O rap do mineiro Djonga, em comparação com os padrões de protesto explícito dos correlatos cariocas do Planet Hemp em Jardineiros, aparece mais introspectivo e mais furioso em O Dono do Lugar, seu sexto álbum em cinco anos de trajetória discográfica. O núcleo inequívoco em torno do qual orbita o disco está na nona entre 12 faixas, “Cor Púrpura”. Colocando-se em terceira pessoa que migra entre as figuras do avô, do pai e do filho, o narrador vai às entranhas da condição masculina e chega a feridas e cicatrizes nunca visitadas a fundo pelo hip-hop nacional, nem pela música brasileira de modo geral.
“Querido Deus, uma pessoa me tocou sem eu querer e ainda me convenceu que eu gostava/ molhou com seu suor minha pele infantil/ e secou minhas lágrimas sempre que eu chorava”, começa “Cor Púrpura”, indo ao âmago do abuso sexual infantil masculino, tabu dentro de tabu entre tabus. “Um sorriso amarelo sempre que acabava/ e temente ao Senhor, gente que sempre louva”, continua o rap de Djonga, antes de pular da instituição família para o monopólio da(s) força(s) armada(s): “Ei, querido Deus, uma pessoa me tocou sem eu querer, usava farda, foi um tapa na cara/ 15 anos depois e ainda não sei por quê”, “foi tipo ‘entende, neguim, nem sua casa é sua casa'”.
O próximo degrau da experiência masculina violentada expõe a relação do homem adulto com o homem adulto: “Querido Deus, um homem matou um homem/ por coisas que mamãe diz que são coisas de homem/ esse foi o primeiro contato verdadeiro/ que eu tive com o que me parece ser um homem”. O ciclo se conclui com o narrador colocado diante de seu filho pequeno: “Querido Deus, acho que alguém me tocou agora”. As fraturas e o silêncio impostos pela violência masculina, do nascimento à morte, flutuam num pântano em que tudo ainda está por eclodir e se resolver. “Quando pude perceber tinha me adaptado/ (…) não curei minhas ferida, eu só escondi as marcas”, rima o rapper, consciente de que as dores e marcas estão todas à mostra.
O que “Cor Púrpura” traduz com nitidez e sensibilidade, o conjunto do álbum do jovem artista de 28 anos expele de modo menos acurado, mas sempre magoado, ressentido e irado. A misoginia aprendida aos solavancos tenta se enquadrar em nova consciência, “a diferença é que aqui em casa minha mina que fala/ você tem medo da verdade, a sua só te escuta” (“Tôbem”). Os raps de amor, irresolutos, pendem à guerra de sexos e falam de sexo casual (“Contatin”, com Vulgo FK), traições (“Em Quase Tudo”) e desencontro amoroso (“Penumbra”, em dueto/duelo com Sarah Guedes).
O rap “Conversa com uma Menina Branca” ensaia um diálogo, ou melhor, um confronto doloroso entre a misoginia e o racismo, daqueles em que todos os lados têm razão e todos os lados estão errados. “Em uma conversa com uma menina branca/ ela disse que odeia as cantada no busão/ é nojento, eles passam a mão, que não anda mais de busão/ a moça da área que foi abusada no busão/ enquanto o caso tá em apuração ainda é cobradora no busão”, delimita. “Na conversa com uma menina branca eu disse que não era sobre ela/ (…) e ela disse que preferia debater com uma mina preta/ homens pretos são violentos, quase sempre perdem a cabeça/ ouvir aquilo me machucou/ levantei a voz e senti a malícia”, continua, expondo mais uma vez o lugar ruim a que o masculino negro (ainda) costuma ser confinado nas tensões sociais. “A conversa com a mina branca acabou com ela chamando a polícia”, conclui, cancelando qualquer possibilidade de diálogo.
Nada está resolvido no rap de Djonga: ele não expressa apaziguamento nem satisfação pelos avanços que pingam em conta-gotas a partir da luta racial brasileira. Marca registrada do artista, o racismo é o tema mais presente, frenquente e contundente em O Dono do Lugar: “”Me marcam no post se veem racismo na net/ mas não fazem nada se alguém é racista na frente” (“Dom Quixote”); “quando nós tá os mano é Black Panther/ quando nós vira as costa saúdam o Führer” (“Bala Fini”); “é touca ninja e molotov se tiver racista na janela” (“Tôbem”), “”vê nossos irmão, olha o que fizeram com Nego do Borel“; “pra quem já valeu um trocado pra escravista branco/ tá bom receber uma milha pra postar um arroba” (“Até Sua Alma”, levado em trio com a dupla de gêmeas Tasha & Tracie).
“Até Sua Alma” faz a ponte com outro lado da moeda, onde está a obsessão por dinheiro e marcas de luxo, tratada frequentemente como “ostentação” desde o advento do funk paulista e hoje estacionada no universo sertanejo (cuja branquitude afasta a pecha pejorativa). “Pra quem nasceu rico é fácil falar que é ostentação”, rebate “Giz”, constatando sem orgulho que a produção de cultura negra vira “dinheiro pra racista no final”. “Ganho como rico, só que vivo como pobre/ acelero minhas Porsche só pelas ruas do bairro”, constata “Bode”, deixando subjacente a guerra racial e de classe sustentada de cima para baixo.
O incômodo com as críticas que costuma receber a esse respeito é evidente desde álbuns anteriores de Djonga (e de outros artistas do topo das paradas), mas aparece forte como nunca em Dono do Lugar: “Essas rimas que não vendem mais me deram carro/ me deram roupa/ me alimentaram” (“Dom Quixote”); “Eu tô bem/ fazendo grana e mostrando o dedo médio pra esses lixo” (“Tôbem”). “Do Menor”, dividido com Oruam, coloca na fala de um adolescente masculino a conclusão que confunde com uma confissão de sentimento de culpa, se aplicada para o rapper que ostenta e dá voz ao discurso: “Deus sabe o mal que o dinheiro faz/ por isso só dá pra gente ruim”.
Djonga, que cursou faculdade de história, se alterna em personagens diversos e evita ser específico em temas da política cotidiana, mas não é difícil entender que não é ao bloco da tal “gente ruim” que ele se filia: “Se dizem contra o aborto, mas num é pela vida nada/ depois que tu nasceu querem te matar” (“Até Sua Alma”); “o cidadão do bem é a origem do mal” (“Em Quase Tudo”). “Uns criam Marielles pra salvar o mundo/ enquanto outros se orgulham de criar Ronnie Lessa”, escracha “Em Quase Nada”, comparando a vereadora Marielle Franco com o executor de seu assassinato, um policial militar vizinho do atual presidente da República num condomínio carioca de classe alta.
Sabedor de que nada está resolvido e tudo está em disputa, Djonga oscila do gozo (“a meta é tu feliz, fazer gozar sem penetrar”, em “Contatin”) à culpa (“falhei/ falhei, falhei, falhei”, em “Giz”) e à difícil exposição de sentimentos íntimos (“chorei/ chorei, chorei, chorei”, no mesmo rap). “Não é a cabeça que roda, é o peito que dói de novo/ reproduzir padrões ruins eu aprendi de novo” chora Djonga na faixa “Em Quase Tudo”, com amargor. Subindo de degrau em degrau, a luta continua.
O Dono do Lugar. De Djonga. A Quadrilha.