Soldados da guarda especial do governo cearense carregam o caixão com o corpo de Belchior, em 1º de maio de 2017

Cinco anos após sua morte, o que mudou em relação à apreciação da música de Belchior?

É possível dizer, sem qualquer receio de errar, que nenhuma obra da Música Popular Brasileira sofreu uma revalorização tão assombrosa em tão pouco tempo. Seu legado de mais de 300 composições em 15 álbuns tem sido avidamente buscado por quase um milhão de ouvintes mensalmente no Spotify, por exemplo. A volúpia da redescoberta levou os principais elepês dos anos 1970 a desapareceram do mercado ou sofrerem uma hipervalorização – Mote e Glosa, o álbum de estreia, de 1974, pode ser encontrado com preços que variam de R$ 350 a R$ 625, por exemplo.

Mas não foi só a apreciação da música do sobralense que mudou: também a personalidade do artista passou a ter uma nova revalidação. Muitas homenagens têm se sucedido, e estão a cada dia mais intensas.

Em dezembro, o Ministério Público do Ceará entregou a medalha comemorativa dos 130 anos da instituição à família de Belchior. Dias depois, no Natal, a 25ª edição do Natal de Luz, de Fortaleza, foi realizada com o tema musical de Belchior. Há três anos, em Sobral (232 km de Fortaleza), o bairro Boa Vizinhança mudou de nome, passando a chamar-se Antonio Carlos Belchior, e há ônibus que circulam com sua imagem grafitada na lataria pela cidade.

Muitos artistas consolidaram nos anos recentes interpretações pessoais da obra do compositor Belchior, como Sandra Pêra, Amelinha, Ana Cañas, Elba, Daíra. Velhos colaboradores, como os músicos da banda Radar, se juntaram ao cantor Jarbas Homem de Mello para um show-tributo no ano passado. O êxito da faixa AmarElo, de Emicida (que usa sample de Sujeito de Sorte, de Belchior, além das vozes de Pabllo Vittar e Majur), foi um assombro: o vídeo teve mais de três milhões de acessos no Youtube.

Mesmo antigos desafetos, como o cantor Raimundo Fagner, dobraram-se à consagração incontestável do artista. Fagner lança em maio, com convidados, o disco em que canta Belchior, especialmente as composições que sofreram veto da Censura do governo militar. Depois de acusar Belchior de ter feito bullying consigo, em seu livro de memórias, e de terem tido uma “relação difícil”, ele se rendeu à consolidação do antigo parceiro.

No momento, um dos documentos essenciais para ajudar nessa reavaliação é o resgate, por Ednardo, de uma gravação de violão e voz registrada no início dos anos 1970. Lançado agora em disco, Sarau Vox 1972 é um registro feito pelo jovem cantor Ednardo, então com 27 anos, em Fortaleza, pouco tempo antes de se aventurar na carreira nacional no Rio de Janeiro, e traz quatro canções de Belchior anteriores à fama.

Um dado curioso do disco de Ednardo é o registro da imortal Paralelas, que Vanusa tornaria célebre. Ednardo a gravou em 1972 ainda com a letra original, coisa que nem mesmo Belchior registrou. A canção inicia com o verso “No Karman-Ghia pelo trevo a cem por hora, oh, meu amor”, que o compositor depois mudaria para “Dentro do carro, sobre o trevo…”. É inusitado conhecer a versão original (a resenha completa do disco de Ednardo você lerá logo mais aqui no FAROFAFÁ).

Já a revisão cinematográfica da saga pessoal do artista Belchior chegou a ser engolfada pelo imobilismo cultural que sobreveio com a ascensão do bolsonarismo. Mas já começa a sair das moviolas. No dia 7 de abril, estreou no 27º É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, em São Paulo, o documentário Belchior – Apenas um coração selvagem. O filme marcou a estreia dos diretores Natália Dias e Camilo Cavalcanti. Eles também assinam o roteiro (com Paulo Henrique Fontenelle, diretor e roteirista de Cássia Eller, de 2014, e Loki, Arnaldo Baptista, de 2008).

Outros filmes inéditos, de ficção e documentais, estão em produção e prometem trazer novas luzes à história e personalidade do cantor. Parece um manancial inesgotável – em um talk show recente, o cantor e compositor cearense Falcão contou a insólita história de um dia em que o ator gaúcho Paulo César Pereio, que vivia no Rio no início dos anos 1970, encontrou um jovem cantor cearense chamado Belchior dormindo no banco da praça perto de sua casa no Rio e o levou para dormir em seu apartamento.

Até mesmo na eleição presidencial o bardo de Sobral chegou. Em janeiro, o candidato Ciro Gomes lançou um jingle com um “sample” de uma música de Belchior (novamente Sujeito de Sorte), o que reacendeu o debate sobre oportunismo, legitimidade e legalidade do uso do cancioneiro de um artista em situações extemporâneas.

A obra de Belchior, passando ao largo dos esforços contemporâneos de canonização ou cancelamento, parece ter adquirido progressivamente aquela autonomia típica dos clássicos. Consistente, ousada, premonitória, visionária, rigorosa, existencialista. Ele mesmo parece ter preparado, preventivamente, uma atitude de reinserção constante no espírito dos tempos. “Meu trabalho nada tem de definitivo. Ele vem sendo elaborado no decorrer do tempo. Embora mais tarimbado, com um conhecimento técnico maior e de me considerar melhor, profissionalmente, sinto-me ainda no começo. Minha obra ainda está se expressando. Muita água rolará até que seja ouvida em sua totalidade“, ele afirmou, em entrevista à revista Amiga (nº 640).

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