Chico Buarque: vai passar

Vai Passar“, cantou Chico Buarque em 1984, reverberando num samba-enredo em “ofegante epidemia”, para a história do Brasil, a transição da ditadura civil-militar para a campanha Diretas Já e para a democracia, essa que prossegue capenga até hoje, 38 anos depois. “Que Tal um Samba?”, pergunta Chico Buarque em 2022, sonhando (ou preparando?) mais uma transição pós-golpe de Estado, desta vez após apenas (apenas?) seis anos de “pausa democrática” e meros (meros?) quatro anos de instalação neo-fascista no país que fez o que fez com a primeira mulher eleita presidenta em 127 anos de instável República.

Bem menos metafórico que em 1984, Chico Buarque propõe agora um samba, nem mais um épico samba-enredo, um sambinha modesto daqueles futebolísticos (“fazer um gol de bicicleta, dar de goleada”), mas cabe todo um mundo dentro desse rebolado. O sambinha que o poeta pede, “um desafogo, um devaneio” “pra alegrar o dia”, “depois de muito jogo fora da meta”, “de novo com a coluna ereta”, propõe “espantar o tempo feio”, “remediar o estrago”, “andar de boa”, “zerar o jogo”, “sair do fundo do poço”, “juntar os cacos, ir à luta”, “esconjurar a ignorância”, “desmantelar a força bruta”. Que tal?

O sambinha, que deve sair à avenida em outubro próximo, nasce como um descarrego ao “fim da borrasca”, no bojo de “uma dor filha da puta”. Com o “coração pegando fogo”, equivalerá a “cair no mar, lavar a alma, tomar um banho de sal grosso”. Nada de avenida ou sambódromo por enquanto: batuque, jongo e samba de roda, deve ser gingado em chão preto, no Cais do Valongo, na Pedra do Sal, na Gamboa. É carioca como um samba-canção do baiano Dorival Caymmi, “num bom lugar, numa cidade legal”, Copacabana. O folguedo pode até resultar num filho, “um filho com a pele escura”, “com formosura”, “bem brasileiro”, “não com dinheiro, mas a cultura”, “uma beleza pura” qual a do Caetano Veloso ainda hippie-hedonista em 1979, pré-Anistia, pré-Diretas Já, pré-pré-Lula.

Modesto e abrilhantado pelo bandolim do compositor afro-carioca Hamilton de Holanda, o novo sambinha de Chico Buarque vê que a bola anda bem baixa e não deseja muita coisa, só o trivial: “Puxar um samba legal/ puxar um samba porreta/ depois de tanta mutreta/ depois de tanta cascata/ depois de tanta derrota/ depois de tanta demência”. Uma dor filha da puta.

Ergue-se por sobre figuras femininas não mencionadas, como a Dilma Rousseff tombada em luta em 2016, a Beth Carvalho nascida na Gamboa e tombada em vida em 2019, quando (quase) todo o mal já estava feito, a Elza Soares tombada na queda quando nem todo mal estava feito ainda, em 2022, ou a maldita Geni. O “fim da borrasca” está próximo, promete o profeta que vem de tanta luta, tanta briga, tanto mar, tanto fado tropical, tanto fado bicha (???), e completa 78 anos neste domingo. Índio impávido colosso, o sambinha virá antes de o primeiro carnaval pós-pandemia chegar, e há de ser bonita a festa, pá.

Que Tal um Samba?
(Chico Buarque)

Um samba
Que tal um samba?
Puxar um samba, que tal?
Para espantar o tempo feio
Para remediar o estrago
Que tal um trago?
Um desafogo, um devaneio

Um samba pra alegrar o dia, pra zerar o jogo
Coração pegando fogo e cabeça fria
Um samba com categoria, com calma

Cair no mar, lavar a alma
Tomar um banho de sal grosso, que tal?
Sair do fundo do poço
Andar de boa
Ver um batuque lá no cais do Valongo
Dançar o jongo lá na Pedra do Sal
Entrar na roda da Gamboa

Fazer um gol de bicicleta, dar de goleada
Deitar na cama da amada e despertar poeta
Achar a rima que completa o estribilho

Fazer um filho, que tal?
Pra ver crescer, criar um filho
Num bom lugar, numa cidade legal
Um filho com a pele escura
Com formosura
Bem brasileiro, que tal?
Não com dinheiro
Mas a cultura

Que tal uma beleza pura no fim da borrasca?
Já depois de criar casca e perder a ternura
Depois de muita bola fora da meta

De novo com a coluna ereta, que tal?
Juntar os cacos, ir à luta
Manter o rumo e a cadência
Esconjurar a ignorância, que tal?

Desmantelar a força bruta
Então que tal puxar um samba
Puxar um samba legal
Puxar um samba porreta
Depois de tanta mutreta
Depois de tanta cascata
Depois de tanta derrota
Depois de tanta demência
E uma dor filha da puta, que tal?

Puxar um samba
Que tal um samba?
Um samba

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