Karol Conká - foto Jonathan Wolpert/divulgação
Karol Conká - foto Jonathan Wolpert/divulgação

Karol Conká escolheu um símbolo indígena para cercar de proteção seu primeiro álbum pós-Big Brother Brasil, que chega então todo pintado de vermelho e batizado com o sonoro nome Urucum. Os símbolos de africanidade somam-se ao urucum e dispersam-se pelos 31 minutos de duração, no berimbau que abre o disco em “Fuzuê“, no batuque de candomblé que introduz “Cê Não Pode“, no tribalismo de “Calma” ou no afrofuturismo de “Vejo o Bem“. A produção é de RDD, codinome de Rafael Dias, produtor do grupo baiano Àttøøxxá, que polvilha as canções com afrofuturismo e sopra ecos do animado pagodão baiano.

Diferente da estreia em 2013, com Batuk FreakUrucum não é só animação, no entanto. A passagem da artista curitibana pelo BBB 21 foi devastadora para ela, como todos sabem, mas também para o público que nesta edição 22 se penitencia (ao contrário) prestigiando um velório de bom-mocismo cujo favorito é um homem branco normativo com características tão corrosivas quanto as que derrubaram Karol Conká, mas nesse caso acobertadas por um senso profundo de manipulação e camuflagem.

A dureza de Urucum é resultado inevitável da rasteira que a realidade lhe deu dentro do programa de “realidade”, e as cicatrizes também estão por toda parte num álbum tenso, abafado, por vezes soturno, por vezes ressentido, recheado de pedidos de desculpas. Era o que se poderia esperar mesmo: música machucada criada por uma artista machucada, que ouviu o canto da sereia, tropeçou no próprio ego e tomou para si o papel implacável de bode expiatório de um saco de maldades sem limites que avacalha o Brasil desde (no mínimo) 2016. “Tombei“, dizia Karol num single de 2014 que soaria premonitório (ao contrário) se não fosse uma daquelas muitas profecias ruins destinadas a se auto-realizar automaticamente.

Se a experiência terrível serviu para alertar outras personalidades vulneráveis sobre os perigos do achincalhamento generalizado – casos de Gloria Groove em “A Queda“, de Linn da Quebrada no próprio Big Brother 22 e nem tanto da artista sertaneja Naiara Azevedo no mesmo BBB -, a Karol cabe juntar os cacos que ela estilhaçou em parceria perversa com uma “opinião pública” tão envenenada quanto seus modelos de comportamento. Ela se alterna, então, entre realçar os termos de ostentação que se colaram à música pop contemporânea e tentar apagar o passado recente falando muito sobre… o passado recente.

No primeiro caso, estão trechos de “Fuzuê” (“daqui de cima te vi”), “Cê Não Pode” (“mais uma vez tô pisando aqui/ eu sou foda, pode admitir/ tem quem vaia e quem vai aplaudir”) e “Sossego” (“só quero estar no sossego/ empilhando meu dinheiro/ viajando o mundo inteiro/ de janeiro a janeiro”). No segundo, mais complexo, oscilam bastante as letras de Karol (dez das 11 faixas são co-assinadas com RDD). Aqui e ali, ela afirma o contrário da ostentação, como em “Mal Nenhum” (lançada no ano passado em single): “Toda essa marra pra quê?”. Também trai algumas dores, talvez sem querer, em “Fuzuê” (“temperatura vai subir/ meu corpo vai explodir”), no trap orientalizado “Se Sai” (“recebemos o que damos/ cópias de quem criticamos”) ou em “Sossego” (“a gente é o que atrai”).

Às vezes a narradora de Urucum tenta se convencer a superar a rebordosa, como em “Se Sai”: “Viva do jeito que te satisfaz/ nem todos entendem a caminhada que tu faz”. Às vezes tenta se conformar com o tombo e transmitir arrependimento (e/ou culpa), por exemplo em “Se Sai’ (“quem nunca erra/ sempre tá por cima/ e quem tá por cima/ finge que não erra”), “Mal Nenhum” (“tô tentando entender/ tão difícil de entender/ tudo que fiz e farei/ cicatrizes que deixei”) ou “Cê Não Pode” (“nem sempre tenho razão/ minha realidade não exige perfeição/ respeito a sua opinião/ tudo que foi vivido não foi em vão”). Às vezes se revolta contra o apedrejamento público que recebeu em troca do BBB, em “Se Sai” (“todos falando e julgando”), “Mal Nenhum” (“não é sobre mim toda essa amargura”) ou “Subida” (“eu vejo muitos se contradizendo/ enquanto se perdem por likes/ colecionadores de dislikes/ fábrica de gerar incapaz”), outra antecipada por single em 2021. Alguns ressentimentos pulam ao pelas beiradas, como nesse último verso, em última instância apontado para os fãs (que, ao avesso, se transformam em “haters”): “Fábrica de gerar incapaz”.

Por um lado, o roteiro demarca que nunca nada foi fácil para quem compartilha com a narradora a condição de mulher preta autônoma independente, em “Se Sai” (“vivendo da minha maneira/ vá viver da sua maneira, em paz/ a rua não é brincadeira/ cuida pra não levar rasteira, se sai”) e “Mal Nenhum” (“toma cuidado, não cai nessa pira/ tô acostumada a andar na mira”). Não muitas vezes, Karol busca a afirmação em detrimento à negação, como no verso “mal nenhum vai me pegar (o jogo vira)” e em “Subida” (“vem ver como eu tô bem/ aceita que eu tô bem/ peace out, que eu vou lá/ tô pronta pra decolar/ tô na subida/ e ainda vou subir mais/ vida ensina/ atente-se aos sinais”), outro single de 2021.

Como se pode perceber, todos esses sentimentos, às vezes conflitantes uns com os outros, se misturam nas mesmas canções, o que bagunça o esforço por reabilitação. Não é difícil que o resultado soe ambíguo, como acontece em “Vejo o Bem”: “Aquele dano não existe mais/ não tem volta tudo o que passou/ vi além do que a vista alcançou”. O dano existe, e está sendo administrado. Infelizmente, a irreverência e o humor do recente single “Paredawn” (“toda cagada na casa e me achando, lado de fora povo cancelando”) ficaram de fora de Urucum.

Num só momento a necessidade de placidez cultuada no single-teste “Dilúvio” (o primeiro lançado após o BBB) se traduz em elementos explicitamente saudáveis, caso de uma das várias faixas lentas, “Calma”: “Pé na terra/ um banho de rio/ de manhã, suco de cupuaçu/ olhando o céu azul/ sinto o vento soprando/ secando o corpo nu”. Mais espremidas ficam duas características que propulsionaram a imagem anterior de Karol Conká, o espírito festivo impresso em Batuk Freak (e bem menos presente em Ambulante, de 2018, o segundo álbum vivaz, furioso e já vazado por ressentimentos) e a sexualidade exuberante e acintosamente feminista, cujo ápice até aqui aconteceu no single e clipe “Lalá“, de 2017.

O sexo e a sensualidade, mais contidos na Karol de 36 anos, pautam as faixas lentas “Slow” e “Por Inteira” e também a sexy e quase festiva “Louca e Sagaz”, com o DJ capixaba WC no Beat (único convidado ao longo das 11 faixas), bem-sucedida quando lançada em single no ano passado e anexada como última faixa de Urucum. Como Karol já está acostumada a saber, o resultado de todo o enrosco é penoso e tem sido aquele que mais agrada à sociedade conservadora, a mesma que reprime (e auto-reprime) a sexualidade preta feminina enquanto dá salvo-conduto à do favorito do programa de realidade. Urucum é um retrato instantâneo menos da Karol-Medusa da capa que do tempo fechado que o gerou.

"Urucum" (2022), de Karol Conká

UrucumDe Karol Conká. Sony.

 

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