Assim como Bob Marley foi o primeiro ídolo oriundo do Terceiro Mundo a impor sua arte ao resto do planeta, Pelé foi o primeiro ídolo preto que o Brasil exportou para o mundo (e, mais importante ainda, para si mesmo). Até sua chegada, tínhamos um País de pretos em negação imposta ou voluntária, muitos descrentes de sua própria capacidade. E Pelé presenteou o País com todos os signos da MPB (Magnificência Preta Brasileira): tenacidade, ginga, improvisação, força, explosão, versatilidade, mistério (aquela espantosa precisão que diziam nascer de um desvio oftalmológico), encanto, beleza.

Mas é evidente que quase tudo que sei sobre Pelé não vem nem da cultura oral, mas é procedente da cultura uau.

Ouvi muito os relatos sobre o gol que ele fez após quatro chapeuzinhos na Rua Javari e disse: “Uau!”.

Ouvi sobre a partida entre Santos e Boca Juniors na Bombonera, de como ele afagou o goleiro adversário caído, marcou dois gols e a Argentina veio bufando para cima do Brasil durante os 60 anos depois daquilo e exclamei: “Uau! Então foi Pelé que iniciou a maior rivalidade do futebol mundial?”.

Ouvi as histórias sobre Pelé devolvendo faltas violentas com cotoveladas sanguinolentas e pensei: “Uau! Mais eficiente que Sartana e Django”.

E as meninas suecas que passavam o dedo na pele de Pelé para ver se saía tinta negra? Uau!

E a brincadeira da troca de camisas que Dorval e Pelé armaram entre si, somente para se divertirem às custas daqueles que viam todos os negros como iguais. Uau!

Para cabecear a bola, Pelé podia saltar mais alto que sua própria altura. UAU!

E os três berros no vestiário após a vitória na Copa de 1970 (“Eu não morri não! Eu não morri não! Eu não morri não!”). Uau!

A violência em campo, no futebol, foi inventada somente para se caçar Pelé (em uma única Copa do Mundo, a de 1966, logo após sua coroação, multiplicou-se o número de jogadores machucados por entradas desleais em relação às copas antecedentes).

Somente muito tempo depois eu pude ver alguns dos relatos da cultura uau comprovados pelos documentos, como em Pelé Eterno (2004, de Aníbal Massaini) e Pelé (2021, dos britânicos David Tryhorn e Ben Nicholas), além de em outros filmes cuja profusão de gols me fizeram ficar até mareado, de tão intensa e diversificada e implacável e até antinatural.

Nascemos com a lenda já estabelecida, mas gradativamente, para quem não é néscio, pudemos ir tateando para checar se a lenda que nos acalentou era verdadeira. Foi, portanto, aos pouquinhos que me certifiquei que a lenda era até modesta, ligeiramente empanada pelo preconceito e pela rigidez moral. Nunca pisou sobre a Terra algo nem remotamente semelhante a Pelé, basta ver 15 minutos de qualquer documentário sobre o engraxate de Bauru.

Pelé era uma maravilha tão evidente que os artistas de outras esferas passaram a segui-lo em delírio e com avidez. O primeiro foi o fotógrafo Domício Pinheiro, que imortalizou o duelo entre Pelé e as leis da gravidade e fotografou sua aura celestial. Daí em diante foi só êxtase, de Nelson Rodrigues a Andy Warhol.

Mas, durante sua existência, e mesmo depois dela, presenciamos diferentes tentativas nacionais de negar Pelé. A monumentalidade de sua façanha parece incomodar também monumentalmente, e isso tem muito a ver com o fato de que Pelé afirmou – sem nenhum direito a apelação – a excelência do artista preto brasileiro.

Avolumou-se um esforço, geração após geração, para decretarem rápido a descoberta do seu sucessor (ou mesmo o seu mais digno discípulo), e houve o desejo de enterrá-lo como indigente político. Nunca apareceu, nem um nem outro – sucessor e discípulo. E o motivo é simples: Pelé não é apenas um atleta extraordinário, Pelé é um inventor, um fundador. Pelé é também o homem e sua circunstância, como diria Ortega y Gasset. Driblou não apenas milhares de adversários, mas também a retroescavadeira do destino compulsório, o fabulário ardiloso do capital, o cerco diligente dos abutres da assimilação, o fantasma do cancelamento. E criou, praticamente do nada, todo o léxico, expandiu um sonho de multidisciplinaridade e alargou todo o repertório da mitologia do futebol que conhecemos hoje como fenômeno estabelecido.

Pelé fez 1.283 gols em 1.367 partidas, mas notem que não foram os gols apenas que o colocaram na posição de maior jogador de futebol de todos os tempos. Pelé materializou uma utopia longamente ansiada, semelhante àquela de “um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante… e pousará no coração do Hemisfério Sul, num claro instante”. Sua chegada foi a confirmação de que era isso mesmo, a maravilhosa máquina humana podia tudo, tínhamos alguns canais específicos para falar com o Divino, o homem era um mundo em construção. Depois dele, ficou tudo mais fácil, tudo mais fluido, tudo ficou mais óbvio. Portanto, mesmo sendo difícil para um País acostumado à humilhação, ao desprezo a si mesmo, garanto a vocês que é glorioso poder saudar tamanho personagem do nosso tempo, tamanha audácia, tamanho monumento. Evoé, Pelé!

Jotabê Medeiros, escritor e jornalista, é santista. Mas não foi por isso

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