Jorge Du Peixe > Tom Waits.
Jorge du Peixe > Leonard Cohen.
Sei que vocês não estão preparados para essa conversa. Mas o cantor pernambucano Jorge du Peixe acaba de envergar o gibão de maior crooner da música brasileira contemporânea com seu show Baião Granfino, que estreou ontem à noite, 26 de novembro, no Sesc Vila Mariana. Além da voz única, roufenha e tonitruante, situada no paradoxo entre o apocalíptico e o acariciante, Du Peixe gestou o mais radical show das últimas décadas pelo que carrega de revelação, iluminação, desvelamento e alegria.
Baião Granfino, como se sabe, é edificado sobre as pedras fundamentais da obra de Luiz Gonzaga, por sua vez argamassa inaugural da música do povo do Brasil. Quase todas as músicas que Du Peixe canta têm mais de 50 anos de existência, mas parece que foram feitas agorinha – a canção que dá título ao disco é uma composição de 1955, de Gonzagão e Marcos Valentim. “Não existe baião de jet set, o baião já é superior”, brincou Du Peixe.
O tributo inclui também a capitania hereditária do sanfoneiro – há no repertório duas canções de seu filho, Gonzaguinha: Erva Rasteira (gravada por Gonzagão no disco Canaã, de 1968) e a canção-manifesto Maracatu (que Du Peixe cola propositadamente em Rei Bantú, de Gonzaga e Zédantas, de 1950, para iluminar o fenômeno de fotogênese da música). São esses os principais torpedos nos quais o anfitrião da noite insemina a espinha dorsal do mangue beat que o amamentou. Também comparece uma gravação do sucedâneo Siba e sua Fuloresta, Maria, Minha Maria (que, revela-se, é uma canção de domínio público dos anos 1920 que precederam Gonzagão). Maria, Minha Maria é cantada quase inteiramente a capela, com escassa instrumentação, lindamente dividida entre o abalo sísmico da voz de Du Peixe e a melodiosidade das cantoras de apoio. Antes de cantá-la, Du Peixe opina previamente: “Eu achava que Luiz Gonzaga devia ter cantado essa música. Se não cantou, vamos cantar agora”.
Du Peixe abre com uma possessão de Assum Preto (toada de 1950, de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga) que emparelha em grandiosidade e solenidade com Hallelujah, de Leonard Cohen. Sem exagero. O show vai se tornando mais dionisíaco conforme avança, com a força celebratória das canções de Gonzagão tomando o controle a partir de Sabiá (Luiz Gonzaga e Zédantas, de 1951) – a pulsão do baião sendo progressivamente mesclada às do ska, do bolero, do mangue beat.
Com seus óculos escuros de aviador de gibi do Hugo Pratt, Jorge Du Peixe canta postado no centro do palco do Sesc Vila Mariana. Os homens estão alinhados ao fundo, e as mulheres à frente. Elas é que ditam todo o caminho da sonoridade, com as cantoras e percussionistas Victória dos Santos e Sthe Araújo conduzindo toda essa Missa do Vaqueiro da moderna música brasileira clássica. Do lado esquerdo, a sanfoneira Nanda Guedes parecia uma provocação adicional – na função sagrada de Gonzagão, botaram uma instrumentista branca que parece uma figura de anime de cabelo verde? Mas Nanda dá um chapéu na performance mimética e cria sua própria valoração da herança gonzagueana. Bruno Buarque (bateria), Lello Bezerra (guitarra) e Fábio Pinczowski (baixista, também produtor do disco de Du Peixe) completam a esquadra.
Quando chega a Cacimba Nova (toada de 1964, do paraibano de Sumé Zé Marcolino), Du Peixe conta uma história bacana. Passado algum tempo após a gravação da canção, de surpresa, ele recebeu uma mensagem da filha do compositor Zé Marcolino, que não conhecia. Ela estava emocionada com a sua versão da música do pai e acabaram ficando amigos. Já Pau de Arara (1952, de Luiz Gonzaga e Guio de Morais) foi dedicada “a todos os pernambucanos que vivem no Tucanistão” – ou seja: São Paulo. Apesar do comentário e da força política de sua atuação, Jorge Du Peixe não invoca Gonzagão com outro intuito, a meu ver, que não seja o de mostrar a atualidade, visionarismo, potência e capacidade de emocionar da obra do sanfoneiro do Riacho da Brígida. Assim como o mangue beat ultrapassou a encruzilhada do rock, fundindo-o com a tradição nordestina, Jorge Du Peixe agora convida o público a conhecer a música que lhe deu régua e compasso. Impossível não sair dali com o som ricocheteando no espírito:
Belo é o Recife pegando fogo
Na pisada do maracatu
Não é um show que se escore nos hits de Gonzaga. Pelo contrário. O cantor recorreu a canções menos conhecidas, como Orélia (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), dedicada ao grande amor crespuscular do sanfoneiro, Edelzuíta Rabelo.
O show na Vila Mariana tava lotado, o povo aplaudia freneticamente, sacolejava nas cadeiras. Parecia que já era um novo Brasil renascendo exatamente da matéria-prima de excelência que fez nascer essa Nação: a cultura.