Centelha. Capa. Reprodução
Centelha. Capa. Reprodução

Um Rio de Janeiro ao mesmo tempo potente e decadente em uma relação quase de amor e ódio de um artista por sua cidade natal. Tudo isso atravessado por uma sonoridade dançante e expandido para um Brasil ainda sob a égide de um governo neofascista.

Esta é uma possível interpretação de “Centelha”, novo álbum de Qinhones, disponível nas plataformas de streaming, com distribuição do selo Lab 344, e que ganhará edição em cd por um selo japonês. A capa evoca Belchior (1946-2017) e a sonoridade tangencia, além do bardo cearense, os Bobs Dylan e Marley. O disco conta com as participações especiais das cantoras Bebé Salvego e Silvia Machete.

“A tradição não consiste no culto às cinzas, mas na preservação do fogo”, recita a segunda em “Suíte Narciso I”, em que Qinhones e o produtor musical Alberto Continentino – o contrabaixista é seu parceiro em todas as faixas do álbum – somam-se ao compositor austríaco Gustav Mahler (1860-1911).

Já com 15 anos de carreira, se contarmos da estreia, então como Qinho, com “Vulgo Qinho & os Cara” (2007), Qinhones pretende, com “Centelha”, demarcar uma posição, uma reação ao triste estado de coisas que o Brasil tem atravessado de quase 10 anos para cá – agudizado sob Jair Bolsonaro –, contrapondo-se a colegas de profissão e à própria lógica atual do mercado fonográfico, sempre em busca do próximo conteúdo com capacidade de viralização.

Por telefone, ainda antes do segundo turno das eleições presidenciais, o artista conversou com exclusividade com Farofafá.

O cantor e compositor Qinhones. Retrato: Filipe Marones. Divulgação
O cantor e compositor Qinhones. Retrato: Filipe Marones. Divulgação

ENTREVISTA: QINHONES

ZEMA RIBEIRO – Apesar de morar no Maranhão eu sou um torcedor do Vasco da Gama. Eu queria saber se você também e se a mudança de nome artístico, de Quinho para Qinhones, tem algo a ver com o zagueiro equatoriano que jogou no time no final da década de 1980, na época em que eu comecei a torcer pelo Vasco.
QINHONES – Na verdade eu sou rubronegro e Qinhones é porque o meu apelido de família sempre foi Quinho, de Marquinhos [Marcus Coutinho].

ZR – Que era como você assinava até bem pouco tempo.
Q – Que era como eu assinava. Só que aí os amigos começaram a chamar de Qinhones. Tem muito time equatoriano com jogador Qinhones. É coincidência mesmo, a galera começou a me chamar, eu comecei a gostar, teve uma hora que eu falei, “ah, eu quero esse nome”.

ZR – Uma curiosidade sobre a capa de “Centelha”: eu percebi nela, naquele gesto ali de acender o cigarro, uma evocação a Belchior. Faz algum sentido para você essa comparação?
Q – Total.

ZR – Tem alguma homenagem intencional?
Q – Não, intencional, não. Mas eu acho que foi um dos artistas, essas coisas são engraçadas, porque eu não eu não fui um ouvinte tão fiel assim do Belchior. Mas recentemente eu ouvi bem assim os discos dele da década de 1970, aqueles discos clássicos dele, fiquei pirado. Eu falei “caraca”, eu não conhecia tão bem assim os discos, né? E nem foi uma coisa intencional, mas nesse disco saíram dois blues, porque eu escrevi mais as letras e o Alberto, que é meu grande parceiro nesse álbum, ele compôs as músicas, ele musicou as letras. E ele partiu muito de um preceito de tentar traduzir aquelas letras em forma de música, pegar os temas e traduzir aquilo como harmonia, com o estilo de harmonia, e em algumas músicas ele sentiu a coisa do blues, e ele botou essa pegada do blues. Então as duas últimas músicas do disco, as duas últimas canções do disco, principalmente “Mentira anestesia”, que é a oitava. Eu sinto muito uma coisa Belchior nela, muito, muito, e eu fiquei pensando sobre isso, “caramba, essa música é muito a onda do Belchior”, eu nunca imaginei que eu fosse fazer um som meio que ressoando Belchior. Eu sempre fui muito mais da praia da black music, sei lá, do beat, da Marina [Lima, cantora e compositora, a cujo repertório Qinhones dedicou o álbum “Qinho canta Marina” (2018)], alguma coisa mais assim. Mas, pô, Belchior é incrível, maravilhoso, preciso nem falar nada. Fiquei feliz para caramba com isso, de ter umas músicas que ressoem, que têm um pouco esses espírito, Belchior era um cara que ele tinha um jeito de abordar os assuntos muito cortante, muito incisivo. Ele se colocava muito, né?

ZR – Eu acho interessante é que apesar de ter sido gravado, por exemplo, por Elis Regina, que é uma das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos, ele tem uma coisa, como você está dizendo, tão cortante tão profunda e tão pessoal, que mesmo ele não tendo assim, a voz, né?, não é uma grande voz, é uma voz, no fundo, estranha, né? Mas eu acho que o grande intérprete de Belchior é ele mesmo, como Nelson Cavaquinho, como Cartola, como outros cantores que não são necessariamente grandes cantores. Eu adoro, esses três, para mim, estão num patamar de genialidade…
Q – No caso da capa, eu estou usando um casaco do Bob Marley, tem uma coisa do “Catch a fire” [1973], aquela capa dele, do baseado gigante, eu sinto também um pouco de Bob Dylan na capa, e eu acho que o Belchior tem tudo a ver com Bob Dylan, e eu gosto desses atravessamentos, e eu sinto que tem esse lugar do cara que quer falar, que não quer fazer uma música só para fruição, que quer falar alguma coisa, quer apontar alguma coisa sobre a sociedade e tal, e eu acho que o disco tem muito esse impulso.

ZR – A gente percebe isso ouvindo. Já que você falou da parceria com Alberto Continentino, eu queria eu queria te ouvir um pouco sobre o processo de criação do repertório. São 10 faixas, tem quatro vinhetas, umas de um minuto, outras menores. O caminho foi esse: você criar letra e ele musicar a letra, criar melodia para letra ou teve alguma que fugiu disso?
Q – Foi tudo bem assim. O barato mesmo do projeto foi um pouco esse. Do projeto não, né? Eu lancei um EP durante a pandemia [“Gota” (2021)], que eu fui produzindo músicas com diferentes produtores que eu admirava, que eu curtia, e queria trabalhar, então, fiz uma com Diogo Strausz, que inclusive até vai lançar um remix de uma das músicas do álbum em breve, e duas músicas com o Lourenço Rebetez, que é um arranjador, produtor lá de São Paulo, incrível, jovem, que produz a [cantora e compositora baiana] Xênia França, que tem um trabalho de jazz contemporâneo super interessante, é um cara que bebeu muito na fonte do Letieres [Leite, maestro, compositor e arranjador]. E por último também produzi uma música com o Alberto e a partir dali a gente ficou mais ligado, mais próximo, e eu já tava vindo escrevendo, já tava com umas anotações minhas, eu já estava reescrevendo desde 2018, sobre o Brasil, sobre o Rio de Janeiro, aquelas coisas que estavam me incomodando, que eu tava ali sendo atravessado por tudo aquilo e vinha escrevendo, reescrevendo, mas não conseguia achar que eu conseguiria botar música, porque eram letras difíceis, né? Não é uma letra muito fácil de musicar. Mas aí quando o Alberto aparece, logo depois que a gente produziu essa faixa, que ficou super legal, que é um feat com a [cantora e compositora carioca] Mahmundi, é uma das faixas minhas que eu gosto mais do resultado. A partir dali ele disse que estava a fim de compor, perguntou se eu tinha alguma letra, “me manda alguma coisa pra eu compor” e eu estava com a gaveta cheia de coisa e falei “tá bom, vamos tentar”, e fui soltando algumas letras assim um pouco mais espinhosas, e o Alberto, ele tem uma versatilidade musical, uma capacidade de desenvolver uma narrativa musical de várias formas diferentes, vários estilos diferentes. Ele tem um repertório muito bom de soluções para letras com assuntos complexos. Teve algumas músicas que ele trouxe pro blues, teve algumas outras que ele trouxe para uma coisa mais do groove. Teve um feat com a Bebé, que é mais sensual, mais erótica, ele também trouxe umas uma concepção de composição que bebe bem da fonte do [cantor e compositor americano] Marvin Gaye [1939-1984], do [pianista e compositor americano] Herbie Hancock, desses caras, então ele trouxe muito essa diversidade de abordagem. Quando ele começou a me mandar essas músicas com toda essa força, respondendo e conseguindo traduzir as ideias das letras musicalmente, né? Porque você pode pegar uma letra e levá-la para uma coisa mais samba, mas ele pegou a letra, sacou o sentido e falou, “vou fazer um blues em cima disso”. Isso tudo, a gente foi ficando animado, ele foi me mandando as músicas, eu ficava pirado com as composições, mandava mais letras e quando a gente viu a gente já tinha um grupo de músicas bom e falava “ah, cara, isso aqui já tem uma cara de disco, vamos gravar isso aí e tal”. Então foi bem orgânico o processo, foi um encontro nosso, durante a pandemia. Ele tava também mais em casa, porque o Alberto é top um dos músicos no Brasil, está sempre tocando, sempre gravando.

ZR – Você falou um pouco dessa coisa do processo, de letra, melodia, enfim. Essa opção pela mensagem política, “Centelha” é teu disco mais político, a gente pode dizer, sem medo de cair no clichê, que é música para dançar e pensar. Eu queria que você aprofundasse um pouco essa opção por essa por essa mensagem política. A gente vive um momento conturbado que não dá para se omitir e eu queria te ouvir sobre isso.
Q – É muito isso. Eu tava meio que me batendo com isso desde 2018 que eu tava assim pensando, e agora? Sabe, não dá para produzir um álbum e não tocar nesse assunto, mas como tocar nesse assunto? É muito complexo tocar nesse assunto, é muito difícil, política é complexo, se você tiver também um olhar muito maniqueísta você pode cair em vários tipos de clichês bobos, aí começa a ficar uma coisa meio boba que você também acaba não conseguindo, aí fica muito panfletário, muito hermético. Eu gostei do que você falou, que é dançar e pensar, né? Porque tem que ter o movimento, tem que ter o balanço, você tem que gostar daquilo também, não dá para ser só uma coisa maçante e panfletária, só que ao mesmo tempo eu ficava muito incomodado de tentar e não conseguir, sabe? Cadê a gente falando sobre isso, a gente retratando, cronicizando o que está acontecendo com o país. Isso foi amadurecendo desde antes, desde 2015, desde 2016, 2013. A gente vai completar 10 anos de caos político e eu sinto que a maior parte da nossa força criativa hoje não tá atravessada por isso no sentido da obra. As pessoas se manifestam muito nas redes sociais, mas na obra, eu vejo muito a galera do rap, que ainda é um grupo que continua falando muito sobre isso, mas mesmo assim, dentro do rap, muita gente já saiu desse tema também. Então a gente também ficou assim, me bateu uma coisa, como é que a gente tá passando por isso tudo e não estamos versando nada sobre isso, sabe, deixando aqui. Até porque aí começou a me dar essas coisas, de lembrar de como eu fui batizado ouvindo “Construção”, do Chico Buarque, quando era um garoto, quando eu ouvi “Transa” [1972, de Caetano Veloso] pela primeira vez, quando eu ouvi Gonzaguinha, quando eu ouvi Milton [Nascimento], quando eu ouvi Marcelo Yuka [1965-2019, baterista e compositor, integrante da formação original dO Rappa], era um cara que escrevia muito sobre isso, eu me sentia muito identificado, muito representado pela forma dele escrever, de compor. Nitidamente eu tava com esse dilema de falar que não consigo admitir fazer um disco sem que eu aborde isso de alguma forma. E por outro lado, pensando coletivamente, não estamos deixando, de fato, um testemunho ocular do que está acontecendo no país. E eu acho delicado isso. Partindo da minha vivência, muita coisa que eu absorvi sobre a história do Brasil, sobre o que é cultura brasileira, sobre o que é ser brasileiro, veio de grandes discos destes grandes artistas que versaram sobre o que estava acontecendo. Porque também para você entender o período você vai nos contemporâneos, e vê o que o pessoal tava falando. E você consegue entender, você junta ali, você consegue ter uma ideia bem legal do que foi aquilo, o que representou, o quê que era ser brasileiro naquele momento no Brasil. O que representava isso, o que estava atravessando isso. Você vê esses tormentos, as revoltas, as ironias, as sacaneadas. Isso me formou como ser humano e como brasileiro, me ajudou a entender o que é ser brasileiro, que eu faço parte de um processo histórico que teve vários momentos e que essa turma passou por tudo isso pra gente conseguir chegar até aqui onde a gente tá. E isso começou a mexer muito comigo, assim, de pensar que a gente tá passando por um processo tão crucial quanto àquele [a ditadura militar brasileira], tão decisivo quanto aquele e a gente tá querendo disputar o próximo viral e fazer o próximo “Acorda Pedrinho” [hit da banda paranaense Jovem Dionísio]. Eu fico preocupado enquanto geração, o que a gente vai deixar de testemunho ocular para quem vier depois. O instagram não é confiável, daqui a 10 anos pode morrer e sumir tudo. Nada disso é garantido, agora teu disco, tua obra, teu single, isso aí tá comprovado que a gente assiste os filmes da turma até hoje, os filmes vão estar disponíveis, o post do instagram não sei se vai, né? Mas é muita pira pensar isso hoje em dia, né? Ao mesmo tempo, eu sou maluco, né? Porque o jogo do entretenimento é isso, vamos fazer a música o próximo viral e vamos nessa. Essa nova organização do modelo da indústria fonográfica em cima do viral, em cima do número é isso. Essa história, essa dinâmica das redes sociais capturou a indústria fonográfica, é uma coisa meio alucinada, porque ela poderia se manter de alguma forma independente, mas ela foi capturada completamente, ela quer ser atravessada pela rede social, ela nunca vai apostar num artista se ele não tiver atravessado por um processo de rede social. A rede social passou a ser o grande curador de tudo. Nada é mais antiviral do que falar sobre problema complexo, política, querer se posicionar, a não ser que você seja a Anitta, aí tudo bem, porque se você der um peido você viraliza. Eu comecei a achar preocupante. A gente tá num momento que é completamente decisivo e ao mesmo tempo a máquina toda está operando pro quê? Para as pessoas se desinformarem, se desconectarem, negarem a realidade e nós que estamos do outro lado, vamos fazer música só para despertar, só para amenizar? Não vamos botar o dedo na ferida? Não vamos gritar, não vamos questionar, não vamos tentar disputar o debate público do país? A galera disputou, fez questão de disputar esse debate, fez questão de disputar o Brasil. Nesse sentido eu me sinto meio que convocado, sabe? Eu quis fazer isso mesmo, quis deixar um pouco do meu testemunho e fazer um acerto de contas meu com essa minha cidade, que é incrível, mas é horrível e é perversa também, então não dá para só falar que é maravilhoso, que continua lindo. Tem que acertar as contas com o país, tem que acertar as contas com conceitos arraigados, ultrapassados. Porque é tudo muito em cima desse atrito, o meu atrito com esse Rio de Janeiro que eu peguei, na época que eu nasci eu peguei esse Rio de Janeiro, o Brasil que a gente pegou. É isso, por um lado é um grito de amor, eu gosto de dizer que não é um grito de guerra, e por outro é uma tentativa de deixar um testemunho ocular sobre o que era ser brasileiro nesse período de 2018 pra cá.

ZR – Eu tenho que agradecer pela ousadia, pela coragem, pela beleza que tu entrega para a gente nesse repertório e pela maluquice, né? Como você falou, “eu devo ser maluco” e talvez também esteja conversando com um jornalista meio maluco, porque eu tendo a acreditar o seguinte: há essa ditadura da indústria fonográfica que se deixa levar por essa coisa do viral, mas eu acho que o artista que vai pensando nisso, ele já está morto, porque ele vai viralizar ali um instante e depois ele vai cair no esquecimento. Ainda sobre essa tua opção por fazer um disco com essa mensagem política: “O rio continua rindo” é o título de uma música que é um trocadilho delicioso que evoca o Gilberto Gil de “Aquele abraço”. Aí eu te pergunto: é o Rio, é a tua cidade, é o teu estado, mas também é o Brasil, nesse momento. Episódios como o incêndio do Museu Nacional, que por sua vez te liga ao Caetano de “Sampa” e “a força da grana que ergue e destrói coisas belas”, e o assassinato de Marielle Franco [1979-2018, vereadora carioca], que a gente precisa ressaltar, todos dois, tanto o incêndio no museu quanto o assassinato de Marielle Franco, são crimes políticos. Porque você faz uma opção de não deixar os extintores em dia, de não ter uma brigada de incêndio, de não ter preocupação com uma instituição pública. Então eu faço questão de frisar, sempre que eu falo no incêndio do Museu Nacional, no assassinato de Marielle Franco, são crimes políticos e não se chegou ainda a uma elucidação dos dois crimes por falta de interesse político, de decisão de quem tem o poder de decidir, e esses dois episódios também são combustível para tua criação em “Centelha”. Eu te pergunto o seguinte: a gente tem motivos de sobra para se revoltar. Na tua opinião, quando foi que o brasileiro perdeu essa capacidade de revolta?
Q – É uma ótima provocação, é algo complexo de se pensar. Mas o que parece, o que é doido, é que ele está mais revoltado do que nunca. O brasileiro nunca foi tão revoltado, tão atomizado. Pelo menos eu nunca vivenciei um país tão dividido como agora, com tanto ódio, com tanta segmentação. A minha impressão, meio anedótica da coisa, pelo que eu vivi no país, o Brasil foi campeão da Copa do Mundo em 1994, eu tinha 10 anos, depois em 2002, eu tinha 18, e aquilo tinha uma importância tão grande para o país, né? A Copa, a seleção mobilizava tudo, todo mundo parava. A sensação que eu tenho é que o povo do Brasil trocou a chave do emocional do futebol para a política. E as pessoas foram para a política com o mesmo nível de alucinação, de violência, de paixão e de clubismo que tinha no futebol para a política. Isso é uma teoria bufa, é uma piada, mas eu acho muito louco isso, porque eu lembro muito bem de como o futebol mobilizava o ânimo das pessoas, a emoção das pessoas. A política também mobiliza, mas não era uma coisa que atravessava tanto, tão constante, tão forte, tão profundamente com essas linhas tão bem delineadas, tão bem cravadas entre as pessoas. As pessoas torciam para futebol, o que mobilizava as paixões, essas violências, era muito o futebol, com as brigas, aquelas loucuras que tinha, o cara é fanático, doente, parece que é isso, que o povo saiu do futebol e foi empregar esse acesso na política, e tá querendo torcer pra política, quando para política não se torce, se cobra, se acompanha. Você tem que minimamente tentar entender, tentar estudar, tentar ler, pensar. Mas é isso, ninguém lê, ninguém pensa, ninguém tem informação, tem essa loucura que virou guerra de informação. E reconheço que as pessoas estão torcendo, virou torcida. Às vezes até na esquerda eu também sinto um pouco disso, fã-clube demais também. Eu lembro do Wilson Gomes falando isso, um professor baiano super-legal, um cara bem da pesada assim, ele falou isso, lançou um vídeo há um tempo atrás, ele falava isso: não escolha o seu candidato como você escolhe a sua namorada. A sensação que dá é essa, as pessoas colocaram um nível de irracionalidade, de paixão na história que perverteu tudo. A gente que é de esquerda, a gente tem uma coisa, de apaixonado, a gente sempre foi visto mais, tachado mais como os emocionados, e a direita ali mais fria, mais austera. É bom ter paixão por política, é bom você também ter um calor, você ter um tesão diferente, né? Não ser só uma coisa pragmática e tal, mas a galera perdeu a linha, e tivemos um azar. Não vou mais tão longe, porque acho que tem que voltar para a provocação. A sensação que eu tenho, pensando até nesse contexto paralelo com o futebol, dentro dessas duas fases da vida que eu lembro assim, depois dessa divisória, a sensação que eu tenho é essa: antes a gente pensava como o brasileiro não pensa sobre política, não fala sobre política, não tem consciência política. Agora parece que todo mundo exacerbou do nada a paixão pela política, a vontade de se inteirar sobre a política, e virou uma histeria coletiva maluca, e é muito louco pensar nisso. Acho que não é falta de revolta, é não saber contra o que você está se revoltando. As pessoas estão se revoltando contra o comunismo, é fantasma. Contra o ensino de ideologia de gênero na escola, é fantasma. Então as pessoas estão tendo a capacidade de se revoltar, e muito, elas estão furiosas com esses assuntos, mas estão se revoltando contra o quê?

ZR – Uns fantasmas já desdentados, né? De tanto tempo e as pessoas parece que não aprenderam nada.
Q – É inacreditável as pessoas terem medo do fantasma do comunismo. Eu nunca imaginei que eu fosse vivenciar isso na minha vida depois do que foi 1964.

ZR – Voltando um pouquinho para “Centelha”: a sonoridade do teu disco evoca muito o brazilian boogie, tem uma pegada funk, soul muito marcante, é um disco muito agradável de ouvir, nesse sentido melódico. Você já citou alguns discos que fizeram a tua cabeça, alguns nomes, mas eu quero te ouvir sobre influências.
Q – Influências, muitas. Eu penso o disco em três atos: o primeiro ato, a abertura mais as duas primeiras músicas; o segundo ato a “Suíte Narciso I”, que é aquela frase do Mahler com as duas músicas seguintes; depois a segunda suíte, que é a terceira música instrumental, e aí as últimas duas, que são aqueles dois blues. Nesses dois primeiros atos eu vejo muito essa fonte do brazilian boogie, e isso é uma coisa que eu também já vinha pensando há algum tempo, de como eu era apaixonado por essa linguagem e como essa linguagem é de fato especial, porque eu sempre ouvi muitos artistas americanos, o Stevie Wonder, o Marvin Gaye, o Curtis Mayfield [1942-1999], o Donny Hathaway [1945-1979], os caras do jazz, e a gente sempre ficou, posso falar por mim, às vezes ficava meio, ah, porra, o som dos caras, na onda de groove, aí tem um Tim Maia [1942-1998] aqui, tem mais um ou outro, mas não é a mesma coisa, pô. Os caras tinham um som de groove muito sinistro, não sei o quê. Só que aí com o tempo, eu era adolescente, comecei a descobrir black music, e aí fui ouvindo de tudo e foi muito mais música brasileira do que eu conhecia e aí depois foi exatamente o contrário, de pensar, cara, na verdade, na verdade, a galera que criou um estilo de groove único. A galera conseguiu pegar essa linguagem, absorver essa linguagem e enfiar um monte de coisa em cima disso, nossa brasilidade, nosso samba, o baião, até o bolero, né? O Lincoln Olivetti [1954-2015, compositor, maestro, arranjador e tecladista], o Lincoln e o Robson [Jorge (1954-2013), guitarrista, principal parceiro de Lincoln Olivetti] naquele disco [de 1982] tem uma música que é um bolerão, né?, assim. Vira e mexe tem uns arranjos de groove que caem num bolero, a gente até fez essa brincadeira um pouco no “Há festa” também, tem uma breve estação ali que a banda sai, fica só a percussão num clima meio latino. Então tem uma latinidade nesse groove, tem muitas coisas que atravessam esse groove que foi feito no Brasil. Eu passei a pirar muito mais, na verdade essa é a grande parada. Teve muita gente que foi atravessada por esse estilo. Desde o Caetano, Rita Lee, que era uma pessoa, era uma mulher do rock, ela não tinha nada com o groove e foi trabalhar com o Lincoln e aquela linguagem toda deu super certo com ela. Tinha ali a Banda Black Rio, tinha o Dom Salvador e Abolição, desde lá de trás, eu indo mais dentro dessa galera, já estou falando um pouco dessas referências, o Lincoln, o Marcos Valle, o Azimuth, o Hyldon, o Cassiano [1943-2021], Tim Maia, óbvio, o Di Melo, Tony Bizarro [1948-2022, cantor e compositor], são muitos artistas, o Marku Ribas [1947-2013, cantor, compositor e percussionista], que é um cara que eu amo, o João Donato, o Eumir Deodato. É meio um tributo a essa sonoridade que a gente criou. Eu vinha pensando sobre isso: como isso é incrível e como a gente quase que não tá levando isso adiante, enquanto estilo, enquanto linguagem. Tem pouca gente trabalhando essa linguagem. Agora tem até mais: tem a Luedji [Luna, cantora e compositora baiana], tem a Xênia, tem alguns artistas que estão trabalhando essa onda do groove, essa coisa do baixo e batera, groove mesmo. Porque sempre foi uma coisa muito marginal no Brasil. Teve a época da [gravadora] Trama, foi legal, mas inclusive até no meio da indústria fonográfica, eu já ouvi gente falando isso, “essa onda não rende, isso aí não é comercial”. E agora tá sendo bacana, estou vendo um movimento, a Bebé, que fez o feat comigo, tive a alegria de contar com ela nesse disco, é um grande talento. É incrível o que ela tá trazendo de primeiro disco dela, primeiro disco com 18 anos, com um nível de sonoridade, de maturidade, de canto, com personalidade, com técnica. É uma grande coisa, mas ao mesmo tempo tem isso, muitas das vezes os artistas que vão trabalhar essa estética no Brasil, acabam indo atrás de uma estética muito atrelada aos gringos e não trabalham tanto a estética que foi criada aqui, que foi essa nossa onda atravessada por isso. E eu pensei muito sobre isso, eu queria muito abordar esse estilo, eu queria muito pensar que eu tava, como o Mahler fala, jogando uma lenha nessa fogueira, jogando uma lenha de agora nessa fogueira que já vem de antes, pra botar mais fogo nela. E o Alberto é um cara que é fissurado nisso, é mestraço, ele toca de tudo, ele tem uma versatilidade absurda, mas no fundo ele tem uma paixão que sobressai por isso, os grandes baixistas que acompanharam essa turma toda da black music, os brasileiros também. Ele é fissurado nesse estilo, nesse som, diz muito a ele, ao íntimo dele. Por isso eu acho que deu tão certo a nossa parceria, porque intimamente a gente tá muito vinculado a um tipo de som que é o mesmo e muito profundamente, a nossa paixão de memória afetiva e sensorial, que é uma paixão que é imediata, que é mais natural, e ele é exatamente igual. Além disso é um baixista incrível, com a capacidade de fato de se apropriar dessa linguagem e trabalhar em cima dela com altíssimo nível. Eu acho que falei muito dessa primeira parte, do brazilian boogie, porque realmente eu vejo muito o disco em cima disso. Essa última parte eu vejo uma coisa mais indo para uma coisa Belchior, uma coisa Bob Dylan, até uma coisa meio Bob Marley, não é reggae, mas como você fala, o que você fala, qual é a tua intenção, essa intenção política, o Bob Marley é uma referência gigante pra mim quanto a isso, enquanto alguém que se posiciona, que realmente bota o dedo na ferida

ZR – E a Fernanda Abreu? Ela é uma influência para ti? O que significou para você ter trabalhado com ela no “Amor geral”?
Q – A Fernanda é incrível, também é uma dessas coisas de caminhos que são de sorte, a gente acabar se conhecendo lá atrás. Foi engraçado porque ela é uma grande influência para mim, permeou minha adolescência, minha juventude, eu adorava ver os clipes dela, ficava pirado. Além de gostar do som, achava ela incrível, linda e tal. E eu lembro que a gente se conheceu, eu tava começando a carreira, nos primeiros anos, tocando na noite com as minhas primeiras bandas, e eu fiquei super surpreso dela ter topado fazer show, ela fez participação no meu show várias vezes, ficou próxima, mas ao mesmo tempo eu sinto que ela se identificou também. Ela viu ali uma coisa que ela também de alguma forma vivenciou aqui no Rio de Janeiro, as primeiras bandas, e ao mesmo tempo uma paixão por essa onda da black music, do groove, que ela é completamente apaixonada. Eu já tava ali pensando nisso, nessa onda, trabalhando nisso, e bateu uma identificação também da parte dela e a gente ficou brother durante um tempo, coisas de fazer participação de ir a show, encontrar. Quando eu lancei o “Ímpar”, em 2015, ela viu o show, pirou, e falou “cara, eu tou produzindo um disco e quero que você produza uma faixa comigo”. Aí eu chamei o meu parceiro na época, que tava produzindo um show comigo, também produziu o “Qinho canta Marina” comigo, que é o Guilherme Marques, é um tecladista, um técnico de som aqui do Rio e a gente produziu junto essa faixa e foi incrível, foi maravilhoso colaborar com ela. A gente compôs duas músicas pra esse álbum [“Por quem” e “O que ficou”, esta, parceria dos dois com Thiago Silva]. Foi aquelas coisas meio de sonho, sabe, quando parece que alguém saiu da televisão e entrou na tua casa e falou “vamos lá!”. A Fernanda Abreu, rainha, compondo, produzindo música junto com ela, foi incrível, foi o maior barato ela ter essa confiança, de alguém que tá muito mais à frente, em outro momento de carreira, que já passou por tudo e olhar para você e falar “cara, eu quero contar com a tua contribuição no meu trabalho”, sabe, isso foi muito bom, para mim é um dos grandes momentos da minha carreira, sem dúvida.

ZR – Como é que está a agenda de divulgação, de shows de lançamento desse novo trabalho? A gente ainda tá aí no meio de uma pandemia. Como é que tá isso para você? Tem alguma coisa marcada?
Q – Não, ainda não estou com nada marcado. Eu fiz esse disco, eu tinha ido a São Paulo antes da pandemia, tava começando a me organizar lá para trabalhar, ainda com o disco da Marina, cantando as músicas da Marina, voltei e fui fazendo as coisas muito sozinho, eu mesmo produzindo, tem um selo que faz a parte mais burocrática, institucional, junto às plataformas, tudo isso, mas a parte de produção de conteúdo, produção de capa, produção de ideia, produção de música, finalização, tudo eu que comandei, então, agora que eu tô começando a abrir a página da agenda de shows, montar o show, montar uma banda, começar a abrir essas negociações, estou começando a ver isso agora, então só devo fazer os primeiros shows, imagino, ano que vem. Então, por enquanto sem agenda, é deixar o disco arder aí nas plataformas, estou para produzir um clipe de alguma dessas músicas, tem um remix também engatilhado, então vai ter coisa nova até o final do ano rolando, para sair, mas show mesmo, imagino que no início do ano que vem, que esteja começando a rolar. Eu também não tô com pressa, eu quero fazer esse show, quero montar um bandaço, fazer da melhor forma, tem que bater com a agenda do Albertaço, o que não é fácil, e com a agenda da turma, dos amigos do Alberto também, que é cada um mais pegado que o outro, então, quer fazer com eles, tem que tem que ter paciência.

ZR – “Centelha” vai ter edição física ou só nas plataformas mesmo?
Q – Por enquanto só nas plataformas. A gente vai ter uma edição física japonesa da Disk Union, que é um selo japonês que lança artistas da América Latina por lá e eles vão prensar lá, a princípio cd, tem a possibilidade do elepê, mas a princípio é cd. É uma loja, como se fosse as Americanas, loja de disco assim, e acho que nessa transição eles viraram selo. Mas lá parece que eles continuam comprando muito, né?, cd e vinil, a coisa do digital não anulou tanto assim o físico. Aí eles vão fazer uma prensagem lá, eu também estou super amarradão de ver o disco todo em japonês. Eu lembro de comprar cd, garoto, e tem uns cds assim do Jorge Ben que só tinha o japonês, era super caro na época, eu ficava babando, vendo aqueles nomes japonês e agora vai ter meu disco em japonês.

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Ouça “Centelha”:

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