Antonio Carlos, Russo Passapusso e Jocafi - foto Filipe Cartaxo
Antonio Carlos, Russo Passapusso e Jocafi - foto Filipe Cartaxo

Num encontro transgeracional histórico para a música baiana e brasileira, Russo Passapusso, da BaianaSystem, mostra-se reverente e generoso diante dos veteranos Antonio Carlos & Jocafi, e faz de Alto da Maravilha um álbum que soa como Antonio Carlos & Jocafi soariam se fossem jovens em 2022. Exemplo nítido é a faixa “Alabá”, recheada de onomatopeias de sabor afro, bem à maneira que a dupla de sambistas joia praticava nos anos 1970 em afrossambas (ou afrofunks, como define Russo) de íntimo contato com a ancestralidade iorubá africana, que hoje são clássicos do pop brasileiro, como “Kabaluerê“, “Ossain (Bamboxê)” (1971) e “Simbarerê” (1972). Um elemento a mais, nas percussões vocais onomatopeicas de Alto da Maravilha (além da já citada, aparecem também em “Forrobodó”, “Tapa”, “Ponta Pólen”, “Mirê Mirê”, “Truque”), é o tom jazzístico que se soma aos registros de samba, afoxé, funk, samba joia (como o som da dupla era apelidado pejorativamente nos anos 1970 pelas vertentes mais “puras” de samba e mais “elitizadas” das MPB), rock, baião etc.

A Passapusso e sua banda interessa valorizar a baianidade explícita de Antonio Carlos & Jocafi, expressa historicamente em canções simbólicas como “Baianada” (lançada pela mineira Clara Nunes), “Conceição da Praia“, “Mercado Modelo” (1970), “Dalena” (1971), “Santo Amaro da Purificação” (1972, lançada pelo patrono carioca Orlando Silva), “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (1974), “Jesuíno Galo Doido” (1976), “Bahia Idos 60”, “Otália da Bahia” (1977), “Batalha de Canudos” (1980, um raro tema político no cancioneiro da dupla) e o álbum Antonio Carlos e Jocafi Cantam Jorge Amado (1996), todo inspirado nos personagens do romancista. Mas é muito mais que isso.

Um dos feitos de Russo em Alto da Maravilha é aprofundar a nordestinidade da dupla veterana, espraiando as novas composições em trio pelos sertões e litorais muito além dos limites da Bahia. “Pitanga”, por exemplo, soa como um samba-rock baiano, o que já fazia a música de AC & Jocafi 50 anos atrás, quando o carioca Jorge Ben Jor ainda estava esculpindo seu estilo passo a passo ao encontro da guitarra elétrica e do afrofuturismo visionário. No final, o suingue “Pitanga” toma emprestados versos de ciranda praieira à moda de Lia de Itamaracá, estabelecendo fabulosa ponte Bahia-Pernambuco, como Passapusso e a BaianaSystem, tributários do manguebit pernambucano de Chico Science, gostam sempre de fazer.

Veneno” é afrofunk pesado com trava-língua, ligeira incursão no engajamento dos primos mais novos do manguebit (“não sou cabaça, não sou pé de mesa, massa de manipular/ a minha cuca vai ficar ilesa/ minha alma vai continuar”) e outra visita ao coração maciço do Nordeste, desta vez para a Paraíba de Jackson do Pandeiro (em recombinação com a reverência baiana de Gilberto Gil ao mestre popular e com outros mestres): “O galo cantou, a ema gemeu/ o sonho acabou/ a voz se perdeu/ a cobra fumou”.

Gil aparece, em pessoa, para construir um quarteto vocal com os colegas mais populares de geração e o herdeiro pós-pós-tropicalista, na mística “Mirê Mirê”, samba-reggae-funk da linhagem dos sambas místicos-profanos de Antonio Carlos & Jocafi, como “Deus o Salve” (1971), “Glorioso Santo Antônio“, “Por Nossa Senhora“, “Dona da Casa” (1973), “Enterro da Iyalorixá” (lançado pelos conterrâneos candomblecistas Os Tincoãs), “Oxóssi Rei“, “Louvado Seja” (1977), “Santo Antônio Meu Pai” (1978), “Paraíso” (1984), “Isprito Santo” (1996)…

“Vapor de Cachoeira” se situa entre o litoral e o Recôncavo Baiano, ao sabor de sambas duros envenenados pelo funk e pelo afoxé, do “Riacho do Navio” cantado pelo pernambucano Luiz Gonzaga ao “Marinheiro Só” adaptado do samba de roda por Caetano Veloso. “Forrobodó“, colada a essa última, se embrenha pelos sertões nordestinos beliscando xote, xaxado e baião, com participação vocal do repentista e cordelista baiano Bule Bule, em evocação místico-glauberiana ao “rei do baião”: “O sertão vai virar mar, disse meu Padim Ciço/ e Gonzagão disse: ‘O forró vai ser o ritmo universal'”. O amuleto (outro tema caro para Antonio Carlos & Jocafi) que cimenta o forró ao afrofunk de “Forrobodó” é a figa de Guiné, como aquela portada nos primórdios pela sambista maranhense Alcione.

Os sambas mais dolentes (e populares) de Antonio Carlos & Jocafi, afrossambas-canção de maldizer, da lavra de “Desacato” (1970), “Hipnose” (1970), o internacional “Você Abusou“, “Mas Que Doidice“, “Mudei de Ideia” (1971), “Minhas Razões“, “Desespero“, “Desmazelo” (lançada pelo totem gaúcho Nelson Gonçalves), “Nego Me Chamou de Imbecil” (1972), “Teimosa” (1973), “Presunçosa” (gravada por um alagoano principiante chamado Djavan), “Toró de Lágrimas” (1974) e “Opus 2” (1977), aparecem representados em menor intensidade, especialmente em “Truque” e em “Olhar Pidão“, essa duetada entre o baiano Russo e a pernambucana de extração manguebit e pós-manguebit Karina Buhr.

Jocafi, Russo e Antonio Carlos – foto Filipe Cartaxo

É mais ou menos o caso, também, da faixa de encerramento, “Catendê“, de Jocafi com parceiros anteriores à dupla, lançada originalmente num festival da canção em 1969, pela voz da baiana Maria Creuza (então casada com Antonio Carlos), que pela década de 1970 se tornaria a intérprete mais constante de AC & Jocafi. Era ainda a pré-história da dupla, mais assemelhada às toadas modernas de canto e contracanto, tipo “Viola Enluarada” (1968) e “Andança” (1968), que ao afrossamba joia que Antonio e Jocafi moldaram e Russo Passapusso e a BaianaSystem têm tratado de perpetuar desde 2019, com os afrofunks “Água“, “Salve” (2019), “Miçanga” (2020), “Ogum Ni Lê” (2021) e a íntegra do flamejante Alto da Maravilha. A produção em trio, eles prometem, não parará por aqui.

Alto da Maravilha. De Russo Passapusso, Antonio Carlos & Jocafi. Máquina de Louco.

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome