká, Martins, Iara Rennó, Simone Mazzer, Djonga, Baco Exu do Blues, Planet Hemp, Quebrada Queer

Outros artistas poderiam/podem ser acrescentados indefinidamente à lista de 2022: Agnes Nunes (Menina Mulher), Anis de Flor (o EP Fértil), BK (Icarus), Bruno Berle (No Reino dos Afetos, editado pela inglesa Far Out), Bruno Capinan (Tara Rara), Diomedes Chinaski (os EPs Sublime e Endorfina), Gilsons (Pra Gente Acordar), Ivyson (O Outro Lado do Rio), Hodari (Hodari), Jojo Maronttini (Jojo Como Você Nunca Viu), Josyara, Kevin O Chris (Sonho de Garoto), Larissa Luz (o EP Deusa Dulov), Luccas Carlos (Jovem Carlos), Ludmilla (Numanice #2), Lukinhas (Confissões de um Tralha Romântico), Macaco Bong, Martte, MC Tha (o EP Meu Santo É Forte), N.I.N.A (Pele), Oreia (o EP Gangsta da Roça), Rashid (o barroco MRO – Movimento Rápido dos Olhos), Rico Dalasam (o EP Fim das Tentativas), Rubi (Nem Toda Pausa É Espera), Saskia (o EP Quartas)…, e os álbuns apreciados abaixo formam apenas pistas possíveis dentro de uma safra pujante que se fortaleceu nos anos de combate ao neofascismo e não dá sinais quaisquer de arrefecimento.

ANELIS, SAL E SANGUE

“Sal”, de Anelis Assumpção, Taurina

Anelis Assumpção, Sal. A capa superlativa de Sal sintetiza o ano de 2022 no que diz respeito à força do pop afrobrasileiro contemporâneo, frequentemente caracterizado como afrofuturismo. Anelis Assumpção faz a intereseção dos levantes racial e de gênero, e traz um elenco majoritariamente negro e feminino para dividir com ela uma nova leva de composições autorais, quase sempre criadas com parceiras mulheres. Assim, o afrofuturismo resplandece em Larissa Luz (na canção de entrada, “Uva Niágara“, parceria supra-regional com a sul-matogrossense Marina Peralta e a sergipana Marcelle Fonseca), Thalma de Freitas (a delicada “Manadeiro”, de Serena Assumpção, irmã de Anelis que morreu em 2016, com o produtor Pipo Pegoraro), Luedji Luna (o afrobeat “Benta”, de Anelis com Thalma de Freitas e Céu), Josyara (“Pouso de Ave Rara“, composta em dupla), Jadsa (“Empírica”, só de Anelis), Mahmundi (o reggae sexy “Rasta”, de Anelis, Mahmundi, Liniker, Tulipa Ruiz e Gustavo Ruiz) e Maíra Freitas (“Clitórias”, de Anelis e Ava Rocha). A forte “Sangue Mioma” é assinada em trio com as irmãs Espíndola Iara Rennó e Luzmarina, mais indígenas que afro, e Céu faz exceção à negritude cantando em “Violeta Blue”, de Anelis e Thalma.

Como numa pausa de circulação transcendental, a mestra de batuque de umbigada Anicide de Toledo, de Capivari, representa a tradição do samba rural paulista e divide Sal em dois, cantando “Sinhá Sereia“. A única voz masculina a dividir o microfone com Anelis é do marido nipo-paulistano Curumin, no encerramento de Sal, com “Mais Uma Volta”. Neta de “Cor de Rosa Choque” (1982), de Rita Lee, e irmã de “Sangue Mioma” (“nas vias, nas veias/ canção de sangue tingindo a lua cheia”), “Clitórias” funde as heranças de Glauber Rocha (pai de Ava) e Itamar Assumpção (patrono involuntário de todo e qualquer afrofuturismo) em clave feminina unívoca: “Que dor sangrar assim/ o tempo agora diz/ menos e mais ainda/ que a guerra e as tragédias que escorrem pelas pernas/ tingem essas pedras/ colorem outras perdas/ diluída em água e tinto/ por fim, um corpo frágil como vela/ raivosa, amante, resistente/ fraca, faminta e doente”.

A SEXY IGREJA LESBITERIANA DE BIA FERREIRA

A capa dupla de “Faminta”, de Bia Ferreira, Algo.Hits

Bia Ferreira, Faminta. Concebido como álbum duplo de 21 faixas, Faminta é trabalho de força da compositora e rapper mineira Bia Ferreira, que dá prosseguimento e profundidade ao provocativo Igreja Lesbiteriana, um Chamado, de 2019, após o interlúdio amoroso em dupla-casal com a pernambucana Doralyce. A primeira parte, batizada MSPFN (ou seja, Música Sapatão para Fazer Neném), investe em languidez rhythm’n’blues de letras rappeadas de amor e sexo, como a esfumaçada “Chama” (“ela me chama, essa chama, acende um finim”), “Faminta”, “Dois Dedim”, “Grandona” e “Eu Tava em Casa“.

“Dois Dedim”, r’n’b provocante-provocativo de Bia Ferreira

Na segunda parte, EDLIL (ou Evangelho de Libertação da Igreja Lesbiteriana), Bia renova a resposta contundente à própria origem familiar evangélica, em nova leva de temas engajados, quando não ferozes, como os que a notabilizaram inicialmente, com destaque para “Cota Não É Esmola” (2019). “Antes de ir/ que Exu vá na frente/ que ao caminhar/ Oyá me sustente/ eloquência e sabedoria/ toda vez que eu falar/ humildade pra fazer silêncio/ quando eu não acrescentar/ que eu seja instrumento da arte”, ora a rapper sobre tambores em “Antes de Ir“, traduzindo em religiosidade afro o respeito pela humanidade. A languidez dá lugar à lucidez e o ritmo dá pulso e unidade a protestos em nome dos povos indígenas e latinos (“Nós“) e dos deserdados pelo fascismo (“Mapa da Fome“: “Nós vamos retomar/ você que vai pagar”), contra o racismo (“Corre“, “Tecnologia Afrodiaspórica“, “Deixa Que Eu Conto”), a homofobia (“Doutrinação“, com a paraibana Bixarte, “união da sapatão com a travesti”) e o fascismo em si (“Necropolítica“). “Privilégio no Brasil é terminar o dia vivo/ privilégio é comer carne no país do ovo frito/ privilégio é não entrar na fila pra roer o osso”, resume Bia Ferreira em “Corre”.

“Nós”, com Bia Ferreira e Luanda

Catártico, o rap “Desejo Inevitável” prega o contragolpe (inclusive diante dos genocidas dos Yanomâmi: “O Exército sabe onde está o garimpo”), a ser aplicado cotidianamente por mulheres pretas: “Eu vou falar enquanto eu tiver vida/ pra não carregar nas minhas costas a culpa de ter sido omissa/ tem Bixarte, Preta Rara contando a realidade/ Bruna Mara, Luz Ribeiro, Kimani e Mel Duarte/ Preta Ferreira, Késia, Luciane Dom/ Janamô, Ellen Oléria e Dona Conceição/ Malunguinho da Luzia já passou o proceder/ as mulher preta preparada/ o contragolpe do paranauê/ re-to-ma-da/ desejo inevitável é fogo nos racistas/ desejo necessário: o fim da polícia/ se é pra militar, eu já to militando/ contra a polícia que é treinada pra seguir matando”. Juntos, o yin e o yang de Faminta formam um belo, altivo e coerente conjunto, um dos momentos altos de 2022.

O CHAMPIGNON DE ELLEN OLÉRIA

Ellen Oléria, Re.Trato. Excelente cantora e compositora brasiliense que venceu a primeira edição do reality show musical The Voice, em 2012, Ellen Oléria lançou dez anos depois seu quarto álbum, Re.Trato, sucessor de Peça (2009), Ellen Oléria (2013) e Afrofuturista (2016). As nove canções de autoria própria são as mais elegantes e plácidas de sua obra, e vão desde a linda e contemplativa “Olho pro Céu e Vejo Flores” (“viver é raro, a maioria das pessoas/ insiste em existir apenas/ olho pro céu e vejo flores/ olho pro céu e vejo cores mil”) até o samba-fossa feminista “Partida Alta” (“o sol não apareceu na aurora/ e quando eu decido partir você chora/ voltei pra casa, fechei as cortinas, apaguei as luzes/ é melhor dormir do que chorar”), passando pelo soul quente e matutino de “Doce Café” (“são seis horas, bom dia/ nove e meia, muito bom/ sirva-se mais, sirva-se mais/ doce café”), pela luz estradeiro de “Olho do Sol” (“caí no olho do sol/ tenho amor pra dar e vender”) e pela candura candente de “Molho Madeira”, em parceria e dueto com Bia Ferreira.

“Olho pro Céu e Vejo Flores”, de Ellen Oléria

“Tenho que ter dinâmica/ eu nem sou monogâmica/ a gente organiza a logística do meu colchão/ resistência pra manter a cadência/ da nossa dança da cadeira a noite inteira/ me dá sua mão/ me chama, você me acena/ te molho, você me atenta/ se hoje é dia de molho eu não vou de garfo/ se a carne é dura, tua preta amacia/ uma hora na pressão, depois é só botar no prato”, rima “Molho Madeira“, feminilizando o champignon e o “Nem Vem Que Não Tem” (1967) de Wilson Simonal, mas em ampla sintonia com os temas da modernidade.

NARA COUTO NÃO POUPA NA TINTA

As tintas fortes de “Retinta”, de Nara Couto
“Retinta”, de Nara Couto, Natura Musical

Nara Couto, Retinta. “Convoco todas as mulheres do meu clã/ convoco todas as nações no abrir da flor/ convoco todas as mulheres da minha cor/ eu convoco as retintas/ sim, convoco as retintas”, conclama a cantora e compositora baiana Nara Couto na faixa-título de Retinta, uma feliz parceria com Ellen Oléria. O que se segue é festa consciente, expressa de modo dolente e aliciante em “Dança“, do conterrâneo Faustino Beats. Revelado no EP Contimpurânia (2017), o livre e belo canto de Nara brilha em Retinta, trazendo consigo alguns valores musicais do inesgotável estuário baiano, como as compositoras Donna Liu (“Meu Alvo”), Yemojazz (“Ya Mi”), Nêssa e Rafa Dias, o produtor RDD (“Tempo”), Hiran (“Mar”) e Beto Wilson (“Afeto”, “Saudade”). Em “Cura”, unem-se ao clã a compositora brasiliense Marissol Mwaba e a cantora angolana Ary: “Seja o seu próprio sol”. Linda e preta, Nara Couto prossegue em “Retinta”, desnudando o grosso racismo por trás da estereotipia europeizada da beleza feminina brasileira: “Sempre fui bonita, cê que descobriu agora/ deixe de conversa, venha logo apreciar/ não poupe na tinta, Senhor do Bonfim quem dá/ olho de água salgada, pé de areia do mar”.

RACHEL REIS: PAGODÃO BAIANO, MAS COM SERENIDADE

“Meu Esquema”, de Rachel Reis, Alá/Zelo

Rachel Reis, Meu Esquema. Também baiana e malemolente é Rachel Reis, cujo álbum de estreia, Meu Esquema, se utiliza das artimanhas do pagode baiano para construir uma sonoridade sutil, amparada nas águas da mansidão, em mantras cantados por voz acetinada, do quilate de “Pelo”, “Flerte”, “Não Venha pela Metade”, “Amor sem Barreira” e do canto de sereia negra “Som“. “Que culpa tenho eu se tu é morno?”, pergunta ao lado de Céu em “Brasa“, sobre percussão que evoca os conterrâneos do Àttøxxá, mas doma as arestas do pagodão e transforma o gênero num oásis de lassidão e desaceleração (mesmo em momentos menos sutis, como “Bota Pagodão Ponto Net“). “Serenidade” é a faixa de encerramento, em formato de prece: “Eu peço pra quem me olha que me dê serenidade/ me dê serenidade/ me dê tranquilidade/ me dê paciência, eu sei/ pra ver se eu não desando/ se eu não disperso/ se eu não me passo”.

“Pelo”, com Rachel Reis

EMANCIPAÇÃO MASCULINA COM THIAGO PANTALEÃO

“Fim do Mundo”, de Thiago Pantaleão, Slap/Som Livre

Thiago Pantaleão, Fim do Mundo. Nalgum lugar entre Rico Dalasam, Quebrada Queer, a finada Banda Uó e Pabllo Vittar, Thiago Pantaleão anuncia o Fim do Mundo em sua estreia em álbum, sob produção de integrantes do coletivo Brabo Music Team, responsável pela música e pelo marketing em torno de Pabllo. Thiago avança em passos afrofuturistas desde 2020, quando lançou seu primeiro clipe, “Faz Assim”, r’n’b dolente focado na evolução sensual de um trio amoroso formado por uma mulher e dois homens pretos, ocupando ele próprio no centro do triângulo. Violentamente marginalizadas no século 20, as infinitas possibilidades afetivas e sexuais entre pessoas pretas (e, eventualmente, não-pretas) têm sido desde então a bandeira fincada pela música pop de Pantaleão, cantor, compositor e bailarino fluminense nascido em Paracambi, há 25 anos.

Hit de Fim do Mundo, “Desculpe por Eu Não Te Amar” quebrou uma sequência de singles com perfil romântico, embarcando na inconsequência baladeira à la Pabllo: “Bebê, não fique mal/ eu quero você, mas também quero todo mundo/ minha fama é de mau/ de dia eu sou dama e de noite vagabundo”. “Meu amor/ eu te quero, mas não só você/ chama aquele amiguinho pra ver/ tudo aquilo que nós faz na cama/ meu amor/ eu te quero, mas não só você/ nós três juntos tem muito a ver/ se souber dividir, geral ganha”, prossegue “Joga na Minha Cara“, propondo um ménage entre “dois cafés e um chocolá”. Sempre potencializado por grandes falsetes e rebolados, Fim do Mundo resulta num álbum de pop dançante, mas à base de sedosos vocais soul. Influenciado na infância pelas dançarinas de É o Tchan, Thiago traz a sexualidade masculina ao primeiro plano, recombinando de modo livre signos antes tidos como masculinos e/ou femininos e avançando vários passos na temida emancipação masculina.

“Fim do Mundo”, de Thiago Pantaleão

JUPI77ER E RAP PLUS SIZE CONTRA GORDOFOBIA E TRANSFOBIA

“Hoje eu não tô linda, hoje eu tô maravilhosa”, avisa Rap Plus Size em “Euforia”
“Revoada”, EP mais recente da dupla Rap Plus Size

Rap Plus Size, Revoada. Jupi77er, RG. No início era a “Quebra do Status Quo“: “Se o rap é um movimento, não me atrasa, não condena/ respeito é pra quem tem, por que não tem isso na cena?/ Juh e Issa Paz contra o machismo encapuzado que vive em cada refrão oprimindo o nosso recado”. O afronta à histórica misoginia do hip-hop (e não só dele) continua direto e reto: “O teu discurso contradiz teu refrão/ trepadeira, pombagira, vadia, quais mesmo os nomes que nos dão?/ (…) me oprime e me reprime e quer que eu cale a boca/ faz lavagem cerebral porque me quer lavando a louça”. O recado, passado em dupla com Juh Flor, consta de A Arte da Refutação (2015), primeiro álbum solo da rapper paulistana Issa Paz, que no ano seguinte assinou, ao lado de Sara Donato, o álbum Rap Plus Size, alinhando e aliando os combates à misoginia, à homofobia, ao racismo e à gordofobia. Rap Plus Size se consolidou como uma dupla (e Issa adotou o nome Jupitter, ou Jupi77er), apresentou um segundo volume chamado A Grandiosa Imersão em Busca do Novo Mundo (2019) e, em 2022, o EP Revoada.

“Olha quem vem lá/ jogando o rabetão/ o terror das patrícia padrão”, delimitam Jupi77er e Sara em “Se o Grave Bate“, em Revoada. “Hoje eu acordei me sentindo muito gostoso/ hoje eu não tô lindo, hoje eu tô maravilhoso/ hoje eu não tô linda, hoje eu tô maravilhosa/ hoje não está linde, hoje tá maravilhose”, sinaliza o Rap Plus Size em “Euforia”, abrindo caminho para o primeiro álbum de Issa como Jupi77er, RG, no qual se assume como pessoa transmasculina não-binária.

Sara Donato e Jupi77er compõem o Rap Plus Size – foto Raquel Pfutzenreuter
“RG” (2022), de Jupi77er

“Eu não nasci mulher/ não assumo todas as culpas da humanidade/ vocês jogam pra mim essa responsabilidade”, manifesta-se Jupi77er na introdução de RG, “Não Nasci Mulher“, resposta a si mesmo/a quando Issa afirmava criticamente, em “Eu Nasci” (2015), que “eu nasci mulher/ assumo todas as culpas da humanidade”. O percurso de transição de gênero aparece concreta ou abstratamente em faixas como o soul-rap “Não Vou Mais Fugir” (“não vou mais fugir, eu vivo aqui/ eu sou daqui”) e “Meu Nome” (“mundo binário azul e rosa da Damares/ eu colorindo os ares de arco-íris, brilhando Antares/ brindando Osiris, encontrando meus lugares/ que eu prefiro, me identifico/ com o poder tão simples de mudar um pronome e causar um abalo sísmico/
pra acabar com esse cinismo cis tão cínico”), um libelo contra a transfobia.

Desde o início, Jupi77er (e Sara) investe(m) em temas delicados, daqueles que a sociedade elege quase sempre varrer para debaixo do tapete, como em “Ninguém Merece” (2016), sobre estupro infantil dentro das famílias, ou “Pano Rasga” (2016), contra abusadores e seus parceiros (“protetor de fascista é fascista da mesma laia/ não adianta passar pano que o pano rasga/ protetor de pilantra é pilantra da mesma laia”). É como se estivessem expostos os mesmos nervos lancetados que os Racionais MC’s revolveram 30 anos atrás, só que sob o ponto de vista feminino – a amplitude da resposta às denúncias da Rap Plus Size diz muito sobre o estágio letárgico em que ainda vivemos.

ZUDIZILLA, A MÃE E OYÁ

“De César a Cristo – Zulu Vol. 2”, de Zudizilla

Zudizilla, De César a Cristo – Zulu Vol. 1. O rap gaúcho se diz presente com Zudizilla, que faz da angústia o motor principal de De César a Cristo – Zulu Vol. 1, sucessor do mais positivo e impositivo De Onde Eu Possa Alcançar o Céu sem Deixar o Chão – Zulu Vol. 1 (2019). “Me promete que vai contar pro meu filho que virei lenda na esquina de uma cidade onde ninguém nos vê”, pede, no rap desconsolado “Salve” o artista nascido Júlio César Corrêa Farias, em Pelotas, e radicado em São Paulo com a companheira, a cantora e compositora baiana Luedji Luna. Um tom de desencanto percorre as batidas do novo trabalho, aberto pela voz telefônica da mãe do rapper, que procura animá-lo ate que entram no ar as rimas de “Afortunado“: “Sofri demais por um tempo/ eu e meu sonho/ cheguei tão perto e vi que é pesadelo/ ter que sacrificar o que mais ama por um bem maior/ sem paciência”.

“Tela em Branco” mapeia o campo minado que acompanha os passos de um homem preto: “Perto do abismo eu sigo/ entre a coragem do fraco e o medo de tanta responsa/ mente sem trava faz com que algo me impulsione/ indecisões à parte, queimando luzes, sigo na sombra/ depressões à parte, Miles, Thelonious, Mingus e Coltrane“. Em “Tudo Agora“, a voz da poeta B.Art tece reflexões críticas sobre os rótulos que tem sido aplicados à cultura e à música preta dos anos 2020: “Uns falam de afrofuturismo e eu quero falar do presente/ esse espaço forjado por nós longe do nosso continente/ a minha mente quer tudo nesse instante/ não é meu o direito de não ter pressa/ então eu quero tudo hoje”.

Lá no início do álbum, “Afortunado” progride para a desistência. “Sobrevivi, mas não sei bem por quê/ ainda tô aqui, mas não sei por quê/ tentando sorrir, não tem por quê/ não sei fingir, o amargo vive em mim, não sei esconder/ penso talvez em devolver e assim quem sabe resolver de vez o erro que se chama Júlio/ é que a coroa já se fodeu tanto que não merece que não merece o luto/ nem eu lá no meio dos…”, lamenta o narrador, interrompendo o texto para imitar barulhos de tiros com a boca. Felizmente, De Cesar a Cristo sobrevive a “Afortunado”, e o comovente rap-prece de despedida volta à mãe, agora transfigurada em “Oyá”: “Sozinha/ eu nem sei de onde tirou força, mas minha força é tua pelas mãos de uma mãe preta solteira/ (…) olhar sincero de medo, e as questões de não saber se tava criando corretamente um homem preto/ porém, a vida dá voltas e a gente sempre soube que um dia a chuva ia parar”.

“Oya”, com Zudizilla, Eduardo Freda e Izandra Machado

ANA PRETA PÕE VOLUME NO RAP FEMININO

“Ana Preta”, Apenas Produções

Ana Preta, Ana Preta. Rapper de São Mateus, na zona leste paulistana, Ana Preta (antes Ana P.) lançou em 2022, após mais de uma década de estrada, seu álbum de estreia, autointitulado e constituído por rimas altivas e levadas dançantes. Os destaques são vários, a começar por “Volume Nesse Som”, encontro inter-geracional composto a seis mãos com as pioneiras do hip-hop feminino Ieda Hills e Rose MC. Os temas viajam do engajamento ao hedonismo sem solavancos e sempre com brilho, em “Favela”, com Funk Buia (do igualmente histórico Z’África Brasil), “Falsidade”, “Vem Curtir a Night“, com a rapper Deborah Crespo, e “Quero Quero“, essa em duas versões, uma delas com o fundador Thaíde. O recado mais revelador, com participação do MC Arnaldo Tifu, de Santo André, é o de “Meu Cabelo Pede Paz“, que expõe as microviolências sofridas por uma mulher preta em função do racismo camuflado em rejeição contra seus cabelos. “Meu cabelo é meu!”, exclama a cantora-compositora-poeta.

“Volume Nesse Som”, gravado na histórica Estação São Bento com Rose MC e Ieda Hills

DEIZE TIGRONA MESMERIZA NA ASPEREZA

Deize Tigrona, Foi Eu Que Fiz. Espécie de equivalente carioca às pioneiras do hip-hop paulista, Deize Tigrona voltou a gravar depois de longo afastamento e apresentou em 2022 o rápido e certeiro Foi Eu Que Fiz, de capa estilo Grace Jones e conteúdo em funk carioca de alta octanagem eletrônica. “Sururu das Meninas” inicia os trabalhos como um livro aberto nas páginas da sexualidade: “Suruba das meninas/ só entra dedo e língua”. “Mulher, diz pra esse macho do seu lado assim, ó: não, não vai ter, não, que hoje é só as sapatão”, reforça. Mais incisiva que nos tempos, digamos, românticos de “Injeção” (2008), Deize mesmeriza na aspereza: “Bondage” segue a pista do single “Sadomasoquista (Vem de Chicote)” (2021); “Ibiza“, produzida pela onipresente Badsista, faz férias sexuais (“amor, eu tô em Ibiza com saudade/ zoando aqui tá muito bom/ queria estar contigo/ só faz aquele vídeo/ que eu já tô sem calcinha/ chapei naquele beque do bom/ maconha com saudade não dá não/ vamos pro Skype/ que eu quero e vou tocar/ chapada na banheira, manda um vídeo, eu vou me masturbar/ bate uma punheta pra mim”); “Sobrevivente de Rave” sofre de síndrome pós-balada com a participação da banda paulistana de tecno pesado Teto Preto; e “A Mãe Tá On“, ao final, previne: “Eu não devo nada pra nenhum playboy”. Incendiária, Deize Tigrona não é para principiantes.

MC POZE DO RODO, CONSCIÊNCIA E OSTENTAÇÃO

“O Sábio”, de MC Poze do Rodo, Mainstreet

MC Poze do Rodo, O Sábio. Tratado pela mídia de modo entre folclorizante e criminalizadora, o fenômeno popular MC Poze do Rodo, funkeiro-rapper-trapper carioca da Vila Cruzeiro, apresentou em 2022 seu álbum de estreia, O Sábio, que deixa transparentes os motivos da má vontade. Sua verve é de funk-ostentação, mas excede a futilidade do gênero para o que poderíamos chamar de funk consciente, com batidas lentas e texto contundente, desde a faixa de abertura, “Talvez”: “Sempre na atividade, com a mente pensante/ no corre da vida, atrás de um qualquer/ na pista do RJ, nós segue sagaz/ sem fugir da guerra, mas querendo paz/ lá no morro, o pau quebra, o clima sempre esquenta/ as criança com medo não aguenta mais/ e se eu disser que a polícia tá matando quem acorda cinco da manhã pra trabalhar tentando ser alguém?/ e se eu disser que, na verdade, o sistema é mó covarde, vê o povo passar fome e não ajuda ninguém?/ favelado tem que juntar com favelado pra fazer acontecer porque eles nunca vai fechar com nós/ o papo é que nós incomoda e nós é pitbull de raça, pode tentar, mas vocês nunca vai calar minha voz”.

O afrofuturismo dá lugar ao presente em “Talvez”, do MC Poze do Rodo

“Talvez” continua avançando, engajadíssimo, rumo ao armamentismo neofascista: “Tá foda de manter a calma porque a bala voa e inocente tá morrendo o tempo inteiro/ parece até que liberaram as armas/ faz tempo que nós vive debaixo de tiro na Vila Cruzeiro/ (…) o galo canta, mas não canta mais no Cantagalo/ quem mandou matar Marielle até agora eu não sei”.

O Sábio escala degraus da mente pensante conforme evolui, em funks sombrios como “Tô de Pé” (capturado ainda pela misoginia), “Mundo Covarde”, “Frio e Calculista” (com o astro pernambucano do piseiro João Gomes) e assim por diante. Poze do Rodo adere à ostentação vigente não só no funk, mas na maioria dos estilos musicais de ponta, alternando solidariedade e dissipação. “Tropa do sábio fazendo dinheiro fácil/ eu se destaco, favelado milionário”, diz “Tropa do Sábio”. “Faço grana, compro ouro/ prazer, é o Poze do Rodo/ fiquei rico muito novo/ cada hit é um estouro/ BMW XC, se colar na orla de carro/ bicho favelado muito rico/ sempre soube o meu destino”, emenda “Tropa do Mantém”, com Orochi e Raffé. O arremate vem com “Não Vou Falhar“, mais consciência que ostentação: “Já errei/ mas só eu sei/ tudo que eu passei/ fui fora da lei/ mas não me culpei/ no foco eu mirei/ tudo eu conquistei/ agradeço ao rei/ olha onde eu cheguei/ fazendo a grana e família em primeiro lugar/ já sabe/ o Poze nasceu pra brilhar/ mãe escolhe/ uma casa em frente ao mar/ chega até a me dar emoção/ hoje eu tô podendo proporcionar vários momentos bom/ não vou falhar”.

RAP BAIANO RITUAL COM MARCOLA BITUCA

“Galo, a Ciência do Tambor”, de Marcola Bituca, independente.

Marcola Bituca, Galo, a Ciência do Tambor. O rap baiano vai além de onde chegou o conterrâneo Baco Exu do Blues com Marcola Bituca, que introduz os tambores do ijexá e do samba-reggae na cultura hip-hop em Galo, a Ciência do Tambor, que segue as pisadas fortes e precisas dos antecessores Yát (2019) e Os Últimos Filhos de Sião (2020). Os tambores ficam a cargo dos mestres baianos de percussão Jorjão Bafafé (Badauê, Ara Ketu), Jackson e Marçal (Olodum). Outro traço distintivo do rap de Marcola é a aceitação de formas diversas de misticismo, que aparecem em faixas como “Lágrimas a Olorum – Manifesto”, “Santa Maria”, “Pacha Mama e o Deus Sol”, “Semop II” (com referências a Eram os Deuses Astronautas? e ao Bhagavad Gītā) e os vibrantes “Sol da Meia-Noite” e “Galo”, que vão de Prometeu ao deus-galo, a Príapo e a Exu. “Salvador, onde a pele habita a alma, cada grito um novo karma/ na minhoca de metal, propaganda enganosa sobre o carnaval/ maior tecnologia é o homem e o tambor”, resume “Semop II“.

Em tempo: 2022 deu à luz, finalmente, o primeiro álbum cheio do grupo Afrocidade, Vivão, mais pop que os trabalhos dos conterrâneos Baco e Marcola, pela fusão direta que promove com reggae, ritmos caribenhos e samba-reggae, como em “Direto de Camaçacity“, “Até de Manhã”, “Lua Branca” e o protesto “Topo do Mundo” (“todo menino da favela é Deus”).

PEDRO INDIO NEGRO, PAVÃO REAL PARAIBANO

“Livrai-Nos do Mal”, do paraibano Pedro Indio Negro

Pedro Indio Negro, Livrai-Nos do Mal. A estética audaz da capa de Livrai-Nos do Mal empacota uma obra mais próxima da MPB clássica que de arroubos inovadores ou do afrofuturismo. Por trás do sonoro nome de Pedro Indio Negro, está um cantor e compositor paraibano, filho de músicos expressivos da cena local, a cantora Gláucia Lima, e Pedro Osmar, um dos fundadores, em 1974, do grupo experimental Jaguaribe Carne, influenciador de artistas como o conterrâneo Chico César. Pedro Indio Negro lança tentáculos sobre a contracultura roqueira nordestina, em faixas como “Pavão Real” (referência evidente ao “Pavão Mysteriozo” do cearense Ednardo) e “Uivo da Bruxa” (descendente do “Jogo da Asa da Bruxa” da conterrânea Cátia de França). A reflexão religiosa exibida no título do álbum afaga a matriz afrobrasileira (por exemplo em “Berço do Rio” e “Guriatã“, que cita a música ritual dos baianos Os Tincoãs) e é crítica aos fundamentalismos, como explicita “Pavão Real“: “Medo já não tenho do fogo, do chifre, da escuridão/ medo só da violência contra os meus irmãos/ meu santo guerreiro é feito de carne, de osso e de voz/ luta pela liberdade/ zela por todos nós”.

MÔA DO KATENDÊ VIVE

“Moa Vive”, tributo a Môa do Katendê, com Gerônimo, Russo Passapusso, Margareth Menezes e outros, independente.

Vários, Moa Vive. Assassinado no dia da eleição do neofascista que ocupou a presidência do Brasil nos últimos quatro anos, o compositor de ijexá e mestre de capoeira Môa do Katendê foi lembrado em setembro passado com o álbum póstumo Raiz Afro Mãe, em que surge cantando secundado pelas vozes afropop de Lazzo Matumbi, Chico César, Fabiana Cozza, GOG, BNegão, Criolo, Emicida, Rincon Sapiência, Edgar e Luedji Luna, entre outros.

Um segundo tributo, publicado em novembro, devolveu Mestre Môa ao chão natal, com um elenco formado exclusivamente por artistas baianos. Do álbum anterior, repetem-se em Moa Vive os nomes de Mateus Aleluia Filho, (que divide “Descendente de Africano” com a hoje ministra Margareth Menezes), Marcia Short (“Oxum”) e Russo Passapusso (presente em Raiz Afro Mãe com seu BaianaSystem, desta vez em “Nação Africana”). Completam o elenco vocal Roberto Mendes (“Bate a Massa”), Gerônimo (“Presente de Oxum“), Aloísio Menezes (“Me Leva Menino”) e Sued Nunes (“Omin”), além do próprio Môa em duas gravações inéditas, as aparentemente caseiras “Gina” e “Berimbau”. Mestre de afrofuturismo muito antes de o termo se espalhar pelo pop, Môa do Katendê morreu assassinado, mas seus numerosos filhotes mostram-se cada dia mais fortes e viçosos.

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