O cantor e compositor André Mussalem. Foto: Rafaela Amorim. Divulgação
O cantor e compositor André Mussalem. Foto: Rafaela Amorim. Divulgação

“As memórias do Capitão Melancolia”, novo disco do pernambucano André Mussalem, nasce de uma premissa inusitada: o artista pensou em uma espécie de inventário de suas melhores memórias, caso uma cirurgia cardíaca, a que precisou se submeter, desse errado.

Em seu quarto disco, Mussalem é acompanhado pelo Regional da Tristeza que Balança – grupo formado (especialmente para a ocasião) por Rafael Marques (bandolim), Márcio Silva (bateria), Rubinho França (violão de oito cordas) e Alexandre Rodrigues (clarinete) – cujo nome foi tomado emprestado de verso do “Samba da bênção”, de Vinicius de Moraes. O próprio Mussalem se acompanha ao violão em “Epílogo”, que fecha o álbum.

Não param aí as referências, mais ou menos explícitas. Disco de pulsação vibrante, forjado no universo do samba e do choro, comparecem às oito faixas influências e homenagens a Edu Lobo, , Rodrix e Guarabyra, Cartola, Manuel Bandeira, Chico Buarque e Caetano Veloso, nos 50 anos de “Transa” – ao “antigo compositor baiano” ele já havia dedicado “Caetano estaciona no Leblon”, faixa de “Pólis” (2018), ironizando a “notícia” que viralizou.

Mussalem vive no Recife, embora conviva com a confusão de quem pensa que ele é carioca – talvez pela alma sambista de sua obra. “As memórias do Capitão Melancolia” foi gravado em dois dias no Estúdio Carranca, na capital pernambucana. Por telefone, o artista conversou com exclusividade com Farofafá.

Foto: Rafaela Amorim. Divulgação
Foto: Rafaela Amorim. Divulgação

ZEMA RIBEIRO – Você viveu um drama muito particular com essa questão da cirurgia cardíaca e criou um personagem para falar disso, que é o Capitão Melancolia. Mas ouvindo a sonoridade do disco, mais puxado ao samba e choro, é um trabalho que eu considerei alegre, vibrante, tem uma pulsação muito interessante ali. Eu queria te ouvir um pouco sobre essa aparente contradição.
ANDRÉ MUSSALEM – Eu acho que é por isso que ao regional que me acompanha eu dei o nome de Regional da Tristeza que Balança, né? Porque apesar de existir essa ideia de melancolia, de você cantar sobre os naufrágios da vida, o samba é a tristeza que balança, já dizia Vinícius de Moraes. Essa é uma frase dele, numa música, o “Samba da bênção”, e eu acho que o samba tem uma melancolia, mas ao mesmo tempo traz alguma coisa de felicidade, sempre. Essa linha é muito tênue, e eu acho que isso representa um pouco a minha esperança de que corresse tudo bem, né? Eu poderia fazer um disco extremamente triste, assim pesadão, mas eu acho que não era bem isso que eu queria passar, sabe? Eu queria que ali contivesse as minhas memórias, tudo aquilo que influencia. Tem muita citação ali de “Transa”, de Caetano, que faz 50 anos esse ano, passando por Manuel Bandeira, passando por uma homenagem a Cartola, homenagem a Sá, Guarabyra e Rodrix. Na verdade, eu queria fazer como se fosse uma pequena caixa, com as minhas melhores memórias, que apesar de ter essa melancolia da finitude, de você encarar sua finitude, tem esperança também que eu continuasse de alguma forma, seja através da arte, se a cirurgia desse certo, que efetivamente deu, né?

ZR – Sorte a nossa, né?
AM
– Sorte [risos]. Eu fiquei muito feliz também [risos].

ZR – Eu queria que você aprofundasse essa questão das referências, algumas que estão mais explícitas, outras implícitas nesse trabalho.
AM
– Eu sempre fiz muita referência ou a Caetano Veloso ou a Chico Buarque. Esse disco tem mais referência a Caetano. Se você pegar qualquer álbum que eu tenha feito sempre vai ter alguma coisa ali que vai referenciar Caetano e Chico, que são as duas grandes referências que eu tenho na música como um todo. Mas ao mesmo tempo, eu também tenho umas referências muito especiais, específicas na construção dos meus sambas. Então Cartola, Paulinho da Viola, Nelson Cavaquinho, são nomes assim que me influenciaram muito, na forma de querer compor um samba muito ligado ao choro, muito ligado àquela coisa de um trabalho mais poético dentro do próprio samba, muito mais do que o samba como um instrumento de diversão, mas o samba como um elemento mais poético. Eu tive a oportunidade, já que era um disco de samba, era um álbum sobretudo de samba que eu estava fazendo, e trazer sobretudo Cartola, que eu admiro muito, tenho a discografia dele toda, pra dentro do álbum, então foi uma uma referência grande. O [trio] Sá, Guarabyra e Rodrix entrou, eu gosto muito do [a dupla] Sá e Guarabyra, assim, do rock rural deles, e eu tava escutando o “Mestre Jonas” [Sá/ Rodrix/ Guarabyra] um pouco antes de compor o “Capitão Melancolia” [faixa que abre o álbum], aquela coisa do Mestre Jonas que vai viver dentro da baleia, tava ouvindo no rádio, minha esposa não conhecia a música. Eu disse: “ouve essa música, que ela é maravilhosa”, e ela gostou muito. E aí eu fui compor um samba, eu faço primeiro a melodia, depois quando eu fui colocar a letra no samba que eu tinha feito, aí saiu a frase assim, aquela coisa no subconsciente, né?: “sempre morei dentro da baleia/ e só me encantava com a água do mar/ agora eu quero me encontrar/ e pisar a areia do porto em que vou atracar”, que é a frase inicial do “Capitão Melancolia”, que abre o disco; é o oposto do “Mestre Jonas”, do Sá e Guarabyra. Eu disse: “Poxa, ficou o oposto dele”. É uma forma também de homenagear, né? Essa fase, década de 1970, foi uma grande influência para mim, Sá, Guarabyra e Rodrix, que eu ouvia criança no disco do “Plunct Plact Zuuum” [1983, trilha sonora do programa infantil da Rede Globo, reuniu Sérgio Sá, Zé Rodrix, Raul Seixas, Lulu Santos, Guilherme Arantes e Léo Jaime, entre outros], então para mim foi maravilhoso trazer uma referência que eu nunca tinha feito no passado. Mas também tem outras referências, tem Manuel Bandeira, né? “Quero-quero”, que é a segunda faixa do disco, é baseada no poema do Manuel Bandeira, poeta pernambucano que admiro muito, um conterrâneo, vamos dizer assim, que é baseado num poema dele chamado “Belo belo 2”, que é um poema maravilhoso, eu sempre estou voltando a ele, que no momento me fez muito sentido. Para você viver você tem que querer viver, sobretudo, é uma coisa que eu pensava muito na fase pré-cirurgia, era de que eu iria me recuperar muito melhor e com certeza a cirurgia ia representar um problema muito menor para mim se eu tivesse a vontade ali de estar vivo e “Quero-quero” fala sobre isso, baseado no poema do Manuel Bandeira. Então tem todas essas referências, Cartola, Caetano, Sá e Guarabyra, tem o samba político que é “Noite dos cristais”, que de certa forma é uma referência sempre ao Chico Buarque, que foi o grande sambista político do nosso século XX, do século XXI também, quem sabe. Enfim, é um disco cheio de referências, é realmente um livro das coisas que eu guardo assim como mais caras, como pertencentes a essa minha memória.

ZR – Você citou o “Transa”, de Caetano Veloso, que está completando 50 anos agora em 2022. Essa citação de “You don’t know me” [faixa que abre “Transa”] foi intencional ou, de repente, quando você percebeu ela já estava ali no meio da coisa toda?
AM
– Foi completamente aleatória. Eu fiquei muito feliz de conseguir fazer isso, lógico, mas foi assim, eu tava cantando o refrão, eu comecei a cantar “laia, ladaia, sabadana, Ave Maria”, sabe, que não é nem do Caetano, né? Na verdade isso é do Edu Lobo, mas que Caetano cita em “You don’t know me”, tem várias citações, já tem a Edu Lobo, tem a citação a Luiz Gonzaga, que ele fala no final, “eu agradeço ao povo brasileiro” [verso de “Hora do adeus” (Lula Queiroga/ Onildo Almeida), de 1967]. E aí eu fiz o contrário, citei “You don’t know me” na faixa, fiz o que Caetano fez com os outros. Eu tava ficando feliz, porque eu comecei a cantar, né? “You don’t know me”, aí eu disse, eita, cabe no refrão, né? Eu fiquei feliz porque coube, e ao mesmo tempo, “pô, 50 anos do “Transa””, que é um álbum que eu ouvi a minha vida toda. Salvo engano eu tenho três versões do “Transa”, três mixagens e masterizações diferentes. Eu coleciono, o que aparece de novo do “Transa”, eu pego, pra mim é um disco que foi fundamental e citá-lo nos 50 anos dele foi muito legal.

As memórias do Capitão Melancolia. Capa. Reprodução
As memórias do Capitão Melancolia. Capa. Reprodução

ZR – O álbum é um disco curto. São apenas 22 minutos de música, composto quase todo na pandemia, salvo engano só uma faixa já existia, não é?
AM
– Isso, exatamente. Foi todo composto nesses três meses. Eu soube que eu ia me cirurgiar em setembro do ano passado, setembro de 2021 foi quando a minha médica disse: “olha, você vai ter que passar pela cirurgia, porque o teu coração vai começar a entrar em sofrimento, então o momento de fazer a tua cirurgia é agora”. E a gente marcou a cirurgia para janeiro de 2022, eu fiz a cirurgia agora. Eu completei quatro meses de cirurgia agora, semana passada, no show de Caetano Veloso.

ZR – Então já passou no teste, né?
AM
– Passei [risos].

ZR – Ver o Caetano, eu já vi, mas deve ser uma emoção ainda maior, nesse momento, de retomada.
AM
– Toda vez que eu encontro Caetano, ele está sempre muito pertinho de mim, porque eu geralmente consigo sempre sentar na frente, quando das apresentações dele eu fico muito perto. Eu já tive a oportunidade de conversar com ele. Eu, na verdade, sou também advogado e fui para o Supremo Tribunal Federal, pra me pronunciar sobre uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, uma ADPF, que foi colocada contra o governo Bolsonaro, na verdade, contra o Ministério da Cultura, por conta dos filtros que ele estava fazendo no cinema, aqueles filtros terríveis que não estavam deixando passar nada e Caetano foi também. Eu fui como presidente da Comissão de Cultura da OAB daqui de Pernambuco e tava lá sentado com Caetano, assim do lado dele, né? Aí teve uma hora que foi o intervalo, todo mundo foi embora e ele ficou lá sentadinho, na dele, silenciosamente, né? Aí eu disse: “opa, Caetano, tudo bom? Queria me apresentar, sou presidente da Comissão”, e ele: “ah, tudo bom”. Eu tenho uma música chamada “Caetano estaciona no Leblon”, que faz parte do meu segundo álbum, que é o “Pólis”, e essa música foi citada na reportagem que teve na piauí [Eu existo!”, de Elisangela Roxo, na edição 175, de abril de 2021; ela é a autora do texto publicado no portal Terra em março de 2011 dando conta do compositor estacionando o carro] sobre todo o processo de construção dessa notícia, ficou muito famosa, do Caetano estacionando no Leblon. E aí eu disse para ele: “eu tenho uma música, inclusive, o “Caetano estaciona no Leblon””, e tal, ele riu ali, né? “Ah, que massa”. Mas, assim, eu não imaginei que ele iria ouvir efetivamente, nem sei se ele ouviu, mas eu sei que depois ele leu a reportagem e que ele viu a confirmação de que existe uma música. Inclusive a autora da reportagem da piauí disse assim “Caetano, ouça essa música,que ela é muito boa” [ela escreve: “A letra da música, por sinal, é excelente. Leia um trecho dela” e na sequência transcreve um trecho da letra] e eu gosto de pensar que ele parou um pouquinho para ouvir a música. Porque depois até a produtora dele, a Uns, citou a minha música, então quem sabe, né?

ZR – Deve ter ouvido, sim. Eu queria te ouvir sobre o processo de gravação do álbum. Foi gravado em dois dias, então estava todo mundo junto no estúdio? Como é que foi isso?
AM
– A gente foi para o estúdio, que permite esse tipo de gravação porque tem várias salas, que as pessoas se ouvem mutuamente ao mesmo tempo. Então a gente ensaiou muito. É uma banda que os músicos, a despeito de não tocarem sempre juntos, mas ele já tocaram juntos várias vezes, então existe uma sinergia entre eles e essa sinergia e esses ensaios permitiram que a gente, dividindo cada um numa cabine, gravasse tudo muito rapidamente, quase de primeira. Foi ao vivo, é basicamente um ao vivo, você ouve, a voz que foi colocada depois assim, né? Porque, na verdade, eu tava fazendo a voz guia naquele momento. A única coisa que eu coloquei posteriormente, até para sentir como é que as músicas estavam naquele momento, foi a voz. O resto, tudo ali que você ouve, foi tudo gravado ao vivo, basicamente tá quase um disco ao vivo.

ZR – O Regional da Tristeza que Balança foi formado especialmente para te acompanhar no disco, ou é um grupo que já existia?
AM
– É uma banda do disco. Vou reverenciar Caetano de novo. Como existe A Outra Banda da Terra, a Nova Banda depois, e depois a Banda Cê, são bandas criadas para projetos, o Regional da Tristeza que Balança foi criado especificamente para esse projeto. A gente pensou realmente em ter um regional, os conjuntos de choro antigamente chamavam regionais, né? E só o que eu mudei basicamente foi colocar uma bateria, geralmente o pessoal faz com percussão, aquele pandeirão assim ou às vezes até uma percussão mais pesada, mas eu coloquei uma bateria mais jazzística, pra ficar naquele meio termo, entre o muito tradicional e alguma coisa já mais moderna.

ZR – Esse disco está disponível nas plataformas de streaming, mas ele vai ter edição física?
AM
– Existe a ideia de fazer edição física. Eu tenho uma grande vontade de ter um vinil, sabe? Mas está atualmente muito difícil de você conseguir fazer, porque as filas estão imensas. Como é um processo que tem pouca estrutura ainda no Brasil, de voltar a produzir o vinil, é um processo mais lento. Então você na verdade faz o contrato para receber o vinil daqui a um ano, um ano e pouco. Antigamente eram três meses, aí na pandemia tava seis meses. Então eu estava conversando com o pessoal para ver a possibilidade da gente fazer o cd. Eu só preciso, na verdade, trabalhar o projeto gráfico dele. Porque eu tendo esse projeto gráfico, a gente faz o cd. Eu quero realmente fazer a parte física, mesmo que o pessoal não ouça cd. Mas eu sempre tenho aquela fissura por ter alguma coisa física, entendeu? E os meus dois primeiros álbuns tiveram. “Distopia” [2021] não teve porque foi no meio da pandemia mesmo.

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Ouça “As memórias do Capitão Melancolia”:

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