Da esquerda para a direita, Lucas Nunes, Dora Morelembaum, Julia Mestre e Zé Ibarra, o grupo carioca Bala Desejo

A locução do festival anuncia Bala Desejo, “a grande banda brasileira do momento”. O grupo carioca já está no palco com seus trajes que parecem sobras do set de filmagem do filme Bye Bye Brasil, de Cacá Diegues (1980), uma Caravana Rólidei com reservas de ponte aérea. São quatro vocalistas (Zé Ibarra, Julia Mestre, Dora Morelenbaum e Lucas Nunes que, aliás, parece uma versão teen de José Wilker) e, atrás deles a banda: Alberto Continentino no contrabaixo elétrico, Daniel Conceição na percussão e Thomas Harres na bateria setentista. O trompete de Diogo Gomes (que toca nas bandas de Djavan e Gilberto Gil) faz a quinta “voz” da banda, não raro protagonizando duelos de vocalizes.

Com harmonizações vocais assombrosamente precisas e um conceito cênico vintage, que sugere um encontro entre Mutantes e Novos Baianos, o Bala Desejo tem causado impacto. Criaram até um rótulo para eles: neotropicalistas. Sua performance é focada num happening frenético, um carrossel eufórico que envolve a plateia instantaneamente, só que com um apelo mais para Eduard Sharpe & The Magnetic Zeros do que para Doces Bárbaros. Uma espécie de promessa condensada de utopia comunitária musical sem pastilhas.

Um espectador que estava nos camarotes ordenou, berrando: “Aí, fala mais com o público! Interage mais com o público!”. Aquilo parecia denunciar constrangedoramente que estávamos em São Paulo, e que havia farialimer com fleuma de contratante/pagante na plateia. De qualquer modo, é bom salientar que o que o Bala Desejo mais faz é comunicar-se com a plateia, só que não do jeito tradicional. A sensualidade dos vocalistas é espontânea e totalmente calcada em sua própria liberação pessoal, e dissemina uma potência orgástica reichiana típica de quem tem 25 anos de sonho e de América do Sul.

Do ponto de vista musical, é até honesto o rótulo neotropicalista (e procedente, já que dois dos integrantes, Lucas e Zé, tocam com Caetano Veloso), mas há informação sobressalente em todas as canções do set. Como, por exemplo, Rita Lee e o rock de Caçador de Aventuras do Tutti Frutti. Há também um suingue benjoriano por todo o show, muitas vezes explícito, outras não – quem tem uma canção chamada Comanche, toda trabalhada no baixo e percussão, não pode ser acusado de inocência – João Parahyba que o diga.

Pode-se denunciar o show do Bala Desejo por excessiva alienação política. Mais ou menos: as letras não são inócuas, contém denúncia (como o reggae Clama Floresta), carregam o questionamento necessário da retomada das pulsões dionisíacas. Mas, para não dizer que fazem pouco caso do inferno que estamos vivendo, a vocalista Julia Mestre mandou um “ELE NÃO!” gigantesco no meio de uma das canções. Além do mais, incluir uma versão semi a capela de Nana del Caballo Grande, do poeta espanhol Federico García Lorca, no meio de um show de multidão é de uma coragem inaudita. “Del caballo grande que no quiso el agua/El agua era negra/Dentro de las ramas”.

A banda só tem um disco, Sim Sim Sim (Coala Records). Em seus shows, tocam todas, já que só seguram um show mesmo. Desde fevereiro, quando já surgiram com destaque, foram criando pelo País uma legião de fãs e ritos de palco – em Lambe Lambe (na qual, na letra, citam referências de Parabolicamará, de Gil, a Transa e Araçá Azul, de Caetano, passando por Tom Jobim e Rubel), Julia Mestre pede e todos na plateia ficam agachados instantaneamente no salão, como se ensaiados (ou teria sido já em Baile de Máscaras?). Já têm fãs que viajam de cidade em cidade para vê-los.

Em músicas mais introspectivas, como em Muito Só, sobrevêm mais referências, como a Rita Lee-ríca de Desculpe o Auê e o quase jazz de Caetano Transcendental Veloso em Louco por Você. A bateria está focada num período bem determinado da batida da MPB, em especial o legado de Tutty Moreno. O baixo é mais soul, mais Azymuth. Mas não se trata de uma coisa derivativa, pastichosa, está tudo a serviço de um avanço. A banda apenas achou um jeito de atualizar coisas que não precisavam se perder, e o estrelado engajamento de notáveis & escolados na produção do seu disco não nos dá o direito de duvidar de sua sinceridade.

Por conta de sua notável evidência, o Bala Desejo estrelou na noite de ontem, no Rockambole, em Pinheiros, a segunda edição do festival do Amazon Music, o Ecoando Festival. Também foi escalado para o Coala Festival, para o MecaInhotim, para o próximo Rock in Rio, etc. Onde quer que estejam, vão vê-los: não são apenas hipsters pretensiosos, fazem uma bela conclamação e o hype é justificado.

No festival do Amazon, outro fenômeno musical foi destaque: o hip hop feminista das rappers Tasha & Tracie, blogueiras que romperam a bolha, como elas mesmo dizem, e comemoraram “50 milhões de streams” no palco ontem. O coletivo, que tem também uma MC da linguagem de libras (Zâmbia), é encabeçado pelas gêmeas Tasha e Tracie Okereke, do Jardim Peri (extrema Zona Norte de São Paulo), filhas de mãe brasileira e pai nigeriano. Elas promovem um verdadeiro arrastão de hip hop, senso fashion, lugar de fala e orgulho da favela. Mas essa história fica para logo mais adiante.

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