Xenia França - foto Gleeson Paulino
Xenia França - foto Gleeson Paulino

A escrita e as vozes femininas negras , mais altivas a cada dia, produzem uma safra de álbuns reluzentes de Alaíde Costa (O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim), Doralyce (Dádiva), Leila Maria (Ubuntu) e Xenia França (Em Nome da Estrela) – e mais Gênesis, de João Bosco, devoto de Santa Clementina de Jesus, ao lado da Orquestra Ouro Preto.

 

"Em Nome da Estrela" (2022), de Xenia FrançaXenia França
Em Nome da Estrela, independente

A capa faz lembrar a de Dangerously in Love (2003), de Beyoncé, assim como a temática afrofuturista evoca The ArchAndroid (2010), de Janelle Monáe, mas a identidade particular da baiana Xenia França é soberana em seu segundo álbum solo, Em Nome da Estrela. Uma regravação lânguida da tropicalista “Futurível” (1969), de Gilberto Gil, e outra da atípica “Magia” (1976), do LP de estreia de cânone afro-jazz Djavan, aponta a estrela de Xenia França na direção de um futuro com jeito de presente, completado por composições autorais como “Interestelar”, “Ancestral Infinito” e “Ânimus x Anima”, essa com participação do arranjador setentista Arthur Verocai.

Repete-se a produção em trio de Xenia (2017), da artista com Lourenço Rebetez Pipo Pegoraro, esse último produtor também do álbum de estreia homônimo da ex-banda black power de Xenia, Aláfia, de 2013. Três interlúdios (outra inspiração das matrizes estadunidenses) dão ambiência ao conjunto de canções, um deles na voz de Mãe Menininha do Gantois nos anos 1940. A paulistana Luiza Lian entrega “Dádiva”, única composição (além das regravações de Gil e Djavan) que não leva a assinatura de Xenia. “Já É” registra parceria e participação do rapper paulista Rico Dalasam. A unidade final é modulada pelas interpretações cálidas e discretas de Xenia, num álbum reflexivo, de repouso e introspecção, mesmo quando sobem as batidas ora dançantes, ora afrobrasileiras, ora hipnóticas.

 

"O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim" (2022), de Alaíde CostaAlaíde Costa
O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim, Samba Rock

A longevidade de Alaíde Costa vem furando as décadas desde o LP de estreia, Gosto de Você (1959), nos braços da bossa nova, até o novo O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim, álbum de canções inéditas produzidas por um trio que transita entre o rap (Emicida), a MPB (Marcus Preto) e o manguebeat (o diretor musical Pupillo). Aos 86 anos, a cantora carioca radicada em São Paulo interpreta criações encomendadas para ela por um elenco diverso em termos geracionais e de estilo, que abarca Erasmo CarlosIvan LinsJoão Bosco (“Aos Meus Pés”, com o filho Francisco Bosco), Guilherme Arantes (“Berceuse”), Nando Reis e os irmãos Céu Diogo Poças (“Turmalina Negra”) e encontra expressão especialmente exata nos contornos femininos de Joyce Moreno Fatima Guedes (“Nenhuma Ilusão”).

Casos excepcionais são os de Erasmo, que assina “Praga” em parceria com o jovem Tim Bernardes, Ivan Lins e Joyce, que dividem as autorias de “Pessoa-Ilha” e “Aurorear”, respectivamente, com o produtor Emicida. “Tristonho”, por fim, tem letra de Nando Reis por sobre melodia da própria Alaíde, também autora bissexta de lampejos ao longo das décadas – como em “Canção do Amor Demais” (1961) e “Canção do Breve Amor” (1966), ambas em parceria com Geraldo Vandré; “Tudo o Que É Meu” (1965) e “Amigo Amado” (1973), com Vinicius de Moraes; “Tempo Calado” (1975), com Paulo Alberto Ventura; “Cadarços” (1982), com Hermínio Bello de Carvalho; “Você É Amor” (2005), parceria póstuma com Tom Jobim; “Meu Sonho” (2005, com Johnny Alf); “Banzo” (2014), com José Márcio Pereira; ou nas solitárias “Afinal” (1963), “Saída” (2005), “Qual a Palavra? e “Choro” (2014), entre outras. O título do álbum emerge de “Aurorear“, com melodia de Joyce e letra de Emicida que manda mensagem em garrafa sobre o que há de comum entre autor e intérprete, ao citar “os sonhos dos Palmares”.

 

 

"Ubuntu" (2022), de Leila MariaLeila Maria
Ubuntu, Biscoito Fino

A semente de que brota Ubuntu, da cantora carioca Leila Maria, remonta a 1981, quando Djavan lançou o álbum Seduzir e convocou Gilberto Gil a participar da faixa de encerramento, união de duas canções do angolano Filipe Mukenga, “Nvula Ieza Kia” e “Humbiumbi”, no idioma original. A ponte afro-jazzística inventada ali por Djavan ecoa em vários momentos do sexto álbum de Leila, dedicado justamente ao cancioneiro do compositor alagoano e produzido por Guilherme Kastrup. Assim, “Soweto” (1987) casa-se com “Tobina”, do congolês radicado no Rio de Janeiro Zola Star, autor também de “Bolingo Na Ngai”, que aparece enxertada em “Tanta Saudade” (1983), da parceria Djavan-Chico Buarque. Zola Star canta sua “Tobina”, a cantora moçambicana Selma Uamusse reafricaniza “Asa” (1986) e o coral angolano Vocal Kuimba secunda Leila em “Meu Bem-Querer” (1980).

Cantora virtuosa identificada com o jazz e a bossa nova, Leila Maria produz assim em Ubuntu o momento mais africanizado de sua discografia, reunificando com notável coesão fases distintas da obra de Djavan, dos afro-sambas iniciais (“Fato Consumado”, de 1975, e “Flor de Lis”, de 1976), das parcerias emepebistas com Chico e Aldir Blanc (em “Aquele Um”, de 1980), do sucesso de massa afro-jazz (“Faltando um Pedaço”, 1981, “Oceano”, 1989) ou da maturidade (“Seca”, 1996). Nessa última, a declamação de Maria Bethânia torna mais densa e dramática a composição de Djavan.

As fusões marcam o encontro de “Fato Consumado” e  “Aquele Um” numa única faixa, amalgamadas pelo “Ponto de Exu Tiriri”, em camadas africanas, afrobrasileiras e candomblecistas. O impacto maior fica por conta da abertura com “Soweto”, brasileira, pan-africana e engajada como poucos momentos da obra de Djavan: “Kinshasa, Beirute, Maranhão/ o negro que lute/ pra poder sonhar em mudar isso aqui (…)/ ninguém esperava ver/ a terra estremecer/ com o apartheid”. “O povo quer florescer e ganhar a vida”, conclui “Soweto”, embalada na voz morna de Leila Maria.

 

 

"Dádiva" (2022), de DoralyceDoralyce
Dádiva, Colmeia 22/Rumos Itaú Cultural

“A voz de uma mulher afrocentrada vai fazer revolução”, canta a pernambucana Doralyce em “Terreno Fértil“, faixa de abertura de Dádiva, seu primeiro álbum cheio, que chega na sequência dos bravos EPs Canto da Revolução (2017) e Pílula Livre (2019). Os versos de orgulho de “Terreno Fértil” vêm complementar os princípios plantados em 2017 no trap-bandeira “Miss Beleza  Universal” (“mode on hi-tech/ modelo ocidental/ magra, clara e alta, miss beleza universal/ é ditadura/ quanta opressão/ não basta ser mulher/ tem que tá dentro do padrão”), exacerbados dois anos depois em versão mais-que-direta do mesmo tema: “Se cuida, se cuida, se cuida, seu machista/ América Latina vai ser toda feminista/ (…) não basta ser mulher/ tem que tá dentro do padrão/ foda-se o padrão”.

Com participação de Chris Beats ZN e Vilãodubeat, “Terreno Fértil” se comunica com “Bíblia, Boi e Bala“, do parceiro Edgar, arremetendo a luta para além das questões ditas identitárias, pelas quais Doralyce reivindica direitos raciais, sexuais e de gênero: “Palmas pro sistema/ banqueiros, garimpeiros, a turma do agronegócio/ é bala, bíblia, bala, boi/ bala que só atinge os nossos”. Os conceitos amplos do afrofuturismo norteiam o trap-funk “Aeropurpurinada“, com participação fogosa de Preta Rara: “Aeropurpurinada, o pesadelo dos racistas/ que assistem meu sucesso e estão passando mal/ se acostume à nova ordem, estou brilhando, é natural/ (…) só cobro quem me deve e quem me deve vai pagar/ esse é meu reino e eu sou rainha, é melhor se acostumar”.

As 13 faixas incluem remixes de canções lançadas antes nos EPs (a candomblecista “Bota o Cavalo pra Correr”, de 2017, a furiosa “Para de Apontar o Dedo”, “Ladybull” e “O Boyzinho”,  de 2019) e busca refresco em algumas passagens mais leves, como na lírica “Deixa Eu Relaxar” (com Bione), em “Leve e Gostoso” ou na praieira arrocha-trap “Saborzinho de Verão”. Mas a batida feroz ribomba nos ouvidos, e mesmo a diversão não dispensa engajamento, como acontece em “Sarrada” (“sarrada de sapatão, ela é dona do caminhão”) e na despedida-saudação às divindades africanas de “Batida Salve Todes“: “A corda cede pro lado mais fraco/ pro lado de quem?/ acorda”.

 

 

"Gênesis" (2022), de João Bosco e Orquestra Sinfônica Ouro PretoJoão Bosco Orquestra Ouro Preto (maestro Rodrigo Toffolo)
Gênesis, Musickeria

A voz vibra nalguma corda bamba entre o empalidecido e o profundamente visceral, e o mineiro João Bosco volta para casa ao lado da Orquestra Ouro Preto no concerto gravado ao vivo em 2021 que resulta agora no álbum Gênesis, prometido também em edições físicas em CD e DVD. A orquestra regida pelo maestro Rodrigo Toffolo vem de experiências variadas com a música popular, como nas Valencianas (2012, lançadas em 2014) do pernambucano Alceu Valença e a Suíte Masai (2019) ao lado do rapper mineiro Flávio Renegado.

O repertório burilado por João e transcrito para orquestra pelo paulista Nelson Ayres é constituído por uma maioria de afro-sambas de gênese da parceria com o carioca Aldir Blanc, em ordem cronológica: “Bala com Bala” (1972), “O Mestre-Sala dos Mares” (1974), “De Frente pro Crime” (1974), “Kid Cavaquinho” (1974), “Corsário” (1975), “O Ronco da Cuica” (1975), “Incompatibilidade de Gênios” (1976), “O Rancho da Goiabada” (1976) e “O Bêbado e a Equilibrista” (1979). Curiosamente, a forte parceria de 1977 que dá nome a Gênesis apareceu no concerto, mas no álbum apenas introduz, sem ser creditada, o samba de fome “O Ronco da Cuíca”.

Outras parcerias estão representadas de modo mais discreto: com Capinan em “Papel Machê” (1984), com Abel Silva em “Quando o Amor Acontece” (1987), com Waly Salomão em “Memória da Pele”, com Chico Buarque em “Sinhá” (2011) e com o filho Francisco Bosco em “Perfeição” (2009) – e “Jade” (1989) surge como a única autoria solitária de Bosco no repertório. Momentos inusitados acontecem em “Bala com Bala”, que incorpora compassos do tema de abertura dos filmes da 20th Century Fox, e “O Bêbado e a Equilibrista”, com introdução e encerramento forrados pela melodia de “Smile” (1936), composta por Charlie Chaplin para o filme Tempos Modernos, aquele que coloca o clown Carlitos como operário massacrado na linha de produção industrial (de um século atrás).

Como já havia feito em 1989, Bosco abre o épico “Corsário” com os versos do poema “E Então, Que Quereis…?” (1927), do russo Vladimir Maiakóvski (1893-1930), plenamente passíveis de ser usados como bússola em 2022: “Nesses últimos 20 anos nada de novo há no rugir das tempestades/ não estamos alegres, é certo, mas por que razão haveríamos de ficar tristes?/ o mar da história é agitado/ as ameaças e as guerras, havemos de atravessá-las, rompê-las ao meio/ cortando-as como uma quilha corta as ondas”.

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