Lançando álbuns ininterruptamente desde 1969, o fluminense Martinho da Vila, agora com 84 anos, expõe uma novidade de impacto ao apresentar o novo Mistura Homogênea: segundo afirma, é provável que este seja seu último álbum e que ele prossiga gravando apenas singles isolados. É marco e tanto do fim de uma era, exatamente quando o formato álbum (em disco de vinil, fita cassete, CD ou mesmo mp3 ou streaming), em voga desde os anos 1950, atravessa seu momento de maior fragilidade. Ironicamente, Mistura Homogênea evidencia que não há de ser por esgotamento criativo que o formato álbum será abandonado.
Martinho desenvolve com habilidade um dos elementos cruciais da razão de existir dos discos, o conceito, aquele mesmo que Anitta demonstrou não compreender muito bem ao lançar Kisses (2019) e colocará à prova novamente quando sair, em breve, o internacional Girl from Rio. Mistura Homogênea é conceitual desde o título, que promete diversidade com continuidade e harmonia. Assim é que o artista canta, por exemplo, com o rapper mineiro Djonga (em “Era de Aquarius”), o timbaleiro baiano Carlinhos Brown (“Oração Alegre”), os partidários cariocas Zeca Pagodinho e Xande de Pilares (“Vocabulário de um Partideiro”), a sambista moderna carioca Teresa Cristina (“Unidos e Misturados”) e o bandolinista virtuose carioca Hamilton de Holanda (“Dois Amores”), além própria prole, com Mart’nália, Preto Ferreira, Jujuh Ferreirah, Maíra Freitas, Alegria Ferreira, Tunico, Analimar Ventapane e Martinho Filho (todos juntos no samba-enredo pesadão “Canta Canta, Minha Gente! A Vila É de Martinho”).
O álbum começa bem no alto, em “Unidos e Misturados” (de Martinho, Zé Katimba e Tuninho Professor), com Teresa Cristina dividindo versos de roda de samba rural que remetem ao berço do compositor, na interiorana Duas Barras, mas sob referencial diverso que transita entre o rural o urbano: “Ô, maninha, vamos fazer um roçado/ cortar o quê?/ ervas daninhas/ tais como as quais/ que estão lá no cerrado”. Todo mundo sabe quais são as ervas daninhas fingidas de gente que se alastram pelo Planalto Central do Brasil. Roça e cidade se encontram na tarefa de “ceifar os cantos/ lá nos meios e nos lados/ trampando juntos/ unidos e misturados”.
A quinta faixa retrocede mais ao encontro das ancestralidades africanas, com Martinho e a filha Alegria, bilíngues, fundindo “Muadiakime” (ancião, em quimbundo), composta por Bonga (um martinhodavila angolano), com sua “Semba dos Ancestrais” (1985), uma parceria com a extraordinária Rosinha de Valença (1941-2004), violonista e compositora nascida em Valença, no vale do rio Paraíba do Sul, mesmo território mitológico das Duas Barras martinianas. “Se ao pisar o solo teu coração disparar/ se entrares em transe sem ser da religião/ se comeres fungi, quisaca e mufete de carapau/ se Luanda te encher de emoção/ se o povo te impressionar demais/ é porque são de lá os seus ancestrais/ podes crer no axé dos seus ancestrais”, cantam, harmonizando gastronomia, religião, emoção e libertação.
Martinho leva a cabo uma série complexa de harmonizações (não confundir com botox e estrovengas afins), que demanda audição minuciosa, atenta e sequencial, mais uma característica, hoje falida, dos velhos álbuns conceituais, hoje em dia atropelados pela pressa que temos em ouvir (todos os) singles. Gêmeo do álbum Senhora das Folhas, de Áurea Martins, Mistura Homogênea aposta apaixonadamente no total sincretismo religioso, partindo do candomblé explícito de “Zuela de Oxum” (chamado a “Iemanjá, Ogum, Pai Xangô, Iansã/ Orumilá, Omulu e Nanã Buruku/ Obatalá, Oxóssi, Ossanha e Xapanã/ …/ Exu, Erê, Ogungum, Egugum, Obaluaê” composto em parceria com Moacyr Luz, que a lançou em 2003) e desaguando no afoxé-rap-canção “Oração Alegre” que reúne as percussões de Carlinhos Brown, Deus, Jesus Cristo, Virgem Maria, Iemanjá e as vozes da ialorixá Nívea Luz, do pastor Henrique Vieira, do rabino Nilton Bonder e do líder muçulmano César Kaab Abdul. Esse último reza para Alá e afirma “eu não estou aqui para impor religião”, por sobre o som forte das batidas de candomblé.
Pouco adiante, Martinho profetiza que “messiânicos, judeus, muçulmanos, cristãos e kardecistas/ juntos com fiéis de candomblé se abraçarão no ecumenismo” quando chegar a já tão prometida “Era de Aquarius”: “O mundo não terá mais pandemia/ e ninguém com síndrome de pânico/ as diferenças sociais vão encolher/ e os preconceitos se diluirão”. A parceria aqui é com Djonga, que rima formulando um harmônico samba-rap, enquanto Martinho faz mais uma investida contra a intolerância, dessa vez de bolsonaristas, trumpistas, supremacistas etc.: “O futuro do país está bem próximo/ conservadores serão liberais/ os raivosos vão ficar dóceis/ e as doces mais adocicadas”. Entre “Oração Alegre” e “Era de Aquarius”, posiciona-se o xote nordestino norte-sul-americano “Vidas Negras Importam” (parceria com Noca da Portela), um “papo reto que eu levei com o meu neto/ uma vida negra importa/ e quem não pensa assim/ tem a consciência torta”.
Em terreiros mais descontraídos, o compositor pagodeia seu “Vocabulário de um Partideiro” com Zeca Pagodinho e Xande de Pilares, mais uma vez flertando com o rap entre rimas afro-indígenas trava-línguas em AEIOU, feito “manacás, jacarandás, jequitibás”, “rodapés, parangolés, candomblés”, “juritis, bem-te-vis, colibris/ tambaqui, lambari, jaraqui/ açaí, pequi, kiwi”, “vovós, bisavós, tataravós/ cotó, brocoió, bocó/ forró, catimbó, forrobodós”, “lundus, caxambus, maracatus/ Turiaçu, Grajaú, Bangu/ urubus, anus, bacurus”. As rimas em “U” terminam expressamente políticas, numa referência ao extermínio de pretos pobres por afogamento em períodos fascistas anteriores: “Carlos Lacerda mandou gente pro (rio) Guandu”.
Do universal ao particular, Mistura Homogênea procura homogeneizar também individualidades e intimidades, começando por tourear o próprio machismo, o mesmo que impregnou um tanto de seus sambas antigos. Cantado com o filho Tunico, o samba “Sim Senhora” (de Martinho sobre versos do poeta e letrista Geraldo Carneiro) não vai além de velha piada de “aqui em casa eu mando em tudo/ revelo a verdade agora/ tenho a última palavra/ e declaro: sim, senhora”. Esse afago ao feminino não dispensa uma ponte com a dimensão política e a antirracista: “Minha terra tem palmeiras/ que o prefeito derrubou/ o amor que tu me tinhas/ não sei onde se enfiou/ minha terra tem Palmares/ tem quizomba e bem-te-vi/ sabiá que aqui cantava/ já não canta mais aqui”.
A “Sim Senhora” se segue, ainda na seara protofeminista, o samba dolente “Viva Martina”, inédita homenagem de pai para filha, partindo de “Dona Ivone Lara/ ativista antirracista” e chegando à ternura agridoce para Mart’nália: “Musicista virtuose/ tira sons na percussão/ toca cuíca, pandeiro, berimbau e xique-xique/ xequerê e violão/ (…) é a preta andarilha/ um orgulho da família/ que samba desde pirralha/ boa filha, Mart’nália”. No samba lento “Dois Amores“, aveludado pelo bandolim de Hamilton de Holanda, Martinho ensaia falar de não-monogamia (“eu tenho dois amores abstratos/ com as duas eu divido o coração/ há dias que ele pulsa mais pra uma/ e noites que é da outra a pulsação”) e termina por revelar que as duas amantes simultâneas se chamam música e poesia. Ao final de “Meus Amores”, versos para outra musa (“América, minha bela, és a minha nova África/ construí-te com a força dos meus braços negros”) são recitados pela escritora moçambicana Paulina Chiziane, autora de Niketche – Uma História de Poligamia (2003) e vencedora do Prêmio Camões em 2021.
Antes de Mistura Homogênea terminar em tempo de samba-enredo da Vila Isabel, a regravação de “Odilê Odilá” apresenta as vozes (imaturas) de dois netos de nomes afro-indígenas de Martinho, Dandara Ventapane e Raoni Ventapane. Rara parceria com o mineiro João Bosco, o afro-samba gravado por Da Vila em 1985 e por Bosco em 1986 insinua que tudo terminará, uniformemente, em samba: “Que que vem fazer aqui, meu irmão?/ vim sambar”. A homogeneidade entre as 13 canções-conceitos se consuma pela lucidez do pensamento (inclusive musical) do muadiakime Martinho da Vila.
Mistura Homogênea. De Martinho da Vila. Sony.