Um manifesto poético, político e plural

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Ensaio do espetáculo "Amazonias" no Sesc Pinheiros. Fotos: Matheus Jose Maria. Divulgação
Ensaio do espetáculo "Amazonias" no Sesc Pinheiros. Fotos: Matheus Jose Maria. Divulgação

Dois dos setores mais atacados pelo governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro foram a cultura e o meio-ambiente. O primeiro, com a extinção de seu ministério e o desmonte sistemático de políticas públicas; o segundo, com recordes de índices de queimadas e desmatamento e um ministro que trabalhava para fazer “a boiada passar” enquanto as atenções do mundo se voltavam para a pandemia de covid-19 (que ainda não acabou e vive uma nova onda).

Cultura e meio-ambiente se encontram no palco em “Amazonias – Ver a mata que te vê (um manifesto poético)”, que estreia nesta sexta (25), no Teatro Paulo Autran (Sesc Pinheiros, Rua Paes Leme, 195, São Paulo/SP). Em cena, 35 jovens, a maioria crescidos em periferias paulistas, com direção de Maria Thaís, que recebeu o convite para conceber o espetáculo idealizado pelo Sesc/SP, reunindo diversas linguagens artísticas, como teatro, dança, música e audiovisual.

Com duração de 75 minutos, o espetáculo fica em cartaz até 12 de fevereiro do ano que vem, sempre às sextas e sábados às 19h e domingos às 18h. Os ingressos custam R$ 30,00 (inteira), R$ 15,00 (meia para estudantes, servidores de escolas públicas, maiores de 60 anos, aposentados e pessoas com deficiência) e R$ 10,00 (credencial plena: trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo matriculados no Sesc e dependentes).

O título “Amazonias” se grafa sem acento mesmo: antes de plural de Amazônia, que também é, é bom imaginarmos o espetáculo como uma espécie de sinfonia da região, para além da metáfora do pulmão do mundo se espraiando por outras regiões do Brasil, como a cicatrizar uma ferida profunda. As plantas que se cultivam em casas e apartamentos em qualquer lugar podem ser (e são) um pedacinho da Amazônia fora da Amazônia – ou dentro: tudo é Amazônia, tudo são Amazônias.

O espírito coletivo do trabalho é vivenciado desde a sua construção. A dramaturgia do espetáculo foi desenvolvida a partir da orientação da equipe criativa (abrangendo dança, teatro, música e palavra), as contribuições para o pensar sobre as Amazônias reais, a partir do encontro com especialistas convidados ao longo do processo, complementadas pelas próprias vivências dos jovens envolvidos, a partir de suas origens.

“Entendemos a raiz como um lugar de existência não observada. Já o tronco seria aquilo que se manifesta no mundo, o bem e o mal, a cidade e a mata, a cidade matando a mata. Por fim, a copa é de alguma maneira esse lugar dos rios voadores, simbolizando que o que está embaixo, está em cima”, analisa a diretora Maria Thaís, que se vale da metáfora da árvore invertida para sintetizar seu pensamento – em determinado momento de “Amazonias”, na cenografia de Márcio Medina, um céu pintado em tecido de voil [mescla de tecidos transparentes, em geral de poliéster, espécie de véu, quase sempre em cores claras] se estende sobre o espectador.

Daí surgiu o subtítulo do espetáculo, “Ver a mata que te vê”: “Quando saí dessa experiência, tinha a sensação física de quando você entra na floresta, você também está sendo visto. O título ficou guardado e foi retomado no projeto “Amazonias” por traduzir a possibilidade de uma relação”, explica Maria Thais, que começou a organizar as ideias que desaguaram no espetáculo multimídia justamente ao visitar a Amazônia.

“Entrei de canoa no igapó, que é quando a floresta está inundada. E, neste passeio, você vê o mundo como se estivesse invertido, com o céu refletido na água. Foi quando entendi esse mundo meio ‘desentendido’, que não tem ordem entre céu e terra, o que a gente vê não é necessariamente o que ele é”, relembra a diretora.

A diretora Maria Thaís. Foto: Ale Catan. Divulgação

QUATRO PERGUNTAS PARA MARIA THAÍS

ZEMA RIBEIRO – O nome do espetáculo não tem acento, o que me leva a pensar numa espécie de sinfonia da Amazônia, com a diversidade reunida no elenco, majoritariamente formado por jovens da periferia paulista. Faz algum sentido pensar assim em um espetáculo que se vale de múltiplas linguagens?
MARIA THAÍS – A opção de tirar o acento do nome do espetáculo, a palavra Amazonias, e não Amazônias, Amazônia, a palavra Amazonias quer dizer para nós os modos de vida dos povos, dos seres, dos entes que vivem no território da Amazônia. Então a palavra tem esse sentido, um sentido muito mais amplo, me parece, do que a palavra Amazônia, que se refere basicamente ao território. Nosso olhar é para os modos de vida, para a diversidade que as amazonias, as diferentes formas de existir, de cultivar a floresta, de manter a relação com o mundo, estão expressas nos povos que ali habitam. Com certeza essa diversidade, essa multiplicidade, a mata, a floresta como lugar que expressa pra gente essa diversidade, ela está absolutamente associada aos modos periféricos de existência e que a gente com certeza vai identificar também nos jovens da periferia paulista, que muitos deles fazem parte desse projeto. Por outro lado, essa conexão com as linguagens do espetáculo também é bastante pertinente, porque a diversidade, a polifonia que a mata traz, também nos inspira a criar um espetáculo de múltiplas linguagens. Nós não conseguiríamos fazer deste trabalho, deste resultado cênico, uma peça dramática, uma história única. Então, a utilização de múltiplas linguagens, no sentido do vídeo, do audiovisual, do espaço cênico, da cenografia, da música, do texto, dos corpos, da dança, é um pouco no sentido de tentar criar uma polifonia que, de alguma maneira, dialogue, não apenas com os jovens, os artistas, os criadores que ali estão, presentes na cena, mas que dialogue também com esse universo que nos inspirou a tentar um diálogo, que são as formas de existência presentes nas amazonias.

ZR – O elenco é formado por jovens que aprenderam o ofício fazendo. Isso ajuda ou atrapalha, no sentido de que, imagino, a falta que faz a experiência é compensada pela novidade, pela inovação, pela curiosidade e ausência de vícios.
MT – O grupo é formado por pessoas entre 16 e 20 anos. Essa idade, obviamente, não permite que uma experiência esteja acumulada, como a gente normalmente entende quando a gente fala de uma atividade profissional. A opção de trabalhar com os jovens, com pessoas nessa faixa de idade foi, desde o início do projeto, tomada como fundamento. O projeto já se destinava a pessoas desta faixa de idade. Portanto, nós não tínhamos uma expectativa de trabalhar com aquilo que nós chamamos de profissionais experientes. O que eu acho que a pedagogia, o pensamento pedagógico que orientou esse projeto, em todas as áreas, em todos os núcleos, foi exatamente em lidar com a experiência e com as demandas e com as expectativas e com aquilo que cada jovem desses e cada pessoa que estava ali podia aportar e podia trazer. De que a gente não construísse um projeto e não construísse um trabalho passando por cima daquilo que eles são hoje. E o que eles são hoje é também um indicativo do que eles podem vir a ser. Foi muito mais nesse sentido, não só, a juventude não traz só inovação, curiosidade ou ausência de vícios. A juventude também traz um conhecimento. Traz um conhecimento que é desenvolvido, que é aportado nos territórios de onde eles vêm, a diversidade deles, o confronto entre eles. Tudo isso foi o que deu o esteio para que o trabalho pudesse acontecer. Acho que de maneira nenhuma a juventude deles atrapalha, muito pelo contrário. Ela é um problema, sim, no sentido de que ela coloca demandas absolutamente novas, pra mim, e eu acho que pra muitos dos artistas e pessoas que estavam ali coordenando o projeto, porque nós somos pessoas de uma geração que tem 60 anos, 50 anos, então as questões que estão colocadas hoje, no campo do fazer artístico e na vida, a linguagem que esse jovem traz, de alguma maneira nos convoca a repensar nossa própria linguagem. Eu acho que nesse sentido é muito mais provocativo do que qualquer outra coisa.

ZR – A realidade do elenco deve ser bastante diferente da das populações tradicionais, ribeirinhos e indígenas, entre outros, que habitam a Amazônia, que é também uma metáfora de pulmão do mundo. É possível pensar em outras Amazônias Brasil afora, seja o que nos move, e portanto nos permite respirar, seja quando escolhemos ter e cuidar de plantas em casa, por exemplo?
MT – Essa é uma pergunta que eu não sei se consigo entender toda a questão que está colocada. Com certeza os territórios são absolutamente diferentes, a maior parte das pessoas que participa desse projeto, para além do grupo que está em cena, que eu não chamaria de elenco, mas desse coletivo artístico que está em cena, que é integrado por 35 jovens e quatro atuantes convidados, também, alguns dessas 39 pessoas que estão em cena nasceram na Amazônia; alguns, seis, alguns na Venezuela, a maior parte no Brasil. Desses convidados que estão em cena três são amazônidas, e a equipe inteira de criação tem algumas pessoas que são amazônidas, mas nós somos uma maioria de pessoas não-amazônidas, pessoas que nasceram em São Paulo, pessoas que vivem em São Paulo, ou pessoas que vieram de outros lugares, mas que habitam esta cidade e aqui trabalham. Portanto, nós realmente temos um modo de vida bastante diferente das populações tradicionais, ribeirinhas. Com relação às diferenças com os povos indígenas, também existem dentro do trabalho quatro indígenas, uma amazônida e três indígenas do território de São Paulo. Exceto eles, todos os outros não têm nenhuma relação ou experiência direta com povos indígenas. Essa é uma condição. Na equipe algumas pessoas também têm essa relação, mas isso não é uma maioria. Acho que a grande questão nossa é exatamente nos demover dessas metáforas que não ajudam muito a pensar nossa relação com a Amazônia. Quando a gente projeta na Amazônia que ela é o pulmão do mundo, a gente está dizendo o quê? Que nós não temos nenhuma responsabilidade sobre as nossas próprias florestas, que nós não temos nenhuma responsabilidade sobre as áreas e os territórios que nós vivemos, e que basta a gente salvar uma certa área que essa área vai salvar o mundo. Eles não vão salvar o mundo, a Amazônia não é o pulmão do mundo, a Amazônia não é um lugar inabitado, a Amazônia não é uma floresta virgem. Essas idealizações, na verdade, acho que nos desresponsabilizam, transferindo para os povos que ali estão, a responsabilidade de resolver coisas que nós, aqui, continuamos depredando, continuamos com os rios no concreto, continuamos tirando as nossas matas. Essa relação, que é uma relação muito mais ampliada entre as matas, neste território do Brasil, é que eu acho que precisa ser reconsiderada. Cada passo que a gente dá, inclusive quando você pergunta, né?, escolher cuidar de uma planta, os seus pequenos gestos diários, eles não salvam a humanidade, eles não vão, como [diz] Ailton Krenak, resolver os problemas, mas é, talvez, o nosso entendimento, nossa compreensão de que fazemos parte do mesmo mundo, de que a Amazônia não está lá, a Amazônia está aqui, ela atua aqui, na poluição que São Paulo gera, na fumaça que chega dos territórios invadidos aqui, na ausência de territórios para os povos indígenas que aqui habitam. Tudo isso é Amazônia. As Amazônias estão aqui, como elas estão no sertão, como elas estão na caatinga, como elas estão no Pantanal, como elas estão em todos esses outros lugares. A gente entender a Amazônia, se vamos tomá-la como uma metáfora, é de ser ela também parte deste mundo que habitamos e que nós precisamos observá-lo.

ZR – Gosto de pensar também na Amazônia como uma metáfora para as artes e a cultura brasileiras, tão atacadas e tão resistentes ao longo dos últimos quatro anos, pelo menos. Você concorda com essa metáfora? E que esperanças alimenta para os próximos quatro anos?
MT – Eu tenho a impressão que todas as coisas que a gente consegue reconhecer que ali existe uma diversidade coexistindo podem nos servir de metáfora para as nossas formas de existência, hoje. Nesse sentido, a mata, e não só a mata Amazônia, mas a mata atlântica, a mata pantaneira, a mata da caatinga, a mata do cerrado, todas as matas, elas mostram que a mata é formada por essa coexistência diversa, plural, e que todos os seres que ali habitam estão permanentemente em relação. Como diz um ditado africano, o mundo não é um pomar, o mundo é uma floresta, é uma mata. Dentro dela está toda a diversidade, diferentemente de uma ideia monocultural, que pensa como um pomar, ali eu planto só laranja, do outro lado eu planto só [interrompe-se], separando em partes, a soja num lugar, laranja noutro, o boi noutro lugar, separando a diversidade que o mundo comporta, em grandes áreas monoculturais. Pensar a cultura, por exemplo, as culturas brasileiras, nesse sentido, me parece muito apropriado, pensar uma correlação, que cultura não é pomar, cultura é mata, cultura é floresta, cultura é diversidade. Mas é também um passo importante que a gente precisa dar neste país, de reconhecimento das culturas tradicionais, de reconhecimento das formas de pensamento que os povos tradicionais mantêm, resistem, cultivam, transferem, das tecnologias que esses povos trazem, que podem nos servir muito para pensar o mundo que nós estamos vivendo. Nós talvez tenhamos uma prática, e não me parece que é só dos últimos quatro anos, mas uma prática contínua, de desqualificação de certas tradições e de certos conhecimentos e de certas tecnologias. Talvez hoje, e o que os últimos quatro anos nos mostraram, é o desprezo em geral por tudo aquilo que é diverso. Mas acho que esse é um problema muito mais amplo, que a gente talvez precise, para poder alimentar as esperanças, inclusive, precisa olhar para trás e entender como nós deixamos de lado tantas tecnologias importantes, e que são elas, hoje, que nos mostram como é possível resistir, como é que é possível se manter. Do ponto de vista dos próximos quatro anos, a minha esperança pessoal, aí eu digo de uma forma muito mais pessoal, é que realmente a gente prepare melhor o solo para aqueles que vão pisar depois de nós. Que a gente de fato consiga deixar abrir as portas de uma forma consistente para aqueles que nunca tiveram e que não têm oportunidades. Que a gente de fato transforme fundamentos dentro da nossa existência. E que os próximos quatro anos sejam de absoluta negociação, onde nós, e eu não espero isso do governo, eu espero isso da sociedade civil, eu espero isso de mim: que nós possamos estar presentes na luta, na resistência e principalmente negociando espaços comuns de respeito e convivência.

FICHA TÉCNICA

NÚCLEO DE DIREÇÃO ARTÍSTICO-PEDAGÓGICA

Direção: Maria Thaís
Assistência de Direção: Otávio Oscar
Assistência Pedagógica e Coreográfica: Silvana de Jesus
Direção de Palco: Aelson Lima

NÚCLEO DE DRAMATURGIA

Márcia Kambeba, Murilo de Paula e Rita Carelli

NÚCLEO DE VISUALIDADES

Consultoria: Naine Terena
Cenografia: Márcio Medina
Figurinos: Jennifer Ramos e Willame Knowles
Objetos cênicos: Patrícia Gondim
Visagismo: Tiça Camargo e Edlene Sousa
Iluminação: Wagner Antônio

NÚCLEO DE MÚSICA E SONORIDADE

Direção musical: Marcelo Nakamura e Morris
Canto: Marcelo Onofri
Desenho sonoro e coordenação técnica de áudio: Kako Guirado

NÚCLEO DE AUDIOVISUAL

Documentação do projeto e captação de vídeos para cena: Yghor Boy e Ubiratan Suruí
Edição de Vídeos para cena: Yghor Boy
Videomapping: Clara Caramez e IhonYadoya (Rizomatique)

NÚCLEO DE MOVIMENTO E COREOGRÁFICO

Dançarino convidado: Odacy Oliveira (Performance “Salto no vazio”)
Coreografia: Rubens Oliveira (“Mata-Cidade-Mata” e “Canoa dos povos”)
Assistente: Hallison
Alinhamento corporal: Dória Gark
Kempô: Ale Gusmão, Ciro Godoy e Mavut Santana
Butô: Eduardo Fukushima e Emilie Sugai

NÚCLEO SOCIAL

Coordenação: Cleo Regina Miranda
Equipe: Luis Nogueira (psicanalista) e Simone Gama (psicóloga)

NÚCLEO DE PRODUÇÃO

Direção de produção: Julia Gomes
Produção executiva: Marita Prado
Produção de figurinos: Roberson Lima
Produção administrativa: Digo Amazonas

ATUANTES

Anna Chaves, Breno Luan, Cailane Jesus, Clara Beatriz, Estevan Vital, Eyberth Montoya, Gabriel Vilar, Gabrielli Lopes, Gregório Musatti, Gumball Portela, Hallisson Ferreira, Igor Lira, João Victor Pereira, Kalu, Karol Mikaelly, Kuaray Turiba, Leone Lage, Letícia Progênio, Lívia Giorgi, Marcus Paulino, Mari Poty Silva, Maria Eduarda Ferreira, Maria Eduarda Lopes, Matheus Sena, Melissa Leal, Murilo Bratti, Nathália Elizabeth, Nathaly Braga, Rayssa Rodrigues, Ryan Malves, Sabrina Charlott, Sam Aleha, Stephanie Rosário e Tankian e Veneno Gu.

ATUANTES CONVIDADOS

Jana Figarella, Odacy Oliveira, Palomaris e Sandra Nanayna

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