A mundo livre s/a. Foto: Tiago Calazans
A mundo livre s/a. Foto: Tiago Calazans

Já se vão 28 anos da estreia da mundo livre s/a em disco: “Samba esquema noise” (Banguela Records, 1994), desde o título influenciado por Jorge Benjor e particularmente “A tábua de esmeraldas” (1974), já trazia ali os elementos que marcariam a sonoridade e o discurso da banda, nome de proa do movimento mangueBit: punk com cavaquinho, samba com guitarra, letras afi(n)adas que refletiam a consciência de classe de seus integrantes, à frente o jornalista Fred Zeroquatro.

De lá para cá, a banda não esmoreceu e o Brasil provou ter um enorme passado pela frente, como apregoava Millôr Fernandes. Ao longo de diversos discos, a mundo livre s/a cantou o preconceito de autoridades contra gente pobre (“Édipo, o homem que virou veículo”), o vazamento da conversa do ministro da Fazenda de Itamar Franco, Rubens Ricúpero, com o jornalista Carlos Monforte, da Rede Globo (“Militando na contrainformação”), o massacre de Eldorado dos Carajás, a privatização de serviços essenciais no Brasil e os conluios entre a imprensa e a classe política (nacional e internacional) que ocupam boa parte do lado b de “Carnaval na obra” (1998), disco cujo título é fruto de preconceito contra os próprios integrantes da banda, e o assassinato do cacique Xicão Xucuru (1950-1998), que permeia “O outro mundo de Manuela Rosário” (2004), para ficarmos em uns poucos exemplos do engajamento de sua música.

Walking dead folia. Capa. Reprodução
Walking dead folia. Capa. Reprodução

O recém-lançado “Walking dead folia” (Estelita, 2022) é porrada na veia, é escarafunchar a ferida, é extirpar o carnegão. A capa (de Wendell Araújo) já havia dado o que falar, bem como os singles “Baile infectado” e “Usura emergencial”, que acenavam o que viria por aí. É um disco urgente, antenado com o que é o atual estado de coisas brasileiro: triste, perverso, macabro. E literalmente doente, putrefato.

É um disco sobre o Brasil dos anos recentes, sobre o desastroso e criminoso governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro e sobre a pandemia de covid-19, sua gestão irresponsável e suas centenas de milhares de mortes, a maioria evitáveis. É um disco que não perde de vista a diversão, do que talvez “Baile infectado” seja o melhor exemplo: dançante, a música tira onda com a própria banda (“o batera gosta de instigar/ lance do baixista é se lombrar/ tecladista tenta organizar/ e o cavaco é só esculhambação” e “o maestro a ponto de surtar/ com esse cavaquinho não dá, não”), cobra vacinação (“o dono da casa vacilou/ errou feio na divulgação/ nenhuma notinha nos jornais/ só se fala na vacinação”), e dá nome aos bois (“presidente é bom no jet ski/ miliciano adora ostentação/ o congresso passa álcool gel/ e a Suprema Corte lava as mãos”), um destemido manifesto, “pensando na próxima eleição”.

Em “Fake milho” (Fred Zeroquatro) cantam: “Foda-se o agro/ foda-se o tóxico/ foda-se o fake grão transgênico”. Aqui o agro não é pop. “Deus benzerá o três oitão/ que há de arrombar o teu peito/ devolvendo ao tenebroso/ essa ignara inclinação”, diz, entre latidos de cachorros, a letra de “Conselho (do pastor trans para a amante miliciana)” (Fred Zeroquatro/ P3dro Diniz/ Xef Tony), em nome do pai, do filho e dos homens de bem que apoiam e aplaudem a política armamentista bolsonarenta.

Fred Zeroquatro (voz, guitarra, cavaquinho, escaleta, violão), Léo D. (sintetizadores, teclados, programações, backing vocal), P3dro Diniz (baixo, backing vocal), Pedro Santana (percussão) e Xef Tony (bateria, backing vocal) não têm papas na língua. Poesia e bom humor, mesmo em meio ao absurdo em que o país se transformou, comparecem ao álbum, em doses generosas. “Necropolitano” abre o disco com o trocadilho certeiro: o imenso cemitério a céu aberto em que o Brasil foi transformado, dos grandes centros às mais distantes periferias, entre mais de 625 mil brasileiros vitimados pela covid-19 e outros mortos-vivos, zumbis que passeiam por aí, ainda a apoiar a necropolítica dos neofascistas que tomaram de assalto o poder no país.

Os parceiros Doralyce (que assina com Zeroquatro o “Melô das musas empoderadas da Ilha Grande”) e Jorge du Peixe (que assina “Walking dead ciranda (A maldição 2)” com Zeroquatro e Léo D.) comparecem às suas criações: a primeira, recriação de uma faixa do primeiro disco da banda, já regravada por eles em “Por pouco” (2000); o segundo canta e toca escaleta em letra que não deixa barato, é só ligar os pontos: “o dólar compra tudo e a milícia faz a festa/ os comerciantes têm bazuca nos balcões”, “é tik, é tok/ chamego nervoso/ transtorno demais”, “eu sou um ser humano, merda!”, “isso tem que ter algum valor”.

Mesmo que a pandemia acabasse amanhã, a urgência de “Walking dead folia” não o configura como efêmero ou datado, ao contrário: estamos diante de um documento sonoro de valor inestimável, no sentido de traduzir, inclusive em clima festivo, a urgência e a desgraça do Brasil real: bonito por natureza e contaminado por um ódio cego e suicida. Até quando?

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Ouça “Walking dead folia”:

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