Reunião da antiga diretoria colegiada da Ancine

A Agência Nacional de Cinema (Ancine) está sendo denunciada ao Ministério Público Federal (MPF) e ao Tribunal de Contas da União (TCU) por uma grossa ilegalidade em um contrato de cooperação internacional com os grandes estúdios de Hollywood. A Ancine assinou em 2021 um documento com a Motion Picture Association (associação que representa os maiores estúdios de Hollywood, como Fox, Warner Bros, Paramount, Universal e Sony) para combater a pirataria de filmes norte-americanos no Brasil.

O problema é que o acordo está eivado de irregularidades, o que torna a ação da agência brasileira também ilegal e o pacto passível de anulação a qualquer momento. Assinado com vigência de dois anos, prorrogáveis, o acordo foi aprovado por unanimidade em reunião dos diretores Alex Braga Muniz, Vinicius Clay Araújo Gomes e Edilasio Santana Barra Junior (o pastor Tutuca, que trabalhou na campanha de Jair Bolsonaro em 2018), em 16 de abril de 2021, e assinado pelo diretor presidente Alex Braga Muniz em 13 de maio de 2021. O processo administrativo, sigiloso, foi obtido pela associação de servidores da Ancine via Lei de Acesso à Informação.

Para começar, o acordo da Ancine com os grandes estúdios de Hollywood não cumpre nenhuma lei referente ao princípio constitucional da publicidade. Ao contrário das determinações legais, não é nem sequer mencionado no site da Ancine nem no Portal da Transparência; o processo administrativo está classificado como sigiloso sem qualquer amparo legal e, para piorar, o acordo não foi nem sequer publicado no Diário Oficial da União (como a lei 13.019 determina). Ou seja: é um acordo secreto, incompatível com um sistema democrático e com a Constituição Federal. A lei exige ainda que a própria organização da sociedade civil divulgue a parceria em seu site e redes sociais, o que não foi feito pela MPA, em cujo site não consta nenhuma menção ao acordo com a Ancine.

As ilegalidades de ordem burocrática são primárias. A MPA não apresentou nenhum documento para celebrar o acordo público. A lei exige 10 documentos obrigatórios, a Ancine só pediu 4, e dispensou as certidões negativas de débitos. Quem atestou a “experiência prévia” da associação foi o próprio Coordenador de Combate à Pirataria da Ancine, Eduardo Luiz Perfeito Carneiro, com aprovação do Superintendente de Fiscalização Tiago Mafra dos Santos (hoje também diretor da Ancine), que fez um parecer pomposo cheio de citações sobre a ação daninha da pirataria, mas não abordou nada do que a lei exige. Numa completa inversão de papéis, quando a lei determina que os documentos de comprovação deveriam ser exigidos pela Ancine à MPA, são os próprios Coordenador de Combate à Pirataria e Superintendente de Fiscalização da Ancine que atestam que “a ferramenta disponibilizada atende a MPA de forma satisfatória por período superior a um ano”, informação que obviamente eles não teriam como garantir, a não ser que trabalhassem para a MPA no período em questão.

A “ferramenta” de que trata o acordo é um escândalo à parte. O acordo prevê o uso, pela Coordenação de Combate à Pirataria da Ancine, da plataforma Ether, software desenvolvido pela MPA (abastecido com informações do banco de dados da MPA, supostamente destinado a identificar anúncios e sites com violações de direitos autorais de conteúdos audiovisuais), para que a Ancine consequentemente proceda às suas ações para bloqueio dos sites e punição dos responsáveis. Isso fere brutalmente a autonomia técnica da agência. Quando a atividade fiscalizatória de um órgão nacional se dá a partir de um software do principal afetado, define-se o conflito de interesses e o atentado ao princípio de isonomia, segundo a denúncia dos servidores.

“A rigor, este modelo adotado delega a competência fiscalizatória da Ancine à MPA, que decide o que deve ser fiscalizado, restando à agência a mera execução das medidas de proteção aos direitos autorais das obras determinadas pela MPA, e punição dos respectivos responsáveis. Tal delegação, além de contrariar o papel da Ancine estabelecido na MP 2.228/1, viola diretamente a Lei 13.019/14”, afirma a denúncia. A lei proíbe parcerias que tenham por objeto, envolvam ou incluam, direta ou indiretamente, delegação das funções de regulação, de fiscalização, de exercício do poder de polícia ou de outras atividades exclusivas de Estado.

“À primeira vista, pode parecer que, ao ceder o software, a MPA estaria gratuitamente prestando um favor à Ancine, quando o que na verdade ocorre é o contrário: a Ancine trabalhando para a MPA de forma gratuita, usando seus recursos humanos e operacionais em defesa não do interesse coletivo, mas do interesse privado de determinados estúdios norte-americanos, numa verdadeira privatização da atividade fiscalizatória de combate à pirataria, constituindo evidente desvio de finalidade das políticas públicas. Além disso, um requisito legal essencial de todas as agências reguladoras federais é sua autonomia técnica, que a Ancine despreza ao delegar um papel técnico essencial à MPA, através do uso de um software/plataforma sobre o qual a agência não possui nenhuma ingerência nem conhece seu desenvolvimento, não tendo como atestar sua neutralidade técnica”.

A MPA, denunciam os servidores, nem sequer tem competência para celebrar qualquer acordo de cooperação com o poder público – não possui acordos semelhantes com nenhum outro ente público do setor (Polícia Federal, Ministério da Justiça, Anatel, etc.). Também não houve a elaboração de um plano de metas, outra exigência legal, nem a formação de uma comissão de monitoramento e avaliação dos resultados.

A análise do contrato encontrou quase uma centena de infrações a artigos legislativos (Lei 13.019/14 e Decreto 8.726/16) que versam sobre acordos de tais naturezas, além do descumprimento de um parecer da Procuradoria Federal da Ancine, tantas irregularidades que fazem com que a atuação diária da Coordenação de Combate à Pirataria da Ancine configure um ilícito também diário.

 

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome