Tulipa Ruiz - foto Nino Andres Biasizzo
Tulipa Ruiz - foto Nino Andres Biasizzo

Habilidades Extraordinárias, o quinto álbum de Tulipa Ruiz, se inicia em altíssimo patamar, com o suingue faiscante “Samaúma”. Não é sempre que a cantora e compositora paulista deixa extravasar a raiz negra de sua música, e este é um desses momentos. Filha legítima da vanguarda paulista, ela tem se dividido entre o experimentalismo pontudo à maneira de Arrigo Barnabé e a suingueira afropaulista que seu pai, o guitarrista Luiz Chagas, ajudou a disseminar a partir da banda Isca de Polícia, de Itamar Assumpção. “Samaúma” pertence a essa última vertente.

Composta em dupla com o irmão guitarrista Gustavo Ruiz (parceiro na maioria das faixas e seu produtor desde a estreia com Efêmera, em 2010), “Samaúma” soa como o acasalamento entre Itamar e o samba-soul, o samba-funk, o samba-rock, em registro radicalmente feminino. O título é emprestado da portentosa árvore amazônica, também conhecida como “árvore da vida”, “por conta de suas raízes tubulares que rebentam em determinadas épocas do ano, irrigando toda a área e a vida que a circunda”, como ensina Tulipa.

O suingue da melodia e do arranjo de “Samaúma” é também o suingue da letra poderosamente feminina, ao mesmo tempo angulosa e cheia de groove: “Massageio a coluna na parte mais aguda de uma pedra molhada/ visito dia sim, dia não, uma samaúma de 90 metros/ que me salvou na última enxurrada/ (…) vou misturar vogais com sementes/ vou fazer uma bolsa de água quente/ vou tingir com terra os meus quadris/ deliro quando encosto meu corpo no rio/ meu verbo vira espuma, eu viro espuma/ eu viro verbo, eu viro espuma/ eu viro espasmo e fico pasma quando vira música”. Depois de cinco minutos de groove, a conclusão é prosaica e poderosa: “Cachoeira na nuca é o melhor cafuné”. Na ponte Rio-São Paulo, o mantra é encorpado pelos irmãos Pedro Sá (guitarra) e Jonas Sá (synth, Rhodes), este presente nos teclados de quase todas as faixas.

Mais uma vez herdeira de Itamar, mas também de Elza Soares no furioso final da vida, a ginga retórica encontra outro ápice em “Estardalhaço”, uma música sobre violência física e emocional, doméstica e política, que passa o recado completo sem ter nem causar o desprazer de citar o nome de você sabe quem, nem de qualquer outro agressor-predador: “Pareceu caída/ pareceu mas não caiu/ quem te viu foi quem mentiu/ quem te viu te detonou/ detonou, mas não matou/ não matou mas hematoma apareceu aqui/ ficou derrubada, ficou mesmo na pior/ quem notou não se mexeu/ quem notou não se importou/ se importou não importa mais/ mais um caso de descaso aconteceu aqui/ um vacilo, pode crer, faz um estardalhaço/ o sol/ você merece o sol”. Eles vão se arrepender de encostar a mão em mim, aprende Tulipa Ruiz.

A pegada política com elegância é o mote de outra faixa grooveada, a hiper-realista “Novelos”, “tô aqui na rua/ falta casa, rango, não tem cobertura/ (…) sem abrigo, money, sem uma estrutura”. Os tempos bicudos não deixam perder a perspectiva que distingue os homens dos vírus: “Não aguento mais essa gente se achando gente diferente da gente, diferente dos rios, diferente dos ventos, diferente dos animais”. Funk paulista com rap entoado por Jonas Sá, “Não Pira” é política de inspiração tropicalista, “tudo é perigoso/ tudo é divino, maravilhoso”: “Não pira, vai, respira/ bota o pé no chão/ não para, pera, atenção’.

No breve setor nervoso de Habilidades Extraordinárias, “Acho Que Hoje Mesmo Eu Dou” fala de expectativa e frustração sexual (“olha o tanto que eu andei pra chegar até aqui/ mal começou, nem acabou/ olha o tanto que eu andei pra chegar até aqui/ mal acabou, nem começou”) e fica entre o esculacho feminista à moda de Rita Lee e, segundo Gustavo Ruiz, os sons de Sonic Youth ou Stereolab. E “Vou Te Botar no Pau”, composta pelos irmãos com o pai e a prima Layla Ruiz, apela ao punk rock em defesa do proletariado rebaixado para precariado: “Todo mundo tá ligado que eu não tenho recebido/ vou te botar no pau/ (…) pela falta de intervalo e pelo tanto de hora extra trabalhada/ vou te botar no pau/ por acumular função e pela falta de contrato assinado/ vou te botar/ (…) por má fé e pela fraude, por faltar dignidade e humildade/ vou te botar”. Desnecessário dizer, mas o aviso-ameaça também serve para você sabe quem.

"Tulipa-Donato" (2019)O confronto feminino-masculino alcança pico de tensão e provocação em “Kamikaze Total”, composta em parceria com Liniker: “Sou kamikaze total/ meia-bomba é você/ rocha rachou, rixa real/ ego machucado, brocha”. O fogo afro se reacende com prumada mais cerebral que corporal em “Pluma Black”, em dueto com o maranhense Negro Leo, toda feita de encontros consonantais em que a letra L é a noiva: “Clitóris, glande, plasma, plágio amplo/ pluma black/ duplo eclipse, clone e mescla/ candomblé”. A última canção é “O Recado da Flor”, com letra de Celso Sim em ode ao feminino (e “as bichas e as paqueras”), tropicalista entre Gal CostaJorge Mautner. Aqui, quem se encarrega dos teclados Rhode, Moog e Hammond é o pai da matéria, João Donato, com quem Tulipa já havia gravado, em 2019, um single com a parceria “Gravidade Zero” e “Manjericão” (também com o rapper Edgar).

Na faixa-título, por fim, Tulipa lista atividades para as quais é necessário ter “Habilidades Extraordinárias”, particularmente se você é mulher: “Para sair de casa com ou sem batom/ tudo que brilhe em você/ para poder chegar em casa só”. De tema áspero, mas hipnótica e malemolente do álbum, essa se move entre o samba-soul do Erasmo Carlos de Sonhos e Memórias (1972) e a tropicália da Gal Costa da fase “como dois e dois são cinco” (1971), mais uma vez com a guitarra Banda Cê de Pedro Sá, “tá tudo incerto afinal”. No texto abaixo, a artista explica os porquês do título Habilidades Exrtraordinárias. Extra, resta uma ilusão, abra-se cadabra-se a prisão e o temor, já dizia o reggae tropicalista de Gilberto GilHabilidades Extraordinárias exala um perfume gostoso de alívio e libertação.

 

O nome do disco, por Tulipa Ruiz

Na última vez em que eu e meu irmão e parceiro musical Gustavo fomos à embaixada estadunidense para tirar mais um visto de trabalho, desta vez para tocar no Lincoln Center nova-iorquino, o cônsul cumpria a lista de perguntas protocolares durante a entrevista quando uma delas quebrou a modorra. De repente, ele perguntou se tínhamos alguma habilidade extraordinária. Como assim, habilidade extraordinária? Praticar Parkour? Trapézio? Voar? Achei bizarro e, meio sem graça, meio sem habilidade, respondi não.

Gustavo foi mais sagaz: sim, temos. Ganhamos um Latin Grammy. Ouviu- se um “whaaaaaaaaat?” demorado, seguido por um silêncio no ambiente. O cônsul ficou passado no ferro de Iansã. “Grammy winners? OMG, con-gra-tu-la-tions!”. E carimbou nosso visto na hora, perguntou nossos nomes artísticos, vibrou.

Mais tarde fiquei sabendo que existe um tipo de visto de trabalho para os Estados Unidos facilitado aos indivíduos que alcançaram a excelência nas suas áreas de atuação, seja na ciência, nas artes, educação, negócios ou atletismo. O requerente tem de cumprir uma longa lista de critérios ou ser ganhador de um prêmio com reconhecimento internacional, como um Nobel ou um Grammy.

Apreciei a chancela. Afinal, nós artistas temos o papel de embaixadores da nossa cultura e, sobretudo agora, a responsabilidade de contar ao mundo o que se passa aqui, onde somos atacados por fazer arte em nosso próprio país.

Foi importante recebermos esse reconhecimento de nossa excelência, pois fazer música no Brasil de hoje configura, sim, uma habilidade extraordinária. Ser uma mulher autora, ganhadora de um prêmio dominado pela indústria em um país onde a maior parte da arrecadação de direito autoral privilegia os homens é, sim, uma habilidade extraordinária.

Sermos autores e produtores de um dos únicos discos brasileiros independentes a ganhar um Grammy, também configura. À medida que fui incorporando a expressão ao meu dia a dia, passei a enxergá-la em muitos lugares e intuí que ela daria nome ao meu próximo disco.

Com tanta coisa acontecendo dentro e fora da gente, na sociedade, com a pandemia, com o jabá́ do algoritmo, com os devotos do fascismo, com tanto baixo astral no planeta, passei a reconhecer como habilidades extraordinárias coisas que antes via como gestos cotidianos, absolutamente normais. Como levantar da cama ou conseguir dormir, como sair e voltar para casa sozinha e em paz sendo uma mulher. Viver e resistir neste contemporâneo é, sim, mais uma habilidade extraordinária.”

"Habilidades Extraordinárias" (2022), de Tulipa Ruiz

Habilidades Extraordinárias. De Tulipa Ruiz. Brocal/Altafonte. Nas plataformas digitais a partir do dia 23.

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