Simone Mazzer - foto Gabriela Perez

O chicote feminista enche o som de fúria já aos primeiros acordes de “Deixa Ela Falar”, canção-título do quarto álbum da paranaense Simone Mazzer. “Feche as pernas, feche a boca/ venha aqui, não seja louca/ que chatice, que se foda/ deixa ela falar”, canta, desafiando manterrupting, mansplaining, gaslighting e quaisquer rebotalhos misóginos (será coincidência que não se encontram traduções em português para essas palavras?). Em tempo de punk rock, Simone não só fala, como grita tudo que as artimanhas do machismo tentam calar cotidianamente: “Tá parecendo louca/ tá parecendo puta/ tá parecendo velha/ tá aparecendo demais”.

Deixa Ela Falar surge como um grito de libertação contra dois procedimentos simultâneos e complementares que são muito denunciados atualmente e até poderiam soar como clichês se não fossem essencialmente verdadeiros e letais: o silenciamento e a invisibilizarão das expressões, dos sentimentos e dos corpos femininos. Esses temas rondam grande parte das canções, como “Deixa Ela Falar” (de Lydia del Picchia e Luiz Rocha), “Sem Lei” (Duda Brack e Iara Rennó), “Corpo” (Luisão Pereira), “Mulheres Livres” (a partir de texto de Bernardo Vilhena), “Corporal” (petardo de Ava Rocha), “Olhos Nus” (Yantó, ex-Lineker)…

O objetivo do álbum-manifesto é iluminar não só os corpos femininos, mas o conjunto daqueles que Simone Mazzer costuma classificar como “corpos invisíveis”. Passa por várias categorias, que o álbum pode ou não citar explicitamente. Ex-atleta do vôlei e também atriz, Simone trabalhou duas décadas com a Armazém Companhia de Teatro, formada em Londrina, onde ela nasceu, mas sediada no Rio de Janeiro desde 1998. Ali, diz ter desconhecido as limitações que as indústrias audiovisual e musical iriam lhe impor quando se aventurasse por elas. “Existe vida fora do padrão”, afirma Simone em “Mulheres Livres”, dando ciência implícita dos inúmeros fatores que podem silenciar e invisibilizar alguém diante do deus-mercado e/ou da sociedade impiedosa. A marginalização imposta à obesidade, por exemplo, não é citada nominalmente no álbum, mas está muito presente no discurso de Simone: “Quando se fala no assunto, existe uma tática. Dizem que você está romantizando a obesidade, não conseguem enxergar como você querendo só ter seu espaço no mundo. Estou querendo dizer que este corpo aqui é capaz, só isso”.

Deixa Ela Falar exala modernidade pela produção e acompanhamento do duo Ant-Art, dos jovens Antonio Fischer-Band e Arthur Martau, e soa autoral como Férias em Videotape (2015), o belíssimo álbum de estreia de Simone, que chegou a ganhar notoriedade pela inclusão do abrasador “Tango do Mal” em Babilônia, derradeira telenovela de Gilberto Braga. Entre aquele momento e o atual, Simone gravou um álbum com a big band instrumental francesa Cotonete (Simone Mazzer & Cotonete, 2017, voltado à black music brasileira) e outro com os sambistas do Grupo Semente (Grupo Semente e Simone Mazzer Cantam e Tocam Nelson Cavaquinho, 2020). Com versatilidade que remete a Cássia Eller, Simone tem se dedicado, desde 2015, a reler um cancioneiro plural, no qual se harmonizam Itamar Assumpção, Assis Valente, Ronaldo Bastos, Björk, Amy Winehouse, a “Babalu” de Angela Maria, Roberto Carlos e Erasmo Carlos, Banda de Pífanos de Caruaru, Helio Matheus, Luli e Lucina, o “Eu Bebo Sim” de Elizeth Cardoso, Serge Gainsbourg, Cassiano, Tim Maia

Aos 54 anos, Simone dá continuidade a diversas tradições musicais brasileiras, em parentesco próximo com a vanguarda paulista à moda do conterrâneo londrinense Arrigo Barnabé, o engajamento político-musical de Vange Leal (sobretudo em “Mulheres Livres”), a vanguarda brechtiana de Cida Moreira (na forte “Conta Marinheiro”, inédita de Eduardo Dussek Luís Carlos Góes), a tropicália rebelde de Jards Macalé (em versão formidável da peça obscura “O Crime”, de 1970, com participação vocal do autor). A princípio nem parece se ajustar perfeitamente ao repertório, mas a festivalesca “Arrastão” (1965), de Edu Lobo Vinicius de Moraes, encontra os propósitos de Deixa Ela Falar ao vocalizar o legado de Elis Regina. “Que falta faz uma artista com esse poder de fala. Ela não estava nem aí, falava, não à toa tinha a fama que tinha, de ser chata, difícil. Claro que iam falar que era uma mulher difícil. Falavam”, explica Simone, em entrevista a FAROFAFÁ transcrita abaixo.

Pedro Alexandre Sanches: O que são os “corpos invisíveis”?

Simone Mazzer: Surgiram da necessidade minha de colocar um pouco o dedo nessa ferida da sociedade. As pessoas enxergam o meio artístico como essa coisa apolínea, esteticamente perfeita a partir de um ponto de vista e um padrão que não se sabe muito bem quem criou, mas ficou estabelecido que tem que ser assim. Na maioria das vezes é de uma maneira muito velada. Eu mesma fui me tocar disso há pouco tempo.

PAS: Pode dar algum exemplo?

SM: Posso. Você já viu alguma protagonista de novela gorda, maior? Ou então uma gorda em destaque num papel que não seja aquele gordo caricato, aquela pessoa gorda que vai ser massacrada por todas as outras, nesse tipo quase pejorativo, na maioria das vezes. São raras as vezes em que isso não acontece.

PAS: Você percebe isso desde sempre, ou às vezes fica invisível até para você própria?

SM: Aprendi a enxergar isso. Comecei a perceber acho que até bem cedo que acontecia. Até porque eu não podia assistir esse tipo de coisa, não me fazia bem. Não achava nem graça, na verdade. As pessoas estão rindo disso, é tão chato passar por essa situação. Isso foi na adolescência, e depois fui entendendo o quão difícil é fazer parte desse meio. Trabalhei no Armazém Companhia de Teatro por quase 20 anos, e, por estar ali, em solo protegido por uma companhia, pessoas que são amigas, uma família, eu nunca tinha sentido isso. Ali era um lugar tranquilo para mim, nunca tive esse tipo de questão. E de repente, quando me afastei da companhia para voltar a trabalhar com música e me vi fora desse nicho confortável, comecei a perceber certas coisas com que eu não tinha contato. Era bem ignorante mesmo nesse sentido. E comecei a perceber como é difícil. Aparecia uma personagem para mim com esse humor pejorativo, dessa coisa gordofóbica. Essas questões me incomodam profundamente, eu jamais gostaria de passar isso para quem está assistindo. Então sempre deixei muito claro que não topo qualquer coisa. Quero entender o que é, por que é, como é. Acho muito sério, machuca muito as pessoas. Pode ser engraçado para muita gente, mas para quem está sendo citado essa representação machuca demais.

PAS: Os papéis no teatro não passavam por essa questão?

SM: Para mim não, os personagens eram cuidadosamente pensados para cada pessoa, não tinha essa preocupação com o famoso physique du rôle. A gente tinha uma preocupação de atuação, capacidade para interpretar. Não passava pelo viés do tipo físico. Tive papéis de protagonista, fiz Esperando Godot. Sempre tive destaque na companhia. Eu nunca tinha parado para pensar nessa questão. Como a companhia sempre exigiu muita disponibilidade, eram raras as oportunidades de fazer algum outro trabalho em cinema, numa série ou na novela. Quando rolava, era tudo muito pequeno, instantâneo. Não dava nem tempo de pensar em construção de personagem. Mas era nesse momento de convite para participações que apareciam convites que não me agradavam, para fazer essa gorda para as pessoas tirarem sarro.

PAS: E você não pegava esse tipo de papel?

SM: Não, não pegava, nunca curti. Não gosto de assistir esse tipo de coisa, então não estou a fim de fazer. É claro que se é um tipo de humor que me interessa, que vai criticar inclusive isso, aí eu faço feliz. Mas normalmente não era isso que acontecia. Até que, aos poucos, fui conquistando espaço. Não comecei ontem, tenho anos e anos de tarimba. E tive muita sorte de trabalhar com pessoas no cinema, por exemplo, que contradiziam totalmente, não existia essa preocupação também, pelo contrário. Quando fui fazer o filme Nise – O Coração da Loucura (de Roberto Berliner, 2016), fui convidada justamente por ser muito parecida com a personagem que faria, em tudo, no tamanho. Era uma mulher gorda, abrutalhada, e quando fui estudar vi que realmente a gente se parecia muito. Isso foi maravilhoso, porque também tive que extrair dessa personagem uma delicadeza que, dentro daquele contexto, poderia ser uma característica que ninguém nunca via numa mulher esquizofrênica. Trabalhar com essas pessoas e também contribuir para que elas abrissem um pouco o olhar para isso foi muito importante para mim, opa, acreditaram que eu consigo, então vou por aqui. A partir desse trabalho, fui sendo convidada por pessoas que entenderam isso, pessoas corajosas, eu diria. Fui chamada, por exemplo, para fazer Me Chama de Bruna (série televisiva da Fox Premium, 2016-2020), em cima da história de vida da Bruna Surfistinha, uma garota de programa, um tema que sugere sexo, desejo, sensualidade, aquela coisa mais erotizada. Fui convidada para fazer uma personagem que na primeira temporada apareceu muito pouco, na segunda ganhou um espacinho legal, começou a crescer dentro da trama, quase no núcleo antagonista da Bruna, o contraponto, que era muito legal. E na terceira e na quarta, era quase um spin-off, porque caiu no gosto das pessoas que assistiam. Qualquer pessoa podia fazer essa personagem, podia ser preta, magra, qualquer pessoa. Isso é muito gostoso, sabe?, quando você consegue interpretar uma pessoa. Quando terminou a série fiz questão de agradecer as pessoas pela coragem. Tenho certeza que não foi fácil me encaixar ali.

PAS: Existe uma conquista coletiva por trás disso, que envolve também gays estereotipados, os papéis reservados aos pretos e assim por diante, não?

SM: Sim. Eu me arrepio, porque já fui parada na rua por mulheres, coroas, dizendo “preciso te agradecer, porque é muito importante ter você nesses lugares”. Isso para mim não tem preço. Comecei a cada vez mais querer que as pessoas entendam que isso é assim, para, quem sabe, daqui a pouco a gente não ter mais esse tipo de problema. Vou acumulando questões, agora sou uma mulher de 54 anos, não faço mais personagens de 30 anos, só se forçar a barra. As coisas vão ficando mais restritas, o mercado vai afunilando. Preciso correr atrás para conseguir fazer o que gosto. Sei que não estou inventando a pólvora, mas ao mesmo tempo é um lugar muito pouco visitado. Isso é um fenômeno hoje em dia, o mundo está num vai-não-vai, e ainda as pessoas têm vergonha de sair na rua porque são gordas, não vão à praia porque não conseguem botar biquíni, não têm espelho em casa porque não conseguem se olhar. Isso é real. Não estou inventando, já participei de grupos de terapia e vi mulheres falarem isso, “não saio de casa sem meu marido, se ele não for comigo não vou sair”, “estou há seis meses sem fazer um passeio”. Tudo é muito cruel. E, apesar de a mulher gorda ser um lugar muito comum, fala-se muito pouco sobre isso ainda. E, quando se fala, existe uma tática. Acham que você está romantizando a obesidade, não conseguem enxergar como você querendo só ter seu espaço no mundo.

PAS: Como é isso de romantizar?

SM: É falar que é legal ser gorda, olha como é legal, sou atriz, canto. Não é com essa intenção que a gente faz isso. Estou querendo dizer que este corpo aqui é capaz. Só isso. Mas as pessoas acham que é um corpo resultado de falta de força de vontade, de uma pessoa preguiçosa, doente, que se acomodou na vida. As pessoas têm isso muito profundamente enraizado nas suas estruturas. É um preconceito estrutural para caramba. Então, quando aparece uma pessoa que briga, ela fala assim: não, eu tenho direito. Posso não dançar balé nas pontas dos pés, como muitas dançam, mas posso dançar balé se eu quiser. Queria ter dançado quando era pequena, não dancei porque sempre fui a maior da família, da turma, da sala, sempre fui a mais gorda, tem isso de não permitir a presença de uma pessoa gorda. Se essa pessoa for uma mulher gorda, vai piorando. Se for uma mulher preta gorda, nossa senhora. Se for preta, mulher, gorda, portadora de alguma deficiência, vai ficando cada vez pior o mundo para essas pessoas.

PAS: E se ela é uma grande cantora, o que acontece?

SM: Olha, estou tentando fazer acontecer, quero que as pessoas ouçam. Na música a gente tem um mercado cruel. Com internet, então… Lanço um disco numa sexta-feira junto com 65 mil lançamentos, e no sábado ninguém acha mais aquela música, já está ali naquela nuvem de dados. Isso é ainda é um pouco difícil de entender ainda para mim. Sou muito analógica. Mas estar nesse campo de batalha, atrás desses espaços, faz parte da minha vida há muito tempo. De vez em quando consigo romper um pouquinho que seja essa bolha. Vamos fazer The Voice? Vamos, vamos fazer The Voice, que vai ser importante, vou sair da bolha. Não tenho absolutamente nada a perder, vou entrar Simone Mazzer e vou sair Simone Mazzer, não interessa em que estágio do programa isso vai acontecer. E foi exatamente o que aconteceu, consegui entrar na casa de um monte de gente que nunca tinha ouvido falar de mim. Infelizmente não pude aproveitar na prática, no palco, porque foi no primeiro ano da pandemia, nem vacina tinha. Mas foi muito legal saber que o que faço causou curiosidade em pessoas que nunca tinham ouvido falar de mim.

PAS: Confesso que não assisti, em que estágio você saiu?

SM: Não fiquei, eu saí (ri).

PAS: Soa absurdo para mim. O que aconteceu?

SM: Aí acontece o gosto popular mesmo. Também não sei, as escolhas vão ficando muito acirradas. Fui até a semifinal, se não me engano. Fui bem, no primeiro dia achei que não ia entrar. Quando fui cantando, cantando, não virava ninguém, falei: é, fodeu (ri). Foi positivo para mim nesse sentido de furar uma bolha importante, que é o que acontece quando faço um filme. Aos pouquinhos estou indo, é difícil achar um cantinho para mim.

PAS: Esse é o tema principal do álbum Deixa Ela Falar?

SM: É. Concentrei no disco, eu queria falar dessas pessoas. Claro que acabo falando deste lugar de mulher gorda, mas também quero poder falar das mulheres em geral, dos corpos invisibilizados, violentados, silenciados, porque a gente está no mesmo barco. Pode não ser um lugar de fala meu, mas quero muito falar da pessoa que morre por homofobia, do que eu não sofro na pele, mas vejo, tenho amigos, pessoas que amo, que diariamente sofrem racismo, homofobia, transfobia. Não dá, não consigo ficar quieta mais. Comecei a separar umas músicas que tinham a ver com essa potência de fala. Posso falar sobre como entendo minhas experiências? Que músicas posso trazer para comunicar isso? Tenho certeza que muita gente vai se sentir dentro da história também. Aí comecei a conversar com alguns artistas que admiro demais, e as músicas começaram a aparecer, cada um no seu quadrado, no seu estilo de escrita e composição, e foi ficando um negócio muito legal. Junto a isso eu já vinha trabalhando com o duo Ant-Art, de músicos muito jovens.

PAS: Quem são eles?

SM: São dois meninos que eram bem novinhos quando os conheci, Arthur Martau tinha 17 anos e toca comigo desde então, hoje tem 24. E Antonio Fischer-Band é amigo de infância dele, chegou um pouco depois, e a gente começou a fazer algumas coisas. Fizemos muitos shows aqui e ali, tentando experimentar a sonoridade, porque era muito diferente para mim, dois músicos que tocavam tudo que você jogasse na mão deles: guitarra, baixo, bateria, teclado, piano, sintetizador, programação eletrônica, base de computador. Eu tinha uma orquestra junto comigo. Na pandemia, resolvi que precisava gravar alguma coisa com eles, porque dava muito certo. Convidei os dois para produzirem o disco, usar essa coisa mais tecnológica a seu favor e extrair o máximo de efeitos possíveis, é um mundo ao qual eu não pertenço mesmo, mas é muito, muito interessante ver o negócio funcionando. Tem tudo dentro dessa máquina, basta você ter tempo e vontade de pesquisar e ter esse atrevimento de usar. É uma característica que eles têm, e que me interessa muito.

PAS: O álbum começa em alto impacto, um rockão sobre manterrupting. Por quê?

SM: Cara, a minha praia é essa. Quando comecei era isso que eu ouvia. Essa música tinha que ser um som daquela banda que fica 12 horas por dia tocando na garagem, trancada num cubículo, aquele alto-falante ruim, com microfone que estoura, ninguém se ouvindo. Era essa a ideia. É um punk rock que eu queria ter tocado quando tinha 16 anos (ri). Estou adorando poder fazer isso agora, tem tudo a ver com o que a música fala. Virou uma tatuagem, inclusive. Essa música existia numa peça de teatro chamada Outros, do Grupo Galpão, de Belo Horizonte. É um povo muito amigo por conta de eu ter trabalhado no Armazém, os dois grupos sempre foram muito irmãos. Em 2018, eles vieram aqui para o Rio de Janeiro com essa peça, fui assistir. Enquanto a gente entrava na sala eles estavam em cena já, cantando essa música com uma banda. Eu estava com meu marido, um olhou para o outro e falou: ó. Eu tinha acabado de lançar “Corpo” (2018), que está neste trabalho, mas originalmente foi um single.Na hora que ouvi essa música falei: parou, quero essa para mim também.

PAS: “Mulheres Livres” foi feita por um homem, Bernardo Vilhena.

SM: Não acredito nesse comportamento de “sou mulher, odeio homens, sou feminista, quero que os homens morram”. Não sou essa pessoa, para mim o feminismo funciona quando tenho os homens do meu lado também. É um acordo ali, eles também têm que entender, não ficar de fora olhando o que está acontecendo, mas junto, concordando com o que a gente está pedindo. Eu estava pesquisando repertório e apareceu Bernardo Vilhena, que conheci durante a pandemia. Lógico que eu conhecia a obra dele e era muito fã de tudo que ele fazia. Imagina, ele dirigiu Lobão em Vida Bandida (1987). É autor de “Menina Veneno” (Ritchie, 1983), como não vou amar? Conversando com ele, falou que tinha uma letra, que estava lá esperando alguém que cantasse com essa pressão. Cara, Arthur fez a música, e superfuncionou. Trocamos “almas frágeis” para trazer o negócio mais para cá, encaixar melhor na minha boca. Entrei mais com essa pulsão, Arthur, por ser de uma geração mais onde estar ao lado das mulheres já vem sendo trabalhado com intensidade, também mudou umas palavrinhas-chave aqui e ali.

PAS: “Corpo” chegou como?

SM: Apareceu para mim em 2015, quando estava estudando o repertório para Férias em Videotape. Mas ela não encaixava naquele disco. Luisão Pereira, que é o autor, mandou uma demo cantando. Passou um tempo, eu queria fazer um single, estava naquela fase de que não adianta lançar disco, vamos lançar single. Tem essas ondas, né? Lançamos o single em 2018, é meio um embrião do disco de hoje. Foi a partir dessa música que comecei a ter a consciência de que podia falar dessas coisas sem ser panfletária. Existe aí um ativismo meio de butique também… Esse foi o jeito que achei de me colocar nessas questões de pleitear respeito, dignidade e representatividade para esses corpos.

PAS: Além de falar, você também está deixando falar outras mulheres compositoras, Lydia deu PicchiaDuda BrackIara RennóAva Rocha. Essas músicas foram feitas para você?

SM: Foram feitas para mim. A que foi composta mesmo, de A a Z, foi “Corporal”, da Ava Rocha. Liguei para ela e disse: Ava, não é possível eu ter outro disco sem uma música sua”. Gosto demais dessa menina, acho ela muito foda. Ela adorou a ideia, “vou ver aqui o que eu faço”. E fez “Corporal”. Já conheço Duda Brack há um tempinho aqui do Rio de Janeiro, ela também é do Sul, de Porto Alegre. Um dia ela foi num show meu e depois me contou que chegou do show e escreveu um poema. E me mostrou, cara, que lindo o poema. Ela falou: “Precisava virar uma música, né?”. Entregou para a Iara Rennó musicar, e virou “Sem Lei”. A outra música, “Desmanche”, Duda já tinha semipronta, não foi feita para mim, mas se encaixava. A gente terminou de fazer, eu, ela e os meninos.

PAS: Outra mulher pairando é Elis Regina, com “Arrastão” (1965), uma canção antiga, que entra num contexto muito moderno. Por que você incluiu?

SM: Exatamente por isso. É uma música que remete muito a Elis Regina, uma mulher que falava bem para dedel. Recentemente eu estava revendo entrevistas dela, nossa, que falta faz uma artista com esse poder de fala. Ela não estava nem aí, falava, não à toa tinha a fama que tinha, de ser chata, difícil. Claro que iam falar que era uma mulher difícil. Falavam.

PAS: O mesmo que aconteceu com Dilma Rousseff décadas depois.

SM: Exatamente. Eu queria muito ter ela falando também nesse disco, e quis ser muito no sapatinho, ficar muito na minha, porque essa é uma daquelas canções que a gente não deve mexer.Os meninos trouxeram tudo que gosto no trabalho deles para o arranjo de “Arrastão”. Gente, não tenho nem o que fazer, vou quietinha fazer o que tenho que fazer. Nunca, jamais igual a ela, porque sou outra pessoa, mas fala do lugar de protesto, dessa mulher que cantou isso lá em 1965 e deixou todo mundo de cara.

PAS: Você segue um caminho muito particular na escolha de músicas para regravar, não?

SM: Pô, deixei minha Björk de fora dessa vez. Mas ela estava lá.

PAS: Como se junta Björk, Amy Winehouse Angela Maria? Que lógica orienta essas escolhas?

SM: É a mais óbvia possível, é o que eu gosto de ouvir. São as mulheres que me inspiram, minhas influências. Para mim é impressionante o que Björk faz, esse último disco é muito maluco. Gosto demais dela. Tinha uma música dela no repertório, mas tive que escolher, dessa vez dona Björk vai esperar um pouquinho.

PAS: Como aconteceu o disco com (a banda francesaCotonete?

SM: Num certo momento, fui fazer um espetáculo com uma companhia de teatro da França. Eles vieram para o Brasil, fizeram uma seleção para encontrar uma atriz que cantasse. Fizemos aqui no Rio, acabou, um beijo, tchau, eles voltaram para a França, segui minha vidinha. Mas eles conseguiram um subsídio do governo francês para levar a peça para lá, e lá vou eu. Nunca tinha saído do país. Fiquei cinco meses lá. Nesse período, conheci uma galera, um grupo de músicos que se chamava Cotonete. Eles são um grupo instrumental, e são apaixonados pela música brasileira, de vir constantemente para o Brasil, fazer oficina de percussão no Recife, na Bahia. E se a gente gravasse um disco, como seria? Para eles era difícil vir para o Brasil, são nove. Para mim é fácil. Fácil não é, mas dou um jeito de vir, sou eu sozinha. Era só eu ir. Dei um tempo de seis meses para levantar a grana da viagem, fiquei separando meu repertório aqui e eles, o deles lá. Assim a gente foi construindo o repertório, meio francês e meio brasileiro. Foi ótimo apresentar para eles coisas que não conheciam. Óbvio que eu não conhecia nada, só conhecia uma que eles me mostraram, do Serge Gainsbourg. E a gente foi fazendo essa mistura. Então eu fui, fiquei 15 dias, gravei e trouxe para o Brasil para mixar, que era a minha parte. Gravamos lá, eles editaram, e eu finalizei.

PAS: Então foi você que escolheu as músicas brasileiras? Por que elas tem um direcionamento mais para a black music?

SM: É o que eles fazem, o som que eles gostam de fazer. Têm uma influência grande da Banda Black Rio, da Vitória Régia (banda de Tim Maia). Gosto muito desse som também, e nunca tinha feito nada por aí. Depois a gente conseguiu trazê-los para cá para fazer um show de lançamento. Espero ir fazer esse show lá, até hoje não rolou.

PAS: Como aconteceu a participação do Jards Macalé?

SM: Fui na casa dele, ele estava lá dedilhando o violão e começou a cantar “O Crime” (1970). Eu nunca tinha ouvido, é linda demais. Veio a história do show juntos, a gente colocou no repertório. É uma música difícil de interpretar, tem umas questões técnicas, mas estudei muito, gostei do resultado, resolvi colocar no disco também. Ela fala dessa coisa passional, que também é muito do universo feminino.

PAS: Simone Mazzer é uma artista underground?

SM: Acho que não, viu? Eu gosto de poder ser muito flexível. Uma hora vou cantar “Careless Whisper” (1984) do George Michael e na sequência canto “O Crime”, aí quero cantar “Babalu” (1958) da Angela Maria. Falando assim parece que as coisas são muito soltas, mas tudo é muito pensadinho. Consigo traçar um roteiro que acabe formando um conceito. É possível que as pessoas me coloquem no underground, porque não estou na grande mídia, justamente porque não tenho um estilo definido.

PAS: Também por causa dos preconceitos na área musical?

SM: Sim. Também acontece, não é só no audiovisual que a estética impera, na música também. É só ver quem são os dez primeiros hits nas paradas de sucesso. Podia ser pop. Eu me acho superpop. Não tenho medo nem problema nenhum em ser pop, acho sensacional. Pop vem de ser popular, de tocar para caramba, o que mais você quer da vida?

PAS: Qual é sua história anterior no Paraná? De onde vem você?

SM: Sou pé-vermelho, nascida e criada em Londrina, uma terra que amo. Tenho raízes profundas, minha família está toda lá, um núcleo de amigos de muitos anos que também é família. Volta e meia eu volto para Londrina. Comecei a decidir o que ia ser da vida muito cedo, com 16 anos entrei na faculdade de educação física. Era atleta, e queria fazer isso, era minha opção de vida. Fui indo bem até, e quando me machuquei não havia os protocolos que se tem hoje para tratamento.

PAS: Qual esporte você fazia?

SM: Eu jogava vôlei. Era central, falava meio de rede. Para a época eu era uma das mais altas do time, hoje eu seria líbero, é a única coisa que ia sobrar para mim. Fiquei nessa, sendo atleta, por muitos anos. Mas me machuquei, e resolvi parar. Fiquei quase um ano parada tratando o joelho, e quando voltei tinha muito medo, porque ele não voltou legal. E aí foi uma depressão horrorosa. Um grande amigo meu me levava, para ver se eu melhorava um pouquinho, nos ensaios que ele fazia cantando em coro cênico. Eu ia lá, ficava assistindo, assistindo, assistindo. Sempre tive uma relação com a música, de estar muito próxima dela, mas não fazer parte dela. No segundo grau, eu era roadie de uma banda de amigos. Ia em todos os ensaios, sabia tudo, carregava, ajudava, mas nunca passou pela minha cabeça que eu ia cantar um dia. Eu era a atleta que na escola cuidava dos amiguinhos músicos. Até o dia que a regente do coro cênico falou: “Faz um mês que você vem aqui, não quer tentar cantar?”. Comecei assim, nem eu sabia que eu sabia, mas eu sabia.

PAS: E o teatro, apareceu como?

SM: Em Londrina, o Armazém me convidou para fazer um espetáculo de rua. Eles precisavam de uma atriz que cantasse, Patrícia Selonk me ligou. Falei gente, cantar tudo bem, mas atriz? Não sei, nunca fiz. Não, vamos fazer, fui. Meu Deus, adorei, foi amor à primeira vista, por que não fiz isso antes na minha vida?

PAS: Abandonar o esporte foi uma perda ou um ganho?

SM: Ah, foi uma perda por muitos anos, acabou comigo, fiquei muito mal. Fiquei sem assistir um jogo de vôlei por dez anos. Não conseguia. Se olhava, me dava um ruim. Se não tivesse me machucado, não teria parado. Sei lá o que eu estaria fazendo hoje em dia, mas com certeza algo relacionado com a carreira do vôlei.

PAS: O processo de engordar teve a ver com isso?

SM: Não, eu já era bem pesada quando jogava vôlei. Não era gorda como hoje, mas era uma atleta grande, fora do padrão total do vôlei, com aquelas meninas compridas, altas, magras. Eu era muito forte. Claro que na hora que parei de jogar a memória corporal e muscular continuou querendo alimentar aquela energia. E aí você engorda, não tem jeito. Mas jogar vôlei foi um momento muito maravilhoso da minha vida. Quem sabe um dia eu volte, quando meu joelho permitir. Está cada vez pior, coitado.Fiquei muitos anos cantando no Buraco da Lacraia, e um dia Isabel Salgado foi assistir ao show, a jogadora de vôlei, minha ídola, era Isabel no céu e bem depois Deus. Quando essa mulher apareceu, eu mal conseguia cantar. Ela veio falar comigo depois, eu disse que jogava vôlei, que ela era muito inspiradora para mim. Ela falou: “Que bom que a gente perdeu essa atleta” (ri). Tudo tem seu tempo.

PAS: Engraçado que a outra Simone também era atleta antes de ser cantora.

SM: Exatamente, a gente andou conversando sobre isso. Ela era do basquete, formada em educação física também. É uma transição peculiar.

"Deixa Ela Falar"(2022), de Simone Mazzer

Deixa Ela Falar. De Simone Mazzer. Biscoito Fino.

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