Oneide Bastos - foto Luan Cardoso
Oneide Bastos - foto Luan Cardoso

Leia abaixo comentários sobre álbuns musicais lançados recentemente, de Oneide BastosIlú Obá de MinQuebrada QueerRenato Teixeira & Fagner Claudya.

"Oneide" (2022), de Oneide BastosOneide Bastos
Oneide, Itaú Cultural

Embora nascida no Pará, Oneide Bastos se estabeleceu desde criança no Amapá e se tornou voz cantora forte do estado desde os anos 1970. Longe da indústria fonográfica central, só gravou dois álbuns solo, Mururé (1994) e Quando Bate o Tambor (2013), aos quais se segue agora Oneide, viabilizado pelo projeto Rumos Itaú Cultural. Mãe da também cantora Patrícia Bastos e do compositor e percussionista Paulo Bastos, ambos amapaenses, Oneide pertence à geração musical que hoje beira os 80 anos, e tem neste trabalho uma direção musical entre a MPB e a vanguarda, a cargo do compositor paulistano Dante Ozzetti, que confecciona arranjos intrincados e delicados, arquitetados prioritariamente nas cordas, tanto acústicas quanto elétricos, e na percussão. A voz fresca, morna e serena de Oneide se deita gostosamente por sobre os arranjos amorosos.

O nexo com a MPB fala alto logo na faixa de abertura, uma releitura contida de “Pedra de Rio“, da verve muito feminina da dupla carioca-matogrossense Luli & Lucina, e lançada originalmente pelo sul-matogrossense Ney Matogrosso em sua estreia solo, em 1975. Com exceção parcial de “Alto Mar”, composta por Ozzetti e Luiz Tatit, as demais faixas mergulham bela e profundamente na identidade amapaense e amazônica, com substratos musicais de marabaixo (a principal manifestação cultural popular do Amapá), batuque, cacicó, lundu maxixe etc.

Oneide desfia histórias de forte sabor afro-indígena, desconhecidas do Brasil não-nortista. “Jurupari”, composição de sua autoria (lançada antes no álbum de 2013) sobre o mitológico personagem indígena que dá nome a canção, “o pai da mata”, “o rei das tribos tuxaua”, cujas leis ninguém desacata, segundo diz a letra. A essência explicitamente afro-indígena reluz na loa às ervas e “elixires naturais” da floresta em “Puçangueira”, do paraense Joãozinho Gomes com o cearense Eudes Fraga: “Vens do sangue de todos os tupis/ te criaste na touça do ananás/ tens a força encantada da raiz/ e a licença do deus dos orixás/ pra curares de vez nossas doenças/ te foi dado o poder dos vegetais/ o milagre de todas as essências/ a puçanga dos nossos ancestrais” (puçanga é o remédio natural caseiro preparado em aldeias e quintais).

“Congá”, “Batuqueiros”, “Taemã”, “Puçangueira”, “Voou“, “Sereia do Rio-Mar” e “Suprema” versam com lirismo sobre um imaginário natural-fabuloso de mandinga, congá, Iemanjá, alvorada, mistério, Aruã, encanto, Curupira, feitiço, chio de tempestade, águas cristalinas, horizonte, curió, memória, raiz, marolas, canoa, pororoca, sereia, rio-mar, floresta, flor, sapopemba, indiazinha, cunhatã, jurema…, de entortar o juízo do Brazil que não conhece o Brasil.

 

 

"Nossas Vozes, Nossos Cantos" (2022), de Itú Olá de MinIlú Obá de Min
Nossas Vozes, Nossos Cantos – 15 anos, Natura Musical

Patrimônio cultural vivo da cidade de São Paulo há 17 anos, o bloco afro feminino Ilú Obá de Min adentra o mercado de música gravada apenas neste 2022, com o álbum Nossas Vozes, Nossos Cantos, integrado por 16 temas autorais, todos compostos exclusivamente por mulheres. Os 15 anos inseridos como subtítulo indicam que a celebração deveria ter acontecido em 2020, mas foi interrompida pela pandemia de coronavírus.

A já longa trajetória de músicas mostradas em desfiles de carnaval pelo centro de São Paulo, com os orixás do candomblé em destaque, caracterizados por brincantes em pernas de pau, faz dessa estreia uma espécie de “o melhor do Ilú Obá de Min”. Dedicado a celebrar e impulsionar a produção cultural (e humana em geral) das mulheres negras no Brasil, o bloco se espalha por uma notável diversidade de saberes, em homenagens musicais às cantoras Elza Soares (“Elza Luz”), Leci Brandão (“Leci Guerreira Brasileira“), Lia de Itamaracá (“Só Quero Cirandar”) e a sambadeira baiana Nega Duda (“Nega Duda”), a escritora Carolina Maria de Jesus (“Fala Carolina“), a escritora, artista plástica, coreógrafa e carnavalesca Raquel Trindade (“Coroação”) e a rainha africana Nzinga Mbande (“Filha de Ngola Mbande“, “Mulheres Negras”).

O Itú Obá de Min em apresentação no Auditório Ibirapuera
O Itú Obá de Min em apresentação no Auditório Ibirapuera

No campo dos culto aos orixás, as músicas celebram o pai do bloco, Xangô (em “Justiça Verdadeira”, “O Rei Chamou”), mamãe Oxum (“Dança Yabá”, com Juçara Marçal entre as compositoras), Iansã e Ogum (na homenagem a sua filha Elza Soares), Obatalá (“Matambo Kissimbi”), entre todos os demais. Além da percussão afrobrasileira composta por alfaias, agogôs, xequerês e djembês, os versos pontudos e sonoros das autoras do Ilú Obá enriquecem as canções, como acontece na rappeada “Fala Carolina” (“cata tralha Carolina”, “cata o papel e compra o pão/ cata o papel e compra arroz e o feijão”, “bate o tambor/ cata o papel/ salve ela, oi, salve ela/ salve ela, a vedete da favela”), “Negro Mar” (“uma tal riqueza nunca se viu/ toda essa beleza veio de navio/ a África negra foi recriada no Brasil”) e “Coroação” (“coroa, Ilú/ olha a cambina, vai ser coroada/ coroa, Ilú Obá/ Raquel Trindade vai ser coroada”), essa última para a filha do multiartista e militante do Movimento Negro e do Partido Comunista Solano Trindade.

Em “Vozes de Alakan“, o louvor é às mulheres negras na política Benedita da Silva e Marielle Franco: “Presente!/ nunca vão nos parar”. Composição coletiva, “Alakan” vem creditada a Adriana Quedas, Amanda Martins, Ana Célia Martins, Daniela Apolinário, Gislene Morais, Lisandra Borges, Luciana Silva, Mazé Cintra, Regina Muniz, Tati Mohr, Teresa Teles e Valerya Borges. O quadro de compositoras solistas ou em duplas incorpora ainda Beth Beli, Célia Santos, Cris Blue, Estela Carvalho, Girlei Miranda, Janaína Theodoro, Márcia Izzo, Mazé Cintra, Nega Duda (autora de “Salve o Rei” e “Matambo Kissimbi”), Paula Pretta, Sosso Parma e Stela Carmo.

Ao lado de “Vozes de Alakan”, “Este Mundo Vamos Dominar” condensa as nobres exigências de reparação e justiça histórica propagadas pelas Ilú Obá de Min: “Não sou rainha do lar/ é melhor acordar/ movimento é de resistência/ viemos protestar/ meu corpo, meu território/ (…) o medo acabou/ vamos bater, batucar/ mulheres guerreiras unidas, este mundo vamos dominar”. Diante da constatação de que “o quilombo não está no passado”, guerreiras negras são festejadas em coletivo, nas figuras das quilombolas Dandara dos Palmares, Luíza MahinMariana Crioula e Tereza de Benguela.

 

 

"HoloForte" (2022), de Quebrada QueerQuebrada Queer
HoloForte, independente

A diversidade sexual e de gênero é a bandeira crucial dos rappers paulistanos do coletivo Quebrada Queer, reunido em 2018, que lança agora, após trabalhos solo de alguns dos integrantes, o primeiro álbum, HoloForte. Modelada na variante eletrônica do trap, a obra adota sonoridade mais pesada e nervosa em momentos dirigidos por batidas bruscas e quebradas (como na curta “S2“, por exemplo), mas é no discurso que a Quebrada Queer soa mais aguda e ferina.

Já de início, apresentam-se no feminino em “Autêntica” e em “ABC do QQ” (“se for preciso ser vilã no jogo, a gente vem”, “quer competir comigo, vou mandar cê se foder/ travesti que ensina na levada e no proceder”). “Som de bicha, de trava, de não-binária/ som das gata plural, revolucionárias/ se compreendeu, evolução/ preconceito não é opinião/ se gostou, gostou, não gostou, que coisa/ qualquer coisa me bota no paredão”, demarca “ABC do QQ”, citando Karol Conka e abrindo o leque um pouco mais. “É difícil entender LGBT? / então nem imagina como é ser/ nem queira saber”, concluem, recado dado.

“Aqui não é bagunça”, assinala “Metralhada”, mais sexual: “Não me interrompe, calado, não sou suas branca, truta/ prefiro sua boca ocupada, ajoelha e chupa/ isso quando sabe chupar”. A realidade crua tem tanta prioridade quanto a linhas mais debochadas: “No corre nós tem um montão de não, só que nós desenvolve”. A volatilidade sexual é o tema de “100 Repeat“, “tu-tudo que eu quero, tu gozando e vazando”, “arruma as coisas e pega logo o caminho da rua/ eu tenho novidade, eu sou piranha e não sou sua”, “esses boyzinho sucrilho/ pegou minha amiga, pegou meu amigo, agora quer ficar comigo/ eu já entendi seu tipo, é esquema de rodízio”.

Do rap e do trap, a QQ avança para o tecno-arrocha baiano, fazendo da sexy “Tá Calor” uma prima-irmã das músicas da banda Àttøøxxá. No r’n’b-rap-pagode quase romântico “Nós (Não +)”, a citação musical é explícita e mais distante no tempo, mas mais próxima no espaço: “E eu acreditei que a gente tava tipo Sampa Crew/ eu nasci pra você, você nasceu pra mim/ mas com o tempo percebi que tava irreal/ tava melhor na era do amor virtual”. No sério e épico rap “Eu Não Saio”, por fim, a Quebrada Queer convoca as companheiras de luta por respeito, dignidade e igualdade racial, cada dia mais numerosas na música popular, chamando os vultos já históricos das artistas trans Danny Bond e Jup do Bairro: “Foda-se o amor, propaganda enganosa/ deixo o amor pra vocês pra vocês, essa preocupação não é nossa (…) não sei se vou voltar sempre que eu vou sair/ em meio ao ódio e descaso, hipocrisia e olhares misturam nojo e desejo, curiosidade e vontade/ cês fingem que se importam, mas  tão nem aí/ tamo aqui, somos plurais ancestrais travesti”. Disposta a desfazer o nó na garganta e a tirar a mordaça, como diz a letra, “Eu Não Saio” é a grande faixa de HoloForte. Elas não sairão.

 

 

"Naturezas" (2022), de Renato Teixeira e FagnerRenato Teixeira Fagner
Naturezas, Kuarup

Pródigos em discos em parceria, o santista Renato Teixeira e o cearense Fagner estabelecem dupla de cantores-compositores em Natureza, que dá continuidade à fartura de álbuns de encontros musicais de Fagner (com Mercedes SosaZeca BaleiroZé RamalhoElba Ramalho) e Renato (com Pena Branca & XavantinhoXangaiZé GeraldoElomarTeca CalazansSérgio Reis e Almir Sater, entre outros. Gentil, Fagner contém e suaviza o canto rascante para fazer duo com a mansidão vocal do parceiro.

Naturezas tem sabor especial porque provocou oito parcerias inéditas que combinam os tons do sertão nordestino com os interiores do Sudeste: “Amor e Poesia”, “Eu Só Quero Ser Feliz”, “Juro Procê”, “Eu Comigo Mesmo” (a única cantada apenas por Renato), “Para o Nosso Amor Amém”, “Linda de Mansinho”, “Rastros da Paixão” e “Aqui É Ceará”. Tal qual no encontro com o maranhense Zeca Baleiro em 2003, Fagner se mostra inspirado na reunião de compositores com outro canário. O ineditismo das canções é quebrado apenas em duas outras parcerias, igualmente clássicas, que abrem o álbum, “Tocando em Frente”, de Renato e Almir Sater, lançada por Maria Bethânia em 1990, e “Mucuripe”, de Fagner e Belchior, apresentada por Elis Regina em 1972.

Renato Teixeira e Fagner apresentam oito canções inéditas em "Naturezas" - foto Leonardo Rodrigues
KUARUP – 11/10/2021 – Renato Teixeira e Fagner. Gravacao e Retratos. Sao Paulo.
Foto: Leonardo Rodrigues

Eu Só Quero Ser Feliz” guarda história curiosa que desembocou em uma parceria a três. Fagner mandou sem querer para o novo parceiro uma melodia do pianista carioca Antonio Adolfo e Renato compôs-lhe letra imediatamente – o acaso colocou assim o mestre da bossa nova, da toada moderna e da pilantragem no rol de parceiros inusitados dos dois amantes de parcerias. Outro trio é estabelecido em duas canções, “Tocando em Frente” e “Para o Nosso Amor Amém“, quando o sul-matogrossense Almir Sater vem se somar à cantoria da dupla numa pororoca caipira-pantaneira-sertaneja-forrozeira entre Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste.

Muitas vezes abafada por preconceitos vários, a afinidade entre dois territórios simbólicos aparentemente distantes e até concorrentes se revela em diversas passagens, como no bailinho de “Amor e Poesia“, de tratamento saborosamente brega, em que Renato brinca de sobressaltar mais ainda o sotaque interiorano das letras “R”, ou no enlevo final “Aqui É Ceará“, melodia de Fagner que Renato forrou com versos de amor ao Ceará (“tudo que há de belo tem aqui/ nesse pedacinho de chão”) – e, segundo ele, ao amigo Belchior. “Rastros da Paixão“, segundo Fagner uma homenagem ao mestre cearense do samba-canção Evaldo Gouveia, faz lembrar o imaginário romântico-melancólico de Roberto Carlos, e aí se revela mais um ponto de encontro entre os recém-parceiros, já que ambos foram dos pouquíssimos cantores brasileiros interpretados por Roberto, nas gravações de “A Madrasta”, de Renato, defendida pelo intérprete num dos festivais da canção, em 1968, e “Mucuripe”, de Fagner, que Roberto gravou em 1975, três anos depois de Elis.

 

 

"A Nossa Bossa Sempre Jovem" (2022), de Claudya

 Claudya
A Nossa Bossa Sempre Jovem, Studio 8/Tratore

Com décadas de carreira errática depois de estreia brilhante nos braços de uma MPB pop na virada dos anos 1960 para os 1970, a cantora carioca Claudya (ou Claudia, até os anos 1990) retoma as gravações com uma proposta que causaria passeatas contra a guitarra elétrica na época em que ela começou. Em A Nossa Bossa Sempre Jovem, a intérprete de “Deixa Eu Dizer” (1973) e “Não Chores por Mim Argentina” (1983) dá roupagem bossa-novista a sucessos ligeiros da jovem guarda dos anos 1960. Assim, um clima intimista e introspectivo toma conta de sucessos antes meigos e alegres, gravados originalmente por Roberto Carlos, Erasmo CarlosWanderléa, Renato e Seus Blue CapsGolden BoysLeno e LilianDemetrius, Ronnie Von Martinha.

Atirando ao mesmo tempo na bossa e no iê-iê-iê, Claudya acerta quase sempre no anterior samba-canção, em versões de fossa para “O Ritmo da Chuva” (pré-iê-iê-iê de 1964 com Demetrius), “Ternura” (sucesso de 1965 com Wanderléa), “Gatinha Manhosa” (1965, Renato e Seus Blue Caps, e 1966, Erasmo Carlos), “Alguém na Multidão” (1966, Golden Boys), “Devolva-Me” (1966, Leno e Lilian), “Meu Bem” (1966, versão de Ronnie Von para “My Girl”, dos Beatles), “O Caderninho” (1967, Erasmo) e “Eu Daria Minha Vida” (1968, Martinha). Como é comum em trabalhos dessa natureza, não há composições de Roberto e Erasmo, mas o imaginário do “Rei” está presente em “Aquele Beijo Que Te Dei” (canção de Edson Ribeiro gravada por Roberto em 1965) e “Nossa Canção” (Luiz Ayrão, 1966). Apenas dois números afastam-se da norma forjada por Claudya: a quase alegre “Alguém na Multidão“, transformada em sambinha brejeiro, e “Eu Daria Minha Vida“, despida do drama excessivo com um arranjo suingado em bolero.

 

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