Ruy Maurity na contracapa de
Ruy Maurity em foto da contracapa de "Natureza", em 1980

“Quem Tem Medo da Música Caipira?”, perguntava a nona faixa do LP Em Busca do Ouro (1972), do fluminense Ruy Maurity (1949-2022), artista que fez um contraste intrigante com a imagem praiana e sambista que desde há muito caracteriza o estado do Rio de Janeiro. O tema começava boiadeiro, mas logo se transformava em uma vibrante moda de viola que nem chegava a desafiar a sertanejofobia para além do título, mas cometia pequenos sacrilégios como citar Tonico e Tinoco e ao mesmo tempo afirmar filiação ao folk-rock estadunidense: “O meu pai é Bob Dylan, minha mãe, Maria Inês/ sem falar no Curupira, que já aprendeu inglês”. Apartada do grande comércio há mais de quatro décadas e restrita quase somente a aficionados nestes dias da morte de seu autor, a obra de Ruy encontra centro de gravidade naquele título e naquela indagação com ares de proposição. Quem tinha medo da música (caipira) de Ruy Maurity?

Com Em Busca do Ouro, atribuído a Ruy Maurity & Trio, o artista se filiava à vertente do rock rural, uma espécie de tropicália ruralista que nunca chegou a se consolidar plenamente, mas contou com expoentes como o trio Sá, Rodrix & Guanabara (depois Sá & Guarabyra), o excêntrico Guilherme Lamounier, Tavito e Zé Geraldo. A tendência contou com a adesão mais ou menos breve de Marcos Valle (no álbum Vento Sul, de 1972, com a banda de rock progressivo O Terço no acompanhamento) e Erasmo Carlos (em Carlos, Erasmo..., de 1971, Sonhos & Memórias (um LP roqueiro rural com letras praieiras), de 1972, e Banda dos Contentes, de 1976). Embora autônomo e consolidado como movimento à parte, o clube da esquina mineiro de Milton Nascimento e cia. não deixava de ser inspirado rock rural. Mesmo desagregado e desconjuntado, o rock rural ficou eternizado na letra de “Casa do Campo“, parceria do carioca Zé Rodrix com o mineiro Tavito que  passou despercebida na final do VI Festival Internacional da Canção (FIC), em 1971, mas foi eternizada no ano seguinte pela gravação da gaúcha urbaníssima Elis Regina: “Eu quero uma casa no campo/ onde eu possa compor muitos rocks rurais/ e tenha somente a certeza/ dos amigos do peito e nada mais”.

Ruy já militava na música desde 1968, quando conseguiu classificar composições de pouca repercussão nos festivais da canção, especialmente os universitários. Nesse momento, ajudou a compor os quadros do MAU, o Movimento Artístico Universitário, liderado a partir da Tijuca, na zona norte carioca, por nomes como GonzaguinhaIvan Lins Aldir Blanc. Ruy conseguiu os melhores resultados nos festivais em 1969, no IV FIC, quando obteve o terceiro lugar para “Visão Geral”, defendida pelo parceiro Cesar Costa Filho com o Quarteto 004, e em 1970, ao vencer o III Festival Universitário da Música Brasileira, defendendo sua “Dia 5” (também gravada pelo uruguaio-carioca Taiguara). Ainda em 1969, a estrela já descendente Maysa gravou em compasso de fossa duas canções de Ruy, “Estranho Mundo Feliz” e “Quebranto“.

Uma indefinição estilística inicial começou a se resolver diante do êxito do pianista carioca Antonio Adolfo, seu irmão mais velho por parte materna, que chegou ao topo como compositor nas asas da pilantragem de Wilson Simonal, que transformou em hit a toada “Sá Marina” (1968), regravada depois até em inglês, por Stevie Wonder, como “Pretty World” (1970). Sempre em parceria com Tibério Gaspar, o antes bossa-novista Adolfo emplacou nas paradas baladas soul meigas nas vozes de Claudette Soares (“Meia Volta – Ana Cristina”, “Correnteza” e “Juliana”, em 1969, “Glória, Glorinha”, 1970), Elis Regina (“Visão” e “Giro”, 1969), Evinha (“Psiu”, 1969, e o tema noveleiro “Teletema”, 1970) e Toni Tornado (“BR 3”, polêmica vencedora do V FIC, em 1970). Em consonância com a “Viola Enluarada” (1968) de Marcos Valle, tais versões suavizadas da pilantragem venenosa de Simonal se agruparam sob a alcunha semi-rural de toada moderna.

"Este É Ruy Maurity" (1970), de Ruy Maurity

Parte das raízes rurais de Antonio Adolfo passavam pela vivência do meio-irmão mais novo, esse sim nascido no interior, em Paraíba do Sul (RJ), no vale irrigado pelo rio de mesmo nome. Quando Ruy pôde estrear em LP próprio, em 1970, chegou integrado à toada moderna, em canções de perfume rural como “Pelo Teletipo”, “A Casa da Santa Branca”, “Carrossel”, “O Milagre”, “Movimento Geral” e “Depois da Festa”, sempre em parceria com o carioca José Jorge Miquinioty, todas incluídas em Este É Ruy Maurity, que, lidas as letras menores, chamava-se Este É o Primeiro (de uma Longa Série) Long-Play de Ruy Maurity. A série aconteceria, mas não tão longa como se imaginava então. Um compacto duplo em 1971 ainda seguiu pela toada moderna, com Ruy fazendo voz artificialmente grave em “Maninha, Maninha”, “Nada Toca em Você” (também gravada na época pela semi-sambista Eliana Pittman) e “Cantiga Fora de Roda”.

A guinada rumo a uma individualidade própria ocorreria mesmo no segundo LP, Em Busca do Ouro, com um quinteto na capa, nome de trio e sendo, na realidade, um quarteto formado por Ruy (viola base de 12 cordas e violão), Helvécio Santana (idem), Daniel Jr. (baixo elétrico) e Chaplin (percussão e efeitos). Se a estreia fora pela gravadora Odeon, a viravolta veio marcada também pela filiação ao selo musical da Rede Globo, Som Livre, que havia sido inaugurado em 1971 para comercializar as trilhas sonoras coletivas das novelas da casa e começava agora a lançar discos autorais de talentos jovens da MPB dos 1970.

Ruy Maurity aboiador aos 23 anos, na contracapa de “Em Busca do Ouro”

Nessa que foi sua melhor fase, a Som Livre ajudou a catapultar as carreiras comerciais de gente como Novos Baianos (também em 1972), Alceu Valença (1974), Rita LeeMoraes Moreira (1975), Luiz MelodiaDjavan, Guilherme Arantes (1976), Geraldo Azevedo, Jards Macalé, Sá & Guarabyra, Tim Maia e Vanusa (1977), Jorge Ben (1978) e Fábio Jr. (1979), mas também de artistas anticomerciais como Sidney MillerTuca, Gerson Conrad (ex-Secos & Molhados) & Zezé MottaEdy Star, Gulherme Lamounier e as bandas AzymuthJoelho de Porco e Casa das Máquinas. Irônica e tristemente, Ruy veio a morrer ao mesmo tempo em que se esvai em fumaça e streaming a Som Livre, incorporada no ano passado, aos 50 anos, pela multinacional Sony Music.

Em Busca do Ouro deu contornos definidos às modas de viola eletrificadas do trio, principalmente no épico familiar-sobrenatural “Serafim e Seus Filhos”, primeira das grandes criações da história de Maurity e precursora de clássicos MPB-caipiras do naipe da “Romaria” de Renato Teixeira (descoberta por Inezita Barroso, mas transformada em hino caipira nacional por Elis, em 1977). “Serafim, depois que viu o filho lobisomem, perdeu o juízo/ e morreu sete vezes até abrir caminho pro paraíso”, dizia o causo caipira que terminava com a morte (sete vezes) do filho lobisomem.

O rock-MPB rural brilhava ainda na faixa-título (“fé em Deus e pé no pasto verde só pra mim/ vixe, quanta terra verde, cheiro de capim/ meu chapéu de couro, em busca do ouro verdim, ei, maninha, tatu é assim”), na modernizadora “Moda de Viola” (“eu nasci lá pelas bandas do Oitão/ tinha uma casa de palha, um boi e um avião/ eu nasci no dia em que o caboco Bento comprou um jipe amarelo, vendeu o seu alazão”), no folguedo “O Rosário” e na vibrante “O Verde É Maravilha” (“a água do rio molha o campo/ e o meu coração bate pilão”). A faixa “Meninos de Rua“, reproduzida no início e no final do disco, destoava da regra e flagrava o duro êxodo das roças para as capitais, a pleno vapor no Brasil ditatorial.

A fórmula se manteve em Safra/74, de 1973, com acréscimo de piano, órgão e piano elétrico tocados pelo arranjador-irmão Antonio Adolfo e de um cavaquinho por Helvécio. O álbum virou base, no ano seguinte, para a a trilha sonora de Fogo Sobre Terra, iniciadora do vínculo de Ruy com os temas de novelas da Globo. Dividida entre composições de Ruy e da dupla sambossa joia formada por Toquinho & Vinicius de Moraes, a trilha incluía “Serafim e Seus Filhos”, de Em Busca do Ouro, e quatro canções de Safra/74: “Pele de Couro”, “Passarinhada” (reciclada de um festival universitário de 1968) e os sucessos “Com Licença, Moço” e “A Senha do Lavrador”, uma moda agrária antepassada do Movimento Sem Terra: “Só Deus do céu me vê/ só Deus do céu me dá/ um pedacinho de terra/ enxada, ancinho pra capiná”.

Em Safra/74, Ruy introduzia uma prática em voga na MPB dos anos 1970, de celebrar uma utópica unidade latino-americana, cantando trechos de “Pele de Couro” em castelhano fronteiriço. A natureza reluzia em “Trecho Alegre de uma Cantiga Alegre de Chuva” e “Cajerê“, com desdobramentos sobrenaturais em “Parábola do Pássaro Perdido” e “Saci Fez Trança” (“Saci fez trança na crina do alazão/ pra ver se eu volto pras bandas do Oitão”). O rock rural ameaçou se mudar para a cidade no compacto com “Forró na Capital”, também em 1973, mas era alarme falso.

O medo da música caipira foi relativizado pela Globo a partir de Fogo Sobre Terra, e Ruy tornou-se fornecedor regular de canções para as trilhas das novelas. Vieram o romance roceiro “Festa de Algodão” para Escalada, em 1975; “Menina do Mato” (interpretada por Márcio Lott) para O Casarão, de 1976; a balada urbana “Comportamento” (também na voz de Lott), em Sem Lenço Nem Documento, em 1977; “A Xepa”, tema de abertura da (sub)urbana Dona Xepa, em 1977; a tradicional “Cuando Fubá” para Maria Maria (1978); “Pelo Sinal” para Cabocla (1979); e “Contradança”, em Terras do sem Fim (1981).

Cão Vadio (Roquezito)” (1974), lançado só em compacto, ensaiou um flerte rápido com o samba-rock urbano-rural, em ambiente um tanto desalentado: “Tem certos dias que eu me sinto triste como um cão vadio/ desço ladeiras, ando em beco escuro, passo fome e frio/ neste momento eu não tenho amigo, sou maltrapilho, bêbado, mendigo/ e morro só / (…) “nasci no mato e vim pra cidade quase por engano”. A utopia pan-americana aparece nítida nesse roqueiro: “Sou brasileiro, sul-americano/ daqui a pouco faço 30 anos/ e viro pó/ te quero mucho más ahora/ (…) não satisfaço grego nem troiano/ adiós, amigos, adiós, hermanos/ a bença vó”.

Trabalhando com Antonio Adolfo e seduzido pelo pan-latino-americanismo compatilhado com Milton, Elis, Belchior, Zé Rodrix, Ney Matogrosso e outros, Erasmo Carlos gravou o épico “Continente Perdido (Montezuma)“, de Ruy e José Jorge, no álbum de rock semi-rural Banda dos Contentes (1976): “Lua de pau-a-pique/ pequeno reino, América/ filho de muitas léguas/ bandido, índio, América/ és uma palavra solta/ ou mesmo outra, América/ um batuque de meninos/ de pé descalço, América”. A América, segundo esse imaginário, era “este reino perdido, sumido, dividido demais”.

Cançoneta doce de flauta campestre, “Menina do Mato” abriu campina para um ano musical iluminado em 1976: “Menina que mora no mato/ não tem medo de assombração/ anda sozinha na estrada/ levando sombrinha na mão/ deixa o cabelo no rosto/ brinca com quem quer brincar/ dá um sorriso pra gente e continua a caminhar”. Veio Nem Ouro, Nem Prata, um disco de mata fechada, que inaugurou o cancioneiro afro-brasileiro de Ruy, com odes seminais aos orixás em “Quizumba de Rei” (“a coroa de ouro é mariô/ Ogum é tata, é tata”), “Xangô, o Vencedor” (“por detrás daquela serra/ tem uma linda cachoeira/ é de meu pai Xangô/ que arrebentou sete pedreiras”) e a faixa-título até hoje popular, mais um ápice na obra de Ruy Maurity: “Eu vi chover, eu vi relampear/ mas mesmo assim o céu estava azul/ samborê, pemba, folha de jurema/ Oxóssi reina de norte a sul”.

Coisa rara à época, “Nem Ouro, Nem Prata” era cantada no feminino (em contraponto à “Conceição” machista de Cauby Peixoto) e em afro-brasileiro: “Sou brasileira faceira, mestiça, mulata/ não tem ouro nem prata o samba que sangra do meu coração/ tua menina de cor/ pedaço de bom carinho, entrei no teu passo, malandro, eu não sou como a tal Conceição/ chega de tanto exaltar essa tal de saudade/ meu caboclo moreno, mulato, amuleto do nosso Brasil/ olha, meu preto bonito, te quero, prometo, te gosto pra sempre do samba-canção ao primeiro apito do ano 2000”. O sabor afro-brasileiro prevalecia também em “Raça Nascente”, contemporânea do Canto das Três Raças (1976) de Clara Nunes: “Salve a colorida raça nascente/ em noite de lua cheia e batucada/ sem o orgulho de ser branco/ nesta terra morena e conquistada/ que é o canto do povo brasileiro/ neto de Pindorama e do Quilombo dos Palmares”.

Nem Ouro, Nem Prata é todo brejeiro, mí(s)tico e inspirado, mesmo em faixas mais urbanas, como a feirante “Matuta Veia” (“hei d’i na vila domingo de feira/ pra mode vê se compro mio pro fubá/ minha famia tá no meio / meus fios esperando a hora de casá”), o bêbado samba “Bebemorando” e “Segunda-Feira das Almas” (lançada em 1971 por Eliana Pittman). Embaralha sinais em momentos como “Fazendeiro do Ar“, que, apesar do que o nome pode sugerir, é uma ode a Carlos Drummond de Andrade em formato de samba-enredo, gênero que se tornaria corriqueiro na obra de Maurity dali em diante. No mais, aparecem as versões de autor para “Menina do Mato” e “Continente Perdido (Montezuma)“, essa última contendo a utopia de unidade latino-americana lado a lado com dois versos castelhanos inseridos em “Serafim e Seus Filhos” e com a linda e agregadora “Vamos Mujer“, de Luis Advis, expoente da nova canção chilena que resistiu ao golpe de Estado de 1973.

"Trabalho e Paz" (1976), com Os IncríveisO fecho de 1976 seria um grande divisor de águas. Ruy e José Jorge tomaram a encomenda de criar um jingle-mensagem de fim de ano para o governo do general Ernesto Geisel. Ao lado de “Pindorama”, também assinada pela dupla, o jingle urbano-rural (assista abaixo) “Marcas do Que Se Foi” compôs o famigerado compacto duplo Trabalho e Paz – De Mãos Dadas É Mais Fácil, do conjunto originário da jovem guarda Os Incríveis, completado por “Este É o Meu Brasil” e “Este é um País Que Vai pra Frente”, ufanismos assinados por Heitor Carillo. Noutras edições e na versão intepretada para a Som Livre em 1977 por Marcio Lott, a autoria foi atribuída a Zurana, que não era uma pessoa, mas a agência publicitária que recebeu a encomenda e era integrada também pelo roqueiro rural clubeiro da esquina Tavito e pelo letrista Paulo Sérgio Valle, irmão de Marcos Valle. “Esse ano quero paz no meu coração/ quem quiser ter meu amigo que me dê a mão (…) marcas do que se foi/ sonhos que vamos ter/ como todo dia nasce/ novo em cada amanhecer”, diziam os versos que ribombaram por muitos anos nos finais de ano da Globo.

Pindorama” quase resvalava no clamor pela união latino-americana, mas era mesmo brasileira e passava por cima do genocídio indígena e da escravização afro-brasileira: “Foi Pindorama a mãe dessa terra gigante chamada Brasil/ unida na mesma língua, no canto, na dança, destino comum/ índio, mulato e branco de todas as cores são todos por um/ a esperança de um novo amanhã  já presente no sorriso dessa gente/ foi Pindorama a mãe dessa terra gigante chamada Brasil/ unida na mesma língua, no canto, na dança, destino comum/ esse é um país que vai pra frente”. Ainda em 1977, o núcleo lançou um álbum promocional (Sorte) sob o nome Grupo Zurana, bancado pelas loterias da Caixa Econômica Federal e fundado em composições de Ruy (o baião “Grand Prix Brasil”, a moda de viola “Extração da Inconfidência” e o fandango “Grande Prêmio Paraná”), Ivan Lins e outros.

É provável que a vinculação de “Marcas do Que Se Foi” com a ditadura tenha colocado Ruy Maurity em desgraça junto a seus pares, mas o LP de 1977, Ganga Brasil, manteve intactas suas qualidades musicais e conceituais, em títulos de sabor inequívoco como a afro-religiosa “Festa Crioula“, o samba-enredo “Ganga Brasil“, o forró “Cuando Fubá”, a crueldade em casa-grande & senzala “Pai João” (“negro é bicho, não é homem/ quando o couro come fica sossegado”, “Pai João sentado em toco, cachimbo, marafo, velho curandeiro/ pros soldados nos terreiros conheceu o mais cruel dos cativeiros”) e a indígena triste e derrotada “Ubirajara”: “Guerreiro já não sou, sangraram o meu coração”, “hoje sou um povo sem deus, sem herói e nação”, “entrego o anel de prata pro meu capitão”.

“A Xepa” aparecia em versão diferente, mais longa, da eternizada na abertura da novela semi-homônima, protagonizada por Yara Cortes na personagem de uma feirante. Os versos eram (ou deveriam ser) fortes para uma novela das seis da tarde: “Final de feira, legumes baratos, meninos mulatos enrolam nos trapos os restos do prato que o dia-a-dia deixou pelo chão/ epa, mais vale uma xepa na boca da gente que o corpo doído, faminto, doente, o amor esquecido de um coração”.

Ruy persistiu no caminho da MPB rural na transição dos anos 1970 para os 1980, nos álbuns Bananeira Mangará (1978), Natureza (1980) e o já fatigado A Viola no Peito nos Olhos o Dom da Esperança Essa Palavra Mágica Que Sempre Desata os Nós… (1984) e num compacto duplo de 1981, com o rock rural “Os Males do Brasil Sã“, dedicado a Mário de Andrade.

A natureza e a cultura brigam no magoado Bananeira Mangará, entre a religiosa-romântica “Pelo Sinal” (“ela está nas preces de cada dia/ ela está nos versos da cantoria”), a roceira amarga “Bananeira Mangará” (“tá no tempo de plantar/ plantando vai ter que dar/ plantei um pé de certeza/ já colhi tanta tristeza/ de pensar dá pra chorar”), “Caroço de Angu”, “Cana Caiana” (“pele macia cor de canela/ escravo, cigano, menino/ melaço de beijo roubado”), a sanfoneira “Nos Cafundó do Zé” (“quem nasceu nos cafundó/ vai morrer nos cafundó/ de pito na boca e um pé só”, resgatada do FIC de 1972), a ecológica “Queimada” (“onde era um pasto verde agora é fogo em carne viva/ queimada é tronco de alma partida, luto no capinzal/ onde era ventania agora é poeira radioativa”, “a queimada é seiva sangrando no suor de um trabalhador”), a indígena “Lenda de Tucumã” (“e a morte nos espreita/ mesmo quando a gente deita/ sobre o leito de Tupã”), “Pirilampos e Muriçocas” (“lá da colina desce água de colônia/ lava tua fronha, limpa o meu caminhão/ tem pirilampos, muriçocas, varejeiras/ e as feiticeiras dando voltas no salão/ Maria, vê se toma jeito de moderna”), “Ponto Final” (“saia de roda tá fora de moda/ cacimba não dá água de beber”). Na guerra, violão, viola de dez cordas, sanfona e percussão fazem par com o piano elétrico e o Oberheim do modernizador Lincoln Olivetti.

A faixa “Cana Caiana” guarda uma peculiaridade: é assinada pela conterrânea do Vale do Paraíba (de Valença) Rosinha de Valença, em rara parceria com Maria Bethânia (que Zezé Motta gravaria no ano seguinte): “Meu rumo foi traçado na palma de uma palmeira/ ai, ai, ai, ai/ na beira do Paraíba do Sul, do Sul/ brinquei nos canaviais/ sou cana caiana/ dono dos canaviais”. Rosinha participa desta versão ao violão aos 37 anos, 14 anos antes da parada cardíaca que a deixou em coma por 12 anos, até a morte.

Natureza, explicito desde o título, se espalha por temas de “Batismo dos Bichos”, “A Natureza”, o forró interiorano “Intriga Municipal”, a junina “Casamento de São Jorge”, de novo “A Senha do Lavrador”, “Réquiem por uma Princesa Nagô” (“porque também sabes/ que, embora tão distantes,/ América e África são da mesma cor”), o samba-enredo “Samba Nativo”, mais a sequência cigana “Artimanhas de Lourenço, Filho de Serafim” (que utiliza a mesma melodia de  “Serafim e Seus Filhos”) e a bela “Contradança”, mais uma composição em eu-lírico feminino: “É a trança dos meus cabelos que o vento leva pra lá e pra cá/ é a pança dos companheiros me convidando pra namorar”.

A Natureza” abre o disco num repente nordestino assinado por Zé Vicente da Paraíba e Passarinho do Norte, e “Batismo dos Bichos” é uma versão de “Man Gave Names to All the Animals” (1979), de pai Bob Dylan: “Batizamos todos animais/ bem no princípio, bem no princípio/ batizamos nossos ancestrais/ bem no princípio/ há muito tempo atrás”. A Viola no Peito…, por fim, somou a um imaginário já desgastado “Sacirerê”, “Quebra Coco”, “Alazão”, “Tempo Cigano”, “Verão Portenho” e a antiga vencedora do festival universitário de 1970, “Dia 5”.

Em seus anos mais produtivos, Ruy Maurity tornou-se involuntariamente um porta-voz do êxodo rural para as capitais, característica dos anos do autodenominado “milagre brasileira” que ele traduziu em termos musicais para o “banzo” interiorano na cidade grande. Não se adaptava perfeitamente lá nem cá, e calou-se a partir de 1984, coincidentemente ou não o ano em que a redemocratização se institucionalizou no Brasil. No compacto de 1981, “Os Males do Brasil São” parecia tentar inverter o tom bovino de “Marcas do Que Se Foi”: “Pra espantar essa maldita praga viro Caipora ou Saci Pererê”.

A oficialidade militar não estava mais no comando para se servir da modernização conservadora e das odes rurais e florestais do artista, e ele nunca mais lançou nada pela gravadora da Globo. Até sua morte, lançou um único e solitário CD, o artesanal De Coração (1998). Ali, com voz ainda jovial, Ruy se dividiu entre regravações (“Serafim e Seus Filhos”, “Pelo Sinal”, “Comportamento”, “Menina do Mato”) e inéditas como “Tempos de Menino”, “Estradas do Interior” (versão de um country de John Denver, reaproveitada da trilha da novela A História de Ana Raio e Zé Trovão, exibida na Rede Manchete em 1990), “Ronca o Fole”, “Com a Viola nas Mãos” e a faixa-título, que homenageia carinhosamente o “velho Lua” Luiz Gonzaga, iniciador de uma tradição sertaneja que Ruy procurou manter sempre viva. Ruy Maurity retratava o Brasil de costas para o litoral, frente a frente com o interiorzão que afinal ocupa a maior parte de seu território.

 

 

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