Presidente eleito, Lula anuncia as ministras Anielle Franco (Igualdade Racial), Margareth Menezes (Cultura), Cida Gonçalves (Mulheres) e Sílvio Almeida (Direitos Humanos)
Foto de Ricardo Stuckert

Tudo começou no Egito. Em 1987, o território mítico ao norte da África ganhou as ruas de Salvador, pelos braços dos percussionistas do bloco afro Olodum, que havia sido formado oito anos antes. O Carnaval do Egito idealizado pelo bloco fez popularizar o samba-reggae inaugural “Faraó (Divindade do Egito)”, que o Olodum ensaiava desde 1986, traçando paralelos entre as pirâmides egípcias e a arquitetura e a paisagem humanas do bairro do Pelourinho, no centro histórico da capital da Bahia. A chave identitária soava maluca para ouvidos desacostumados, mas era original e engenhosa: “Pelourinho, uma pequena comunidade/ que porém Olodum uniu em laços de confraternidade/ despertai-vos para a cultura egípcia no Brasil/ em vez de cabelos trançados veremos turbantes de Tutancâmon/ e as cabeças se enchem de liberdade/ e o povo negro pede igualdade deixando de lado as separações”. Liberdade, igualdade e solidariedade locomoviam a ponte África-Brasil que buscava atravessar séculos em quatro minutos e meio de canto e percussão.

Assinado por Luciano Gomes sob inspiração da descoberta carnavalesca do Olodum de que o Egito era um país predominantemente negro, com música incidental de Sérgio Participação (ambos eram integrantes do bloco), o hino carnavalesco “Faraó” ultrapassou as divisas da Bahia em 1987 ao surgir gravado no primeiro LP do Olodum e, com sucesso especial, num single do músico mestiço baiano Djalma Oliveira, que cantava lambadas e merengues anos antes de Luiz Caldas lançar a mestiçagem afropop “Fricote”(1985), uma parceria com Paulinho Camafeu, compositor negro egresso do “bloco de índio” Apaches do Tororó e do revolucionário bloco afro Ilê Aiyê. A menção racial ao Pelourinho, na gravação de Djalma, surgia fulgurante na voz grave de uma cantora chamada Margareth Menezes, que despontava ali e a partir de 1º de janeiro de 2023 será ministra da Cultura no terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva. A vocalista de “Faraó” retomará o sonho de igualdade, liberdade e confraternidade, portanto, como a primeira mulher e a primeira pessoa negra a ocupar tal cargo na história do Brasil, o país que abriga a maior população afrodescendente do planeta Terra.

“Faraó (Divindade do Egito)”, na versão de Djalma Oliveira que apresentou Margareth Menezes, em 1987

Simbolicamente, a frase-desejo-profecia “o povo negro pede igualdade deixando de lado as separações” se realiza mais uma vez na posse de Margareth no comando das políticas culturais brasileiras, mas o percurso de 1987 a 2023 foi pedregoso, e este não se trata de um final feliz, já que o país com a maior população negra fora da África parece acolher um número proporcional de racistas, como atestou de modo chocante o governo federal de corte neofascista que se despede em 31 de dezembro de 2022.

Margareth e Lula - foto Ricardo Stuckert
Luiz Inácio Lula da Silva beija sua futura ministra da Cultura

Aos olhos do Brasil de modo geral, a ministra Margareth parece dispor de um perfil artístico discreto, inclusive despertando ceticismos e muxoxos (tradicionalíssimos, em se tratando da resistência contra gestores progressistas, mulheres e negras) de setores reacionários à direita, à esquerda e ao centro. Não é o que conta a história artística de Margareth Menezes, entretanto, quando se chega mais perto de sua produção musical, iniciada com “Faraó” e alavancada a partir do sucesso (robusto na Bahia, diluído no Brasil extra-nordestino) de “Uma História de Ifá (Ejigbô)” (assinada por Ythamar Tropicália e Rey Zulu), original de outro bloco afro de Salvador, o Ara Ketu, também em 1987, e tema de abertura do LP de estreia Margareth Menezes (1988).

Era esta a tarefa inicial de Margareth, em termos musicais e militantes: difundir a musicalidade que brotava de inúmeras organizações culturais, musicais e sociais (ou seja, indiretamente políticas) que se desenvolviam a partir de bairros marginalizados de Salvador no bojo do movimento negro, desde pelo menos os anos 1940, como Filhos de Gandhi, Ilê Aiyê, Badauê, Malê Debalê, Olodum, Ara Ketu, Muzenza… Esse último, uma dissidência do Olodum (assim como o Olodum havia sido formado por dissidentes do Ilê Aiyê), também aparecia no álbum de estreia de Margareth, em faixa homônima escrita pelo baiano mestiço Edil Pacheco com o letrista carioca Paulo César Pinheiro, ex-marido de uma das primeiras difusoras (brancas) da música negra além-Rio e além-samba, a mineira Clara Nunes. O libelo racial em “Muzenza” é inequívoco: “O negro no cativeiro da terra-mãe foi embora/ andou por aí sem paradeiro, lutou como luta até agora/ pra ver se ainda encontra o seu lugar/ foi deixado pelo mundo afora/ de fora/ é por isso que o negro chora, e chora/ mas o Muzenza não vai mais chorar”.

Margareth vocalizou frequentemente os blocos afro em seu repertório, contemplando, por exemplo, o Ilê Aiyê no tema engajado e poético do carnaval de 1982 “Negrume da Noite” (1991), de Paulinho do Reco e Cuiuba: “O negrume da noite/ reluziu o dia/ é a beleza azeviche/ que a negritude criou”. A partir de 1990, quem seguiu a pista aberta por Margareth no mainstream da MPB foi Gal Costa, que passou a gravar sambas-reggae e ijexás de Olodum e Muzenza, entre outros, até ser superada pelo fenômeno axé.

“A minha pele de ébano é/ a minh’alma nua/ espalhando a luz do sol/ espelhando a luz da lua”, cantou, em 1988, em “Alegria da Cidade“, de Lazzo Matumbi (ex-Ara Ketu, ex-Olodum, depois artista solo) com o santo-amarense Jorge Portugal. “Eu sou parte de você/ mesmo que você me negue/ na beleza do afoxé/ ou no balanço no reggae/ eu sou o sol da Jamaica/ sou o som da Bahia/ eu sou você/ sou você e você não sabia”, dizia a letra, cimentando a fusão África-Caribe-Brasil que ficou batizada de samba-reggae. Retrabalhado pelo compositor negro Tote Gira, esse tema reapareceria em 1992, sob o título “O Canto da Cidade“.

“A cor dessa cidade sou eu/ o canto dessa cidade é meu”, apropriava-se então a primeira estrela feminina da chamada axé music, Daniela Mercury, ecoando em entrelinhas pouco sutis, mas desapercebidas pelos fãs não-negros, uma disputa simbólica sangrenta sobre se o canto da cidade de Salvador e a cor da Bahia pertenciam mais aos negros ou aos brancos. Hoje chamaríamos de apropriação cultural, e era mesmo, o modo como a indústria e o comércio predominantemente brancos do axé (pilotados a partir de meados dos anos 1980 por gravadoras multinacionais de origem europeia, estadunidense e japonesa) explorou as matrizes negras da música de rua da Bahia.

Margareth sempre ocupou lugar “discreto” em perspectiva com as deusas brancas do samba-reggae (ou da axé music, termo sempre rejeitado pela cantora), Daniela Mercury e Ivete Sangalo, se quisermos apelidar desigualdade racial de “discrição”. Muito simbolicamente, Daniela foi das primeiras cotadas para ocupar o Ministério da Cultura recriado por Lula, mas a decisão por Margareth assegurou para o outro polo a cor governante da Bahia, o estados brasileiro com maior proporção de habitantes negros (78,8%, segundo o IBGE) e um dos estados onde os candidatos presidenciais petistas têm recebido as proporções mais acachapantes de votos (70% para Dilma Rousseff em 2014, 72% para Lula neste ano).

Foram muitos os embates entre a Bahia preta e a não-preta no contexto da axé music, embora esse seja um tema impopular. Um caso eloquente foi vivido por Lazzo Matumbi, autor do reggae “Me Abraça e Me Beija” (gravado em 1988 em dueto negro com o patrono tropicalista Gilberto Gil), outro tema onipresente nos carnavais da Bahia, gravado por Margareth em 1991. Lazzo explicou: “Eu coloquei este título, porque não tinha nenhuma outra canção com este nome. Eu acho até que pelo fato desta música ter ganho corpo, não na minha voz, mas na voz de outros artistas, tinha uma necessidade — e aí é uma questão de estratégia política, racial, social — de abafar aquela música que fala de uma coisa que não estávamos a fim de falar. Aí surge uma música com o mesmo nome, tocada com a Banda Eva. Como a minha música era tocada de forma espontânea nas rádios, porque eu não pagava jabá, ela ficava sempre bem atrás. A outra canção foi mais massificada”. “Vem correndo, me abraça e me beija/ vem provar do meu encanto”, proclamou Lazzo, em afirmação de orgulho masculino negro, até que a Banda Eva de Ivete Sangalo lançasse “Me Abraça”, em 1995: “Me abraça e me beija/ me chama de meu amor”.

Tensões raciais à parte, numa linha paralela de militância, Margareth investiu desde sempre na religiosidade afrobrasileira, em caudalosas citações a ritos e orixás, tendência manifesta também na sonoridade percussiva assimilada nos terreiros e no candomblé de rua, exercido festivamente nos ijexás e afoxés sacro-profanos do carnaval. Essa trilha também se mostrou repleta de obstáculos, como demonstra a dificuldade inicial de Margareth para gravar naipes maciços de percussão (as programações eletrônicas de bateria e percussão dão a alguns dos primeiros discos um toque que hoje soa meio new age). Após a avalanche axé, a percussão volta a perder peso na discografia da artista, embora ela raramente abdique da abordagem que passa a denominar afropop a partir do álbum Afropopbrasileiro, de 2002.

Um exemplo grandioso da verve afro-religiosa está em “Ifá, um Canto para Subir“, dos compositores e cantores baianos pré-axé Walter Queiroz e Vevé Calasans, que ela gravou no segundo disco, Um Canto pra Subir (1990), um libelo potente, mais afinado com os ritos de candomblé na tradição do trio setentista Os Tincoãs (um deles, o genial e “recuadoMateus Aleluia, faria dueto histórico com Margareth no álbum ao vivo Brasileira – Uma Homenagem ao Samba-Reggae, de 2006): “Se é baticum de fé/ e é/ ijexá/ canto pra subir/ pra casa do Senhor/ rumpilé e agogô/ (…) é só jogar/ jogo do ifá/ é ijexá, Xangô”, trovejou Margareth, mais ouvida por quem não entendia seu idioma que por quem entendia, a partir do encontro com o músico escocês-estadunidense David Byrne, ex-líder da banda new wave Talking Heads.

Enquanto o axé em ascensão mestiçava a africanidade da música baiana, o branquíssimo Byrne descobria o som negro de Margareth, levava-a com ele em turnê mundo afora e produzia duas faixas do LP de 1990, “Ifá, um Canto pra Subir” e “Abra a Boca e Fecha os Olhos”, essa composta por outro precursor mestiço da música afro-baiana, Gerônimo (autor do hit também militante “Eu Sou Negão“, de 1986, e da beleza afro-religiosa “É d’Oxum“, de 1985). Nessas duas músicas, as programações eletrônicas do músico (não-negro) argentino radicado baiano Ramiro Musotto, dominante no LP, cede protagonismo à percussão orgânica, produzida no músculo.

Em Um Canto pra Subir, a artista gravou pela primeira vez uma canção (“Co-Brador“) de um dos percussionistas de seu primeiro LP, o futuro astro negro Carlinhos Brown, mais tarde criador do bloco afro pós-axé Timbalada e um dos mais bem-sucedidos dessa geração em fazer o crossover entre os trios elétricos e gravadoras dominados por artistas e produtores brancos de classes mais altas e o mundo percussivo negro marginalizado reverenciado por Gilberto Gil em Refavela (1977). Vigente até hoje, é provavelmente a associação musical mais duradoura da história de Margareth. Um momento alto dessa parceria é “Passe em Casa” (2002), composição birracial de Margareth, Carlinhos (pelo lado preto-baiano), o paulista Arnaldo Antunes e a carioca Marisa Monte, então empenhados no trio pós-axé e pós-MPB Tribalistas, ampliado para quarteto nessa canção afropop.

O trio Tribalistas se transforma em quarteto com a adesão de Margareth em “Passe em Casa” (2002)

Outro ponto maiúsculo da confluência Margareth-Brown é o eletrobatuque poderoso “Dandalunda“, do mesmo 2002, que ele extraiu do domínio público e ela transformou em um de seus maiores êxitos musicais, num momento em que, resistente à profanação do termo afro “axé” imposto midiaticamente à axé music, Margareth reposicionava sua música como Afropopbrasileiro. Esse foi o título do disco inovador que Margareth lançou no mesmo 2002, com produção de Carlinhos Brown e do paulistano Alê Siqueira (também co-produtor de Tribalistas). Já em 1999, Margareth expunha sua aversão ao termo “axé music”, em declaração à imprensa reproduzida no livro A Trama dos Tambores: A música afropop de Salvador, da antropóloga baiana Goli Guerreiro: “No início eu tive muita dificuldade de aceitar esse termo. Eu tinha uma birra, porque axé é uma expressão muito importante para a gente aqui na Bahia. E este termo foi usado para definir todas as músicas da Bahia. Acho que muitos de nós fazemos coisas que eu prefiro chamar de afropop”.

O lado afropop se desenvolvia desde bem antes, nas incursões de Margareth por repertório não-baiano. Em 1990, ela homenageou o “negro gato” carioca Luiz Melodia, no lindo funk baiano “Negro Menino” (de Lazzo e Gileno Félix), e regravou o reggae “Negra Melodia” (1977), do tropicalista carioca Jards Macalé (em parceria com o baiano Waly Salomão. Em Kindala (1991), declarou amor a Milton Nascimento e ao Clube da Esquina relendo “Fé Cega, Faca Amolada” (1974) e revisitou o conterrâneo Raul Seixas, em “Mosca na Sopa” (1973), num dueto hard rock nordestino com a paraibana Elba Ramalho. No CD Gente de Festa, de 1995, encarou um standard ópera-rock do Queen, “Love of My Life” (1975), de autoria do inglês (nascido em Zanzibar) Freddie Mercury. Em 2002, visitou o Ceará de Belchior, na concretista e intrincada “Do Mar, do Céu, do Campo” (1982). No CD Naturalmente (2008), releu a canção de festival “Foi Deus Quem Fez Você” (1980), do paraibano Luiz Ramalho, defendida originalmente pela cearense Amelinha, e o rock-balada “Os Cegos do Castelo”, de Nando Reis, lançado pelos Titãs em 1997.

Consciente de sua nordestinidade, a cantora tem gravado com regularidade autores como os pernambucanos Geraldo Azevedo e Lenine, o maranhense Zeca Baleiro, o paraibano Chico César. e os maranhenses Humberto do Maracanã e Jota Maranhão. Democrático, o afropop de Margareth não se restringe aos limites do Nordeste e avança pelo Tocantins de Juraildes da Cruz, o Espírito Santo de Sérgio Sampaio (“Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua”, de 1972), o Mato Grosso do Sul de Tetê Espíndola (a vencedora de festival “Escrito nas Estrelas”, de 1985), o Amazonas de Vinícius Cantuária, as Minas Gerais de Vander Lee. A consciência da Bahia negra segue firme com um elenco numeroso de autores locais de várias gerações, com Capinan, Luiz Bacalhau, Roberto Mendes, J. Velloso, Jorge Alfredo, Luiz Caldas, Djalma Oliveira, Silas Henrique, os olodunenses Roque Carvalho, Pierre Onasis, Beto Jamaica e Tonho Matéria (os dois últimos mais ligados ao samba duro celebrizado pelo grupo É o Tchan), Carlos Pita, Saul Barbosa, Nego Tenga, Miltão, Alain Tavares, Gilberto Timbaleiro, Fábio Alcântara, Peu Meurray etc. etc. etc.

Também na frente afropop se desenrola o apelo “world music” iniciado pela propulsão dada por David Byrne, que desembocou em parcerias com o cantor e compositor de calipso David Rudder, de Trinidad e Tobago (a ótima e bilíngue “Dark Secrets”, de 1990, atualmente banida das plataformas digitais), o jamaicano Jimmy Cliff, na versão bilíngue de 1991 para o “Me Abraça e Me Beija” de Lazzo, o marroquino Ahmed Soultan (a parceria trilíngue “Elegibô – Peaceful Heart“, 2019), o marroquino-senegalês Mokhtar Samba, baterista do mestre senegalês Youssou n’Dour (“Capoeira Mundial“, 2019, em dueto com o vulcão negro baiano Larissa Luz).

Margareth canta sua terna composição própria “Preciso”, lançada em “Afropopbrasileiro” (2002)

Noutra frente de pioneirismo, Margareth afrontou a muralha nunca verbalizada da composição como tarefa masculina e gravou em abundância canções próprias, prática em que foi seguida por Daniela Mercury e, com frequência menor, por Ivete Sangalo. Alguns bons momentos da compositora estão concentrados no CD Afropopbrasileiro, com a lírica “Preciso“, a candomblecista “Pelo Mar Lhe Mando Flor“, a racializada “Desperta (Preconceito de Cor)” e a irônica e camufladamente feminista e antirracista “Moderninha” (“moderninha, hein?/ só falta falar/ só falta aprender a falar”). Essa última se prestaria com justeza a servir de resposta ao queixume disfarçado de desdém de gente como o boss do cinema nacional Luiz Carlos Barreto, desde 2003 resistente à permanência negra, baiana, feminina e popular no Ministério da Cultura (leia mais aqui).

Tensões raciais à parte, o triunvirato Margareth-Daniela-Ivete exibiu harmonia e produziu encontros em trio, na versão eletrônica do samba “Cai Dentro” (2002), de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, lançado por Elis Regina em 1979, e em duo, no inspirado funk baiano-caribenho “Como Tu” (no álbum Pra Você, de 2005), com Ivete, e no eletrocandomblé feminista “Oyá por Nós” (2009), com Daniela, co-autora com Margareth, em rara parceria feminina baiana de composição.

Outro trio, com Daniela e Tatau (vocalista do Ara Ketu), produziu a regravação apoteótica do feroz “Protesto do Olodum (Lá Vou Eu)” (1988), usado no desfecho impactante do filme Ó Pai, Ó (2007), da diretora baiana Monique Gardenberg, ambientado no Pelourinho e estrelado por (grandes) atrizes e atores do grupo teatral do Olodum. “Nós somos capazes/ Pelourinho a verdade nos traz/ monumento caboclo da paz”, reza a letra auto-afirmativa de Tatau, que, a exemplo de “Faraó” e de inúmeros temas de reafirmação (racial) pan-africana dos blocos afro de Salvador, cruza Pelourinho com Moçambique, Etiópia e a luta contra o apartheid na África do Sul. Liberdade, igualdade e fraternidade, sempre embaladas por expressões em iorubá, eram e são o norte dos blocos afro baianos, mesmo quando diluídos em axé music.

O clipe de “Protesto do Olodum (Lá Vou Eu)”, com Margareth, Daniela, Tatau e cenas do filme “Ó Pai, Ó”

A diluição, a propósito, foi feroz em vários momentos. À medida em que modulou o afropop, Margareth seguiu a risca dos grupos afro que tiveram de se normatizar às indústrias carnavalesca e fonográfica, diminuindo as referências militantes a partir de meados dos anos 1990. Era o mesmo tempo em que grupos afro como Olodum e Ara Ketu se desprendiam da origem percussiva e recheavam seus álbuns com instrumentos harmônicos, segundo as convenções ultracomerciais da cultura axé. A contrarreforma contava com o ativismo de intelectuais baianos como o sociólogo e político Juca Ferreira, que, quando vereador de Salvador, agiu para instalar a chamada “CPI do racismo”, em 1999. “A CPI constatou que há uma prática sistemática nos blocos que se pretendem de elite, de excluir foliões negros, moradores de bairros populares, estudantes de colégios públicos gente que não se enquadra num certo padrão de beleza”, denunciou o futuro braço-direito de Gilberto Gil no MinC dos primeiros governo Lula e futuro ministro da Cultura de Lula e de Dilma.

Parecendo confirmar o êxito das presenças de Gil e Juca no MinC e dar consequência à hegemonia baiana na administração cultural petista, a ascensão ministerial de Margareth acontece num período em que ela tem incrementado mais uma vez o engajamento político por intermédio da música. Em anos recentes, encerrou-se (ao menos por ora) o período de vigência da axé music, que rendeu para Margareth um conjunto mais anódino de letras e até uma sinalização de adesão golpista em 2016, à época da deposição misógina da presidenta Dilma Rousseff. O álbum original mais recente da artista, Autêntica (2019), mergulhou em profundidade na música de gênero feminino, em criações próprias bordadas de valentia, como “Minha Diva, Minha Mãe“, que ensina sobre solidão e solidariedade entre mulheres negras: “Eu agradeço por ter tido uma mãe preta/ eu agradeço minha diva, minha mãe/ me ensinou a não chorar/ enfrentar ou dizer não/ o valor do meu lugar/ espantar assombração/ que ninguém é melhor que eu/ nem por grana nem por cor”.

Autêntica marca a associação de Margareth com compositoras de gerações mais jovens, em “Querera” (parceria e dueto com Nabiyah Be, filha baiana de Jimmy Cliff), na bela balada anti-romântica “Por uma Folha“, da paraibana radicada na Bahia Flávia Wenceslau, e sobretudo em “Mãe Preta“, da jovem conterrânea baiana Luedji Luna. Nessa última, a mensagem negra feminina se reforça na forma de mais um tratado sobre a solidão da mulher negra: “Mãe de toda dor/ ama que alimenta o mundo/ quem te ama, mulher?/ quem te ama?”. Da mesma estirpe é o candomblé sem orixás “LadoAlado” (2022), gravado em álbum da autora (e também conterrânea) Josyara, na mesma levada de indagações altivas em clamor por reparação negra e feminina de Luedji: “Quem sustentará o meu sofrimento?/ quem se importará com a minha dor?”.

“Quem se importará com a minha dor?”, perguntam Josyara e Margareth em nome das mulheres negras

Dueto liderado pela conterrânea Marcia Castro, o single “Arco-Íris do Amor” (2020), assinado pelos pós-tropicalistas baianos Lucas Santtana, Magary Lord e Fábio Alcântara, adentra território LGBTQIAP+ (ativismo no qual Margareth costuma ser discretíssima), em tonalidades bem fora do armário: “A novidade é que agora todo mundo tá sabendo de nós dois por mim/ resolvi falar da gente sem temer as coisas do meu coração/ é diferente, muita gente conspirando censurava o nosso amor/ (…) o arco-íris do amor/ muito brilho e muita cor/ reflete o fervo e ferve”. Na mesma direção ia antes o single “Na Água de Oxum” (2021), do rapper gay baiano Hiran, também com participação da “bixa travesty” paulista Linn da Quebrada.

“Muita gente conspirando censurava o nosso amor”, canta com Margareth a militante lésbica Marcia Castro

Dois outros singles de 2022, anteriores ao advento da Margareth Menezes ministra, são afrontosamente militantes. “Salário Digno” tem participação do trio Gilsons, de herdeiros do clã de Gilberto Gil, e da ex-funkeira infantil paulista MC Soffia, atualmente com 18 anos e rapper, também co-autora da canção: “A grande maioria do povo/ são os trabalhadores do povo/ que vivem infelizes de fato/ são mal remunerados/ (…) salário mínimo é o que recebemos/ salário digno é o que merecemos”. E “Terra Aféfé“, nova parceria Margareth-Carlinhos Brown, pisa fundo no acelerador negrofeminista, afrofuturista: “Sou mulher e dou o chão/ nas quebradas da nação/ eu que boto pra andar/ esse trem que vem do ar/ (…) o planeta é uma cópia da barriga da mulher/ (…) o universo é uma cópia da barriga da mulher”.

“A grande maioria do povo/ são os trabalhadores do povo/ que vivem infelizes de fato/ são mal remunerados”

A futura ministra já anunciou o presidente do Olodum, João Jorge, na direção da Fundação Palmares, ocupado no governo que se despede por figura racista de triste memória, conduzida ao cargo pelo titular-Malhação do ministério rebaixado a secretaria neofascista. A ascensão do movimento negro ao comando central da cultura hipertrofia a responsabilidade e a tarefa gigantesca de reconstrução do patrimônio cultural legado por Gil-Juca e bombardeado pelas gestões golpista e neofascista(s). O chamado “racismo estrutural” (ou seja, aquele praticado em massa pela sociedade não-preta, sob as bênçãos do Estado não-preto) se afobou em insinuar a incompetência de Margareth Menezes para a tarefa ainda nem iniciada. O que sabemos, neste momento, é que aquela história iniciada no Egito e nas ruas tem condições reais (e cabedal simbólico e intelectual) para produzir frutos inovadores para nossa emancipação cultural, social e racial, em Bahia, em Brasília e em Brasil.

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