Estuário das canções. Capa. Reprodução
Estuário das canções. Capa. Reprodução

O cantor, compositor, pianista, arranjador e maestro Francis Hime acaba de lançar “Estuário das canções” (Biscoito Fino, 2022), inteiramente autoral e instrumental. Disponível nas plataformas de streaming, o álbum ganha edição física em cd este mês.

O conjunto de canções forma uma espécie de sinfonia, em que o artista conduz o ouvinte por paisagens (“Um rio”, “Tarde macia”, “Bucólica”, “Alvorada”, “Itaipava”, “Alameda”, “Riachinho”, “Manguezal” e “Estuário”), amizades (as homenagens aos amigos e parceiros de ofício em “Canção para Raphael Rabello” e “Canção para Luiz Eça”) e amores, pela própria música e pela esposa, a cantora Olívia Hime, que volta a homenagear em “Para Olívia” – “é pra ela que eu faço todas as minhas músicas”, afirma, em entrevista exclusiva ao Farofafá.

“Estuário das canções” marca o retorno de Francis Hime aos estúdios, após o projeto que celebrou seus 80 anos de idade, em 2019. Em meio à pandemia de covid-19, o artista ia sozinho aos estúdios da gravadora Biscoito Fino, aproveitando o isolamento para desfrutar do instrumento, que elogia na entrevista, onde criou a maior parte dos temas registrados no disco – escolhidos pelas afinidades entre si, a partir de um repertório original ainda maior.

Estuário é a parte de um rio, próxima à foz, em que suas águas doces se confundem com a salgada, no encontro com o mar. Francis Hime revela o conceito do disco: “É um pouco a ideia das canções que vêm dos rios, dos afluentes, nesses gêneros todos que eu gosto de trabalhar, canções ou modinhas ou valsas, serestas, choros, […] eles chegam e desembocam justamente no estuário, desembocam no disco”, conta, na entrevista.

Francis Hime em foto de Gabriela Pérez. Divulgação
Francis Hime em foto de Gabriela Pérez. Divulgação

ENTREVISTA: FRANCIS HIME

ZEMA RIBEIRO – Como foi o processo de composição de “Estuário das canções”? Pergunto isso porque, ao ouvi-lo, pensei em um passeio pelas paisagens que dão título às faixas.
FRANCIS HIME – O processo de composição do “Estuário das canções” foi muito tranquilo, muito ligado ao piano maravilhoso lá da Biscoito Fino. Eu ia para lá, às vezes, em horários mais noturnos, e ficava tocando, aproveitando aquele piano maravilhoso e as ideias vinham surgindo aos poucos. Eu gravei, inclusive algumas músicas, fiz várias gravações com arranjos diferentes para cada uma das músicas, quer dizer, uma mesma música com diferentes arranjos, depois eu escolhi a gravação que mais me agradava e foram composições muito ligadas ao piano mesmo, à ideia de escrever para piano solo, e aproveitando as qualidades do próprio instrumento da Biscoito [Fino], né? Muitas vezes eu componho, às vezes, sem piano, pensando numa orquestra, pensando num tema, desenvolvo, mas nem sempre eu componho ao piano. Mas dessa vez, não, foram composições ligadas diretamente à execução no piano. Enfim, eu parti muitas vezes de esboços temáticos que eu já tinha no meu baú, pequenas passagens, poucos compassos, e depois eu desenvolvi isso chegando ao resultado de uma canção inteira, com começo, meio e fim, e também desenvolvendo os arranjos, com modulações, com harmonias, enfim, progressões harmônicas diferentes. Foi assim um processo muito tranquilo e muito voltado mesmo especificamente para o piano.

ZR – Como você batiza suas peças? Por que é incrível como, fechando os olhos e ouvindo tua música, a gente percebe exatamente a “Tarde macia”, “Bucólica” e a “Alvorada”, para citar apenas três.
FH – Os títulos que eu dei para as canções, eles vieram, no caso específico, quando eu organizei o disco. Eu gravei umas 30 composições, a ideia do projeto eram só músicas inéditas, e algumas delas deixaram de ser inéditas com o decorrer do tempo, então eu escolhi 12 inéditas e organizei o disco com as canções que mais me agradavam e os títulos vieram quando o disco já estava gravado, inclusive muitas canções tinham títulos provisórios. Às vezes eu dou esses títulos provisórios para me lembrar a qual música eu estou me referindo. Mas quando eu organizei os títulos, sobretudo a partir do título do disco, “Estuário das canções”, que é um pouco a ideia das canções que vêm dos rios, dos afluentes, nesses gêneros todos que eu gosto de trabalhar, canções ou modinhas ou valsas, serestas, choros, esses temas todos, esses gêneros todos, eles chegam e desembocam justamente no estuário, desembocam no disco. Esses títulos vieram, então, depois que o disco já estava pronto, e aí eu substituí os títulos provisórios pelos títulos definitivos e aí eu me prendi ao fato de que todo esse disco foi muito feito, muito ligado à natureza, de uma maneira muito tranquila, muitas vezes contemplativo, e enfim, eu fui então tentando fazer, dar um título apropriado para cada canção, no sentido de que, eventualmente eu pegava uma canção que parecia ter um movimento maior, então chama-se “Um rio”, outra um “Riachinho”, outra tem um desenvolvimento temático mais ambicioso, aí é “Alvorada”, outra é mais calma, mais tranquila, aí é “Tarde macia”, foram títulos que as próprias músicas me sugeriram a partir da ideia de um contato com a natureza, como se fosse uma sinfonia da natureza, uma coisa só, essas 12 canções.

ZR – Em 12 faixas, são nove paisagens, dois amigos e um amor. Fale um pouco de suas relações de trabalho e amizade com Raphael Rabello [1962-1995] e Luiz Eça [1936-1992] e de trabalho e vida com Olívia Hime.
FH – Eu já falei um pouquinho dos títulos na pergunta anterior, mas em relação a Raphael Rabello e Luiz Eça, eles eram muito amigos meus, o Raphael em especial, era um grande amigo, que me incentivou muito a compor, inclusive esse tema que abre o disco, “Canção para Raphael Rabello”, ele é oriundo de um esboço que eu tinha, um pequeno esboço temático que eu tinha, e que eu cheguei a mostrar para Raphael, que ele gostava muito do tema. Ele me pediu, “ô, Francis, conclui esse trabalho aí, que eu gostaria de tocar, quem sabe alguém faz uma letra”, e aí eu concluí agora, tantos anos depois. O Raphael me incentivava muito a compor, ele gostava muito da minha música. Uma vez nós fizemos um show, Olívia, Raphael e eu, um show chamado “Cada canção”, e quando nós o convidamos ele disse “eu vou participar com o maior prazer, só com uma única condição: todas as músicas têm que ser do Francis” [risos]. Então tá bom, então ele era muito amigo, me incentivava muito a compor, inclusive eu compus para ele um “Concerto para violão e orquestra”, em que ele de uma certa forma participou bastante, porque ele me dava dicas de violão, me dava sugestões de dedilhado, enfim, foi um amigo querido e que nos deixou tão cedo. E Luiz Eça foi meu mestre informal, um músico maravilhoso, arranjador, compositor, pianista extraordinário. Mestre informal porque eu ia muito lá pra casa dele, ali no Leblon, ele tinha uma casa ali na [avenida] Visconde de Albuquerque, e eu ia muito pra lá e ficava vendo os arranjos dele, e ele dava umas dicas de orquestração. Eu aprendi muito com ele, justamente vendo os arranjos, até hoje eu tenho as partituras originais de vários arranjos dele, inclusive daquele disco fabuloso “Luiz Eça e cordas” [1965], enfim, ele que lançou a música “Minha”, parceria minha com Ruy Guerra, lançou instrumentalmente, enfim, foi um grande amigo meu também. E Olívia é minha parceira de vida e de música, é pra ela que eu faço todas as minhas músicas, ela que me inspira, ela que me dá vontade de compor, de viver, ela que me traz alegria, nós estamos juntos há mais de 50 anos, eu fiz essa, eu já tinha composto para ela uma música que eu gravei orquestralmente, no meu primeiro disco da Odeon/EMI, em 1973, uma música chamada “Olívia”, no caso era uma formação orquestral, e agora essa peça que eu escrevi para piano solo, e que eu dei de presente de aniversário para ela esse ano.

ZR – Em que medida esse disco é fruto da infelizmente ainda não encerrada pandemia de covid-19?
FH – Esse disco realmente ele tem muito a ver com esse período que, assim como todo mundo, eu fui obrigado a ficar em casa, e não tendo shows, eu fiquei em casa, compus muito nesse período, foi uma forma inclusive de atravessar esse período tão difícil. Difícil duas vezes, não só por causa da pandemia, mas por causa desse governo terrível, que fez da cultura uma terra arrasada e a maneira que eu encontrei de reagir contra isso foi trabalhando, trabalhando em casa, compondo muito, eu preparei inclusive um disco com novas parcerias, um disco que vai ser gravado ano que vem. Compus muito, como eu estava falando, gravei bastante, aproveitando o piano da Biscoito, fui pra lá com máscara e tudo, sozinho. Tem muito a ver realmente com esse período em que nós fomos obrigados a ficar em casa.

ZR – Você é parceiro de Chico Buarque em clássicos da MPB como “Meu caro amigo”, “Atrás da porta”, “Passaredo”, “Vai passar” e “Trocando em miúdos”, para citar uns poucos. “Estuário das canções” permite aos ouvintes em geral conhecer outra faceta sua. Embora este não seja o seu primeiro disco de música instrumental, é esta a intenção, ao realizar um disco de piano solo?
FH – A minha intenção em fazer esse disco não é de revelar aos ouvintes outra faceta, porque não é uma outra faceta, é apenas uma forma de expressão diferente das que eu estou habituado, porque geralmente eu faço discos cantando, com músicas com letra, porque a atividade do compositor é muito solitária, então eu sinto muita necessidade de parcerias, assim como eu sinto muita necessidade de fazer shows, de estar em contato com as pessoas, com o público. Então, eu gosto muito de compor em parcerias, tenho muitos parceiros, além de Chico, como você citou, Ruy Guerra, Paulo César Pinheiro, Geraldo Carneiro, Olívia, Gilberto Gil, Capinam, Milton Nascimento, tantos e tantos, mas tem músicas, às vezes, que eu faço e não necessariamente terão letras. Inclusive, essas canções que estão nesse disco instrumental, elas poderão vir a ter letras, muitas delas se prestam a canções, enfim, para serem cantadas, como o próprio nome canção indica, e às vezes você faz uma canção que, quando o objetivo é eventualmente ter uma letra, ela só não pode, talvez, ter uma extensão muito grande, mais de duas oitavas, de repente fica difícil encontrar alguém que cante, ou então ter intervalos muito complicados, muito pouco naturais, para serem cantados, intervalos musicais. O que não é o caso para a música instrumental, você não tem essas limitações. Eu gosto muito de escrever. Além de atuar na música popular, minha atividade na música de concerto, música clássica ou música erudita, como queiram chamar, para mim ela é muito importante também, desde meados da década de 1980, quando Benito Juarez [1933-2020], antigo maestro da [Orquestra] Sinfônica de Campinas, me convidou, me encomendou uma sinfonia, desde então eu tenho tido essa atividade de escrever para orquestra, que me é muito prazerosa, ela corre paralelamente à minha atividade na música popular. Então eu escrevi vários concertos, além do “Concerto para violão e orquestra”, a que me referi há pouco, que foi tocado pelo [violonista] Fábio Zanon com a Osesp [a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo], e gravado num disco [2010] que foi inclusive indicado ao Grammy, além disso eu escrevi um “Concerto para violino e orquestra”, tocado brilhantemente pelo Cláudio Cruz, que é provavelmente nosso maior violinista no Brasil, também com a Osesp, com a condução de Isaac Karabtchevsky [maestro], escrevi um “Concerto para harpa e orquestra”, outro [“Concerto] para Clarinete e orquestra”, nenhum deles foi gravado, tem registros na internet de alguns deles; o único gravado mesmo foi o “Concerto para violão e orquestra”. Agora eu estou escrevendo um concerto, um duplo concerto para cellos e orquestra, dois cellos e orquestra, preparando para serem tocados pelo Hugo Pilger e Jaquinho Morelenbaum [como ele carinhosamente se refere ao violoncelista Jaques Morelenbaum]; então é uma atividade bastante grande que eu tenho na música instrumental, escrevendo para orquestra, e enfim, essa escrita ela caminha um pouco na fronteira, eu diria, na fronteira entre a música erudita e a música popular. Mas não é bem [interrompe-se], outra faceta poderia ser em relação à minha atividade na música de concerto, isso sim, realmente. Mas em relação à música popular, [com] esse disco eu não pretendo mostrar uma outra faceta, porque para mim é a mesma faceta, só que é uma expressão diferente, mas essas canções poderão ter letras e aí serão gravadas com letras por mim ou por outros cantores.

ZR – Muita gente assobia temas de sua autoria sem saber que são seus e as plataformas digitais não contribuem para a difusão deste conhecimento. Isso te incomoda? Qual a sua opinião sobre as plataformas oferecerem tão pouca informação à audiência?
FH – Em relação a músicas que são minhas e muita gente não sabe que são minhas, isso não me incomoda propriamente, porque isso acontece muito. Hoje em dia, com essas plataformas, isso acontece mais frequentemente. [Risos] Eu me lembro da história do Ary Barroso [1903-1964], que tinha um programa de calouros e ele fazia questão de sempre dizer quem eram os compositores, que os calouros dissessem quem eram os compositores das músicas que eles vinham cantar no programa dele, e uma vez teve um calouro que foi falar “vou cantar tal música de Vinícius de Moraes [1913-1980]”, aí o Ary Barroso falou “ah, é? E o Tom?”, aí o calouro falou “si menor” [risos], não entendeu que o Ary Barroso estava se referindo ao Tom Jobim [1927-1994], era uma música de Tom e Vinícius. Mas nessas plataformas, infelizmente, hoje em dia, elas não contribuem muito, não existe essa informação e geralmente os músicos, as pessoas que gostam de música mesmo, elas gostam muito de ter as informações, de saber não só quem são os compositores, mas quem tocou no disco. Não é propriamente saudosismo, mas era muito bom você ter aqueles encartes, ficha técnica dizendo tudo, quem são os músicos, quem tocou flauta, clarinete, violino, quem escreveu o arranjo; muitas vezes o arranjo ele é tão importante, quase tão importante feito a música. Tem aquele famoso arranjo de Radamés Gnattali [1906-1988] para “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, aquele [solfeja:] “pom pom pom pom pom pom”, e aquilo acaba sendo parte integrante da música, do arranjo, então, isso, infelizmente é pouco valorizado, e essa informação, as pessoas, os jovens sobretudo, eles gostariam de saber, têm interesse, até mesmo porque a música brasileira é tão rica, tem essa diversidade, é uma coisa que não acontece em nenhum outro lugar do planeta. Seria muito bom se as plataformas dessem mais informações, não só sobre quem compôs. Muitas vezes aparece uma música tocada e o crédito vai pra quem está cantando, música de Elis Regina [1945-1982], música de Dalva de Oliveira [1917-1972]. Então, realmente é uma pena. Mas não é que isso me incomode, o que me incomoda mais é eventualmente de ter uma gravação de uma música minha com a harmonia toda trocada [risos], mas aí também não tem importância, porque eu não ouço. Por outro lado, quando você compõe uma música, ela deixa um pouquinho de ser sua, passa a ser do mundo. Então é isso aí!

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Ouça “Estuário das canções”:

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