“A gente corre na BR-3/ a gente morre na BR-3”, cantou em tempo de soul music o rojão black power Toni Tornado, na rota para vencer a etapa nacional do Festival Internacional da Canção (FIC) de 1970 na Rede Globo. Em alta de popularidade, o ditador de plantão, Emílio Garrastazu Médici, foi apertar a mão do negão e lhe pedir que vencesse também a fase internacional da competição (o que não se concretizou), como prova fotografia resgatada por Zuza Homem de Mello no livro A Era dos Festivais – Uma Parábola (2003).

Em novembro de 1970, o colunista social Ibrahim Sued complicou a vida do general Medici em página da revista Veja, ao insinuar que o foguete que rasgava o céu, o Jesus Cristo feito em aço e a viagem multicolorida de que falavam os versos de BR-3 se referiam ao uso de heroína, e não à estrada federal de ligação entre o Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

Talvez fossem mais danosos à imagem da ditadura civil-popular e de seu aparato de mídia e propaganda outros versos da música escrita por Antonio Adolfo Tibério Gaspar (ouça lista de canções abaixo *) e interpretada por Tornado com o acompanhamento coral negro do Trio Ternura: “Há um crime no longo asfalto dessa estrada/ e uma notícia fabricada pro novo herói de cada mês”. Mas foi a cruzada moral antidrogas que ajudou a levar de roldão as carreiras musicais em compasso black is beautiful de Tornado, Wilson Simonal e Evinha, entre outros, todas orbitando então em torno do conceito macunaímico de “pilantragem”. Embora não-negros, Adolfo e Gaspar deslizaram na mesma enxurrada.

Décadas mais tarde, em 2002, o até então apenas compositor Tibério Gaspar lançou um disco solo em que incluiu uma faixa em tempo de rap chamada “A História da BR-3”, que na introdução ele classificou como “a verdadeira história da BR-3”. A letra do rap amplamente anônimo é direta e reta: “A BR-3 era somente uma estrada/ que ligava o Rio de Janeiro a Belô/ mas alguém falou que era a melô da picada/ e um cara mau-caráter publicou o caô/ dizendo que essa estrada era uma veia do braço/ que era um papo que rolava entre drogado e vapor/ (…) a BR-3 era o que a gente vivia/ em cada curva um crime, em cada reta um terror/ o dia virou noite e toda noite era fria/ a gente ficou surdo, mudo e cego de dor/ havia dedo-duro, pau-de-arara e censura/ e muita gente boa se mandou do Brasil/ a lei da ditadura era porrada e tortura/ pra quem não concordasse baioneta e fuzil/ a gente corre na BR-3/ a gente morre na BR-3”.

Capa de  "Alegria Alegria Vol. 2 ou Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga" (1968), de Wilson Simonal, com "Sá Marina"
Capa de “Alegria Alegria Vol. 2 ou Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga” (1968), de Wilson Simonal, com “Sá Marina”

Com a derrocada da pilantragem, ruíram juntos o supostamente conservador Simonal (que no processo de reconstrução histórica da ditadura anterior se tornaria símbolo brasileiro do comportamento direitista, delator e traidor da pátria) e o declaradamente esquerdista Tibério, que em 2008 chegaria a se candidatar a vereador carioca pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), o mais afrobrasileiro dos partidos progressistas (e não-progressistas) daqui. Mais coisas uniram e unem os dois do que supõe nossa vã filosofia saudosa do hit pilantra dançante “Sá Marina” (1968), que Gaspar e Adolfo compuseram para Simonal cantar e suingar – e que em 1970 acabou ganhando versão em inglês na voz do gênio soul Stevie Wonder, sob o título “Pretty World”.

Capa de "Música Nossa" (1967), em que Agostinho dos Santos apresentava a nova geração de compositores brasileiros, com "Caminhada", de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar
Capa de “Música Nossa” (1967), em que Agostinho dos Santos apresentava nova geração de compositores brasileiros com Milton, Edu Lobo, Chico Buarque, Gilberto Gil, Dori Caymmi, Guarabyra – e “Caminhada”, de Adolfo e Gaspar

Atuando como compositor da produtora Brazuca, de Antonio Adolfo, Tibério Gaspar ajudou a pigmentar a música brasileira de negra, à revelia da própria pele clara. “Caminhada”, a primeira composição célebre da dupla, saiu para o mundo em 1967, da garganta de Agostinho dos Santos, bossa-novista negro como as noites que não têm luar e padrinho de vozes e identidades pretas como as de Simonal e Milton Nascimento.

Simonal e a Brazuca eram um protótipo de mainstream na virada dos anos 1960 e 1970, tal como o era a então jovem Rede Globo. A dupla Adolfo-Gaspar tornou-se usina fornecedora de temas de festival para a emissora de TV que era afiliada preferencial da madrinha ditadura. Agostinho dos Santos cantou a grandiloquente “Visão” na competição de 1968 (a mesma edição bipolarizada entre a canção de exílio “Sabiá” de Chico Buarque Tom Jobim e o hino de protesto “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores” de Geraldo Vandré).

“Um reino sem um rei/ um povo sem nação/ um rufo no tambor/ pra um feito sem herói/ um homem não constrói se vive na prisão/ um tiro de fuzil dispara imensa dor/ desponta o fim/ explode o céu/ derrete o sol/ desmancha em luz/ tanques e canhões/ falece o amor”, agulhava “Visão”, que ainda em 1968 ganharia versão exemplar na voz do índio uruguaiobrasileiro Taiguara.

Capa de "Antonio Adolfo & A Brazuca" (1969)
Capa de “Antonio Adolfo & A Brazuca” (1969)

A fórmula de loa algo cafajeste às figuras femininas de “Sá Marina” e “Meia-Volta (Ana Cristina)” (gravada por Claudette Soares em 1969) animou Adolfo a Brazuca em grupo musical e inscrever “Juliana” (da dupla Adolfo-Gaspar) no FIC de 1969. O combo Antonio Adolfo & A Brazuca faturou a segunda colocação no festival, sob versos ingênuos-maliciosos sobre a menina que “se fez mulher” e “viu o amor chegar”. No mesmo ano, em consonância com a brazuca-simonalmania, Elis Regina gravou, de Antonio & Tibério, a toada moderna quase psicodélica “Giro”.

Capa de "Eva 2001" (1969), de Evinha
Capa de “Eva 2001” (1969), de Evinha

Egressa do jovem-guardista Trio Esperança e apadrinhada por Simonal em carreira solo, Evinha celebrizou em voz de veludo outra vertente televisiva da dupla de compositores Adolfo & Gaspar, ao ressignificar “Teletema” (1970), lançada primeiro na trilha sonora da novela global Véu de Noiva (1969), protagonizada pela “namoradinha do Brasil” Regina Duarte, em tempos muito anteriores ao da garota-propaganda de vassoura de João Doria Jr. Até Erasmo Carlos gravou “Teletema” em 1970, para não nos deixar esquecer que ele e Roberto Carlos também eram anexos à pilantrália de Simonal.

Capa de "Banda Veneno de Erlon Chaves" (1971), com "Eu Também Quero Mocotó"
Capa de “Banda Veneno de Erlon Chaves” (1971), com “Eu Também Quero Mocotó”
Toni Tornado e Arlete Salles, 1970
Toni Tornado e Arlete Salles, 1970

A terceira vertente das toadas modernas da dupla seria aberta por “BR-3”, que no entanto seria abatida logo que alçasse voo no FIC de 1970, lado a lado com a onipotência do padrinho Simonal, o namoro transracial de Toni Tornado com a atriz loura Arlete Salles (apresentadora do festival) e o escândalo transracial do maestro negro Erlon Chaves e da Banda Veneno em “Eu Também Quero Mocotó”, que trouxe a miss sulista Vera Fischer para sacudir os mocotós ao som afrocarioca de Jorge Ben.

A indignação das esposas moralistas dos generais e a perseguição político-policial aos, digamos, hippies drogados globalizados do FIC 1970 retardou em alguns anos a explosão de um movimento black power à brasileira, que só nos anos 1990, com os Racionais MC’s talvez fossem mais danosos à imagem da ditadura civil-popular e de seu aparato de propaganda, viveria um apogeu mais forte que a repressão político-policial.

A Brazuca tentou seguir adiante, inclusive empresariando e lançando para o FIC de 1972 a andrógina transracial Maria Alcina, ao som da festa futebolística “Fio Maravilha”, de Jorge Ben. O sonho de corporação soul-funk-samba-rock não durou muito mais do que isso, e Antonio Adolfo foi seguir trajetória virtuosa na música independente e, mui simbolicamente, apenas instrumental.

Capa de "Guilherme Lamounier" (1973)
Capa de “Guilherme Lamounier” (1973)

Ao menos artisticamente, Tibério Gaspar foi daqueles que aderiram ao desbunde pós-tortura e pós-tropicália. Seu grande momento nesse aspecto foi o álbum seminal de 1973 do hippie Guilherme Lamounier, todo composto em parceria entre os dois, com hinos marginais pacifistas como “Os Telhados do Mundo” e “Será Que Eu Pus um Grilo na Sua Cabeça?”.

Em 1974, foi Tibério quem apresentou o amigo blackpau Tim Maia à seita transreligiosa Universo em Desencanto, que culminaria na fase doidamente genial Tim Maia Racional (de Tibério, Tim gravaria “Canção para Cristina”, em 1979). Em 1977, quando a ex-“ternurinha” jovem-guardista Wanderléa se coligasse ao referencial Egberto Gismonti no LP Vamos Que Eu Já Vou, Tibério colaboraria com a corpulenta “Dança Mineira”.

Capa de "Tibério Canta Gaspar" (2002)
Capa de “Tibério Canta Gaspar” (2002)

Tão errático quanto Simonal (ou mais ainda) depois que direita e esquerda se uniram para dizimar a pilantragem, o modesto compositor carioca de 1943 lançaria independentemente Tibério Canta Gaspar, em 2002, em grande medida para desafogar o grito parado na garganta d'”A História da BR-3″. O canto de cisne, antes da morte neste 15 de fevereiro de 2017, seria o álbum Caminhada (2015), com composições inéditas e revisões autorais da canção-título inaugural, de “Dança Mineira” e de “Será Que Eu Pus um Grilo na Sua Cabeça?”.

O testamento mais loqwuz fica por conta da taiguariana faixa de abertura, “A Voz da América”, que conta quem era Tibério Gaspar, com ou sem Jesus Cristo crucificado em aço: “Nasce de dentro de nós/ queima como fogaréu/ gana de animal feroz/ desde Caracas a Montevidéu/ (…) tá na lua de Gonzaga, tá na nossa saga, tá no cantador de cordel/ há tanto céu/ vem nos versos de Neruda, no mistério inca, nos pés de Pelé/ tá na cara de Guevara, tá na nossa cara/ (…) tá na marca de LamarcaMaradonaSennaPiazzolla, Tom Noel“.

O refrão de “A Voz da América” nos despede de Tibério Gaspar sintetizando o destino sempre e sempre e sempre adiado, à sombra de Wilson Simonal e de Eduardo Galeano: “Terra americana/ garra americana/ raça americana/ um grito no ar/ o mundo ouvirá a voz da América”.

Capa de "Caminhada" (2015)
Capa de “Caminhada” (2015)

 

(P.S.: além das citadas acima, a playlist para Tibério Gaspar contém gravações de suas canções por Herb Alpert & Tijuana BrassSergio Mendes & Brasil ’66Som Três de Cesar Camargo Mariano, Doris MonteiroZizi Possi, Ivete Sangalo Kid Abelha. Não são de Gaspar as faixas “Eu Também Quero Mocotó” e “Fio Maravilha”, de Jorge Ben, e “Imunização Racional – Que Beleza”, de Tim Maia.)

 

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2 COMENTÁRIOS

  1. Prezados,
    Parabéns pela linda homenagem ao nosso querido Tibério Gaspar. Obrigada por nos enriquecer com essas memorias de um poeta, compositor e amigo.

    Super obrigada.

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