Ricardo Bacelar, Delia Fischer e Gilberto Gil durante as gravações de
Ricardo Bacelar, Delia Fischer e Gilberto Gil durante as gravações de "Andar com Gil". Foto: Nando Chagas. Divulgação

Em junho passado o baiano Gilberto Gil completou 80 anos e recebeu diversas e merecidas homenagens. Não é segredo para ninguém tratar-se de um dos mais iluminados compositores brasileiros, autor de um sem-número de clássicos de nossa música popular. O que pouca gente talvez perceba, ou se lembre, é que é também um dos mais espiritualizados criadores do país, aberto a todas as influências, sem esquecer as raízes africanas, mas sem preconceito com quaisquer religiosidades.

Andar com Gil. Capa. Reprodução
Andar com Gil. Capa. Reprodução

É sobre esse recorte espiritual de Gil que os pianistas Delia Fischer e Ricardo Bacelar se debruçam em “Andar com Gil”, título espertíssimo que transmuta o baiano na própria fé do título de sua composição que quase empresta nome ao álbum da dupla.

Disco minimalista, com dois pianos, alguma percussão e as participações especiais do homenageado (voz em “Prece”) e do violoncelista Jaques Morelembaun (na mesma faixa). O repertório alia hits e lados b do baiano, em nove faixas, como “Oriente”, “Se eu quiser falar com Deus”, “Cada tempo em seu lugar”, “São João Xangô menino” e “A paz”, as duas últimas as únicas composições em parceria, com Caetano Veloso e João Donato, respectivamente.

Gravado no Jasmim Studio, em Fortaleza, “Andar com Gil” está disponível nas plataformas de streaming e tem shows de lançamento hoje (1º.) no Rio e amanhã (2) em São Paulo. A primeira apresentação acontece no Teatro Rival Refit (Rua Álvaro Alvim, 33, Cinelândia), às 19h30, com participação especial de Jaques Morelenbaum, com ingressos a R$ 120,00 (R$60,00 a meia-entrada para os casos previstos em lei); a segunda, às 20h, no Blue Note (Av. Paulista, 2073, Bela Vista), com ingressos a R$ 100,00 e R$ 50,00.

Delia Fischer e Ricardo Bacelar conversaram com exclusividade com Farofafá.

Delia Fischer e Ricardo Bacelar. Foto: Leo Soares. Divulgação
Delia Fischer e Ricardo Bacelar. Foto: Leo Soares. Divulgação

ENTREVISTA: DELIA FISCHER E RICARDO BACELAR

ZEMA RIBEIRO – Vocês já haviam realizado alguns trabalhos juntos, mas é a primeira vez que fazem um disco inteiro. Como nasce essa relação de trabalho e amizade entre vocês e como surge a ideia desta bela homenagem a Gilberto Gil?
RICARDO BACELAR – Nós já realizamos trabalhos juntos, temos uma amizade de muitos anos, e resolvemos fazer um disco juntos. Ficamos um tempo pensando em qual projeto a gente poderia colaborar juntos. Nós somos amigos já há muito tempo, tivemos duas oportunidades de colaborar. Primeiro eu toquei com a Delia nos anos 1990, quando ela começou a carreira solo dela, depois do Duo Fênix, fizemos uma temporada no Rio Jazz Club, um clube de jazz que tinha aqui no Rio, e depois de um tempo gravamos duas faixas, a primeira uma faixa no meu disco “Ao vivo no Rio”, que gravei no Rio de Janeiro, no Blue Note, e gravamos “Nada será como antes”, um single, lançamos, música do Milton Nascimento e do Ronaldo Bastos, e depois gravamos uma música que eu fiz com o Belchior, um single chamado “Vício elegante”, e ela produziu pra mim e gravou as cordas.
DELIA FISCHER – Conheci Ricardo no começo dos anos 1990, onde eu estava começando minha carreira solo, depois de terminar o Duo Fênix, que foi meu primeiro trabalho, com outro tecladista, chamado Claudio Dauelsberg. Eu montei minha primeira banda instrumental. E Ricardo participou dos meus primeiros shows de carreira solo. Foi um momento muito interessante. A gente tinha uma amiga em comum, que nos apresentou, e foi muito bacana, foi muito legal esse nosso encontro e na verdade a gente nunca se perdeu de vista. A gente se reencontrou ao longo das décadas. Reencontrei Ricardo em Fortaleza quando fui fazer um show lá, a gente voltou a se falar. Nos encontramos na Europa, num festival, na Dinamarca, eu estava tocando num festival na Dinamarca, e ele estava lá com a esposa dele, grávida. É uma história até bonita: eu fiz um show com uma cantora, minha primeira banda, eu estou falando demais, né? [risos], Maria Petersen, era uma banda de música brasileira que eu compunha e cantava com a Maria e a Manoela ficou muito emocionada e a filha dela se chama Maria, eu acho que tem a ver com esse show. Ao longo do tempo, na verdade a gente é muito amigo, e a gente tem uma coisa especial que eu queria destacar, independente da questão de tocar, que é uma parceria de ajudar, que não é tão comum no meio musical, sabe? É uma coisa de, olha, dar dicas mesmo, o negócio agora é fazer assim, porque a vida mudou muito, né? Imagina, dos 90 pra cá, tudo mudou. E a gente tem essa camaradagem de, olha, isso funciona, isso é bom, fulano faz isso, tem um músico bom aqui pra chamar, ou tem uma maneira boa de lançar uma música assim, a gente está sempre trocando ideias do novo mercado da música. E essa nossa camaradagem virou o primeiro single, que foi o “Vício elegante” que eu produzi pra ele, eu fiz os arranjos de cordas da música dele com o Belchior, depois ele me convidou pra cantar no show dele do Rio, que foi o “Nada será como antes”, que virou um single, e desde então, a gente tem falado disso, mas sem saber muito o que fazer. Eu acho que agora, quando veio o Gil, a oportunidade veio muito forte, porque é uma paixão muito grande pros dois, eu acho que foi isso que fez a gente romper as barreiras das dificuldades, de formação, porque não é uma formação muito simples pra fazer um disco inteiro. Mas a gente conseguiu e eu estou muito contente.

ZR – Qual a sensação de contar com a participação especial do próprio homenageado? No entendimento de vocês isso funciona como uma espécie de chancela ao trabalho?
RB – É muito gratificante pra todos nós contar com a participação do Gil e acho que ele traz pro disco a sua chancela, a sua bênção pro trabalho, e logo com essa música, “Prece”, que é uma oração, em respeito às matrizes africanas, ao catolicismo, o hinduísmo, numa oração que respeita e abraça todas as religiões, de uma forma ecumênica.
DF – A participação do Gil, pra mim, ela funciona, como direi?, como a alma desse trabalho. Porque ele esteve com a gente o tempo inteiro. E eu tive a oportunidade de falar uma coisa pro Gil no estúdio, porque eu não o conhecia pessoalmente, eu já tinha sido apresentada, coisa de situação profissional, mas a gente não se conhecia, de bater papo. E eu falei “Gil, sabia que foi você que me fez descobrir o Brasil?”, e ele falou “como assim?”. Disse que quando eu estava na Bahia, quando eu tinha 12 anos, com a minha mãe, a gente foi passear de férias, e eu vi vários shows e vi shows que ele deu canja para meia dúzia de gatos pingados na plateia e vi a paixão dele no palco, improvisando, e vi a força. E eu não era ligada em música brasileira. A partir dali eu fui bebendo as origens de Gil, fui ver ensaio do [bloco] Filhos de Gandhi, fui na festa do Bonfim, eu fiquei completamente impregnada, fui na festa de Iemanjá, eu fiquei, eu era pra ficar 15 dias, eu fiquei quase dois meses, a gente não conseguia ir embora da Bahia, eu e minha mãe, isso foi marcante. Eu acho que a partir dali eu entendi que o Brasil é potente, o Brasil é forte, o Brasil é preto, o Brasil é digno, a cultura brasileira é incrível, a gente não precisa ficar comprando disco importado pra ver coisas maravilhosas. Então, o Gil me fez descobrir o Brasil e o Gil abençoou, o Gil fez uma bênção, rezando com a gente, na última música que a gente gravou do disco.

ZR – Outro convidado especial é o violoncelista Jaques Morelenbaum. Como foi costurada essa presença no disco?
RB – O Jaques veio através da Delia, conversaram e ele se interessou em participar da gravação e vai participar do show do Rio, e foi ótima a presença dele, ele trouxe esse violoncelo dele, maravilhoso, essa melodia que ele colocou na “Prece” foi belíssimo, o violoncelo nesse contracanto muito bonito. Foi assim, feito de uma forma muito natural.
DF – O Jaquinho é um músico querido, eu já tinha feito uma colaboração com ele, uma bossa nova, que eu fiz com o parceiro Márcio Nucci, e foi super-bem, é uma música super-executada, uma bossa nova clássica, que ficou linda com o Jaquinho. O Jaquinho foi uma coincidência, o Jaquinho estava curtindo “A paz”, ele falou “olha, eu gostei muito d“A paz”, que tal um violoncelo aí?”, eu falei “opa! O Jaquinho me deu uma ideia”. Pensei: ““A paz” já saiu, mas tem uma música que a gente vai gravar ainda, vamos conversar”. E ele estava em milhões de viagens, então deu certinho, porque quando o Gil podia vir gravar, o Jaquinho também podia. Então a gente alinhou a data, pro final do ano, pra dezembro, e deu super-certo, o Jaquinho pode gravar e vai estar no show do Rio de Janeiro.

ZR – Gil completou 80 anos em 2022 e tem recebido diversas homenagens. Vocês são dois pianistas, fato que já propõe naturalmente novos arranjos para o repertório escolhido, além de um recorte, digamos, espiritual da vasta obra do baiano. Quero ouvi-los sobre estas escolhas.
RB – O repertório do Gil é um repertório que nasce em cima do violão, aquele violão que ele faz é um violão muito importante para suas músicas, é onde ele compõe e partimos do ponto de vista dos pianistas, mudamos a ótica, do ponto de vista que nasce com o piano. Acho que essa linha do piano, ela veio mais sutil, é um disco mais minimalista, e esse recorte espiritual foi uma opção que nós encontramos, porque a obra do Gil é muito vasta e entendemos que precisávamos de uma linha para definir o repertório, para não ficar um repertório muito solto. E procuramos também misturar músicas muito conhecidas, que fizeram muito sucesso, com outras músicas que tocaram menos no rádio, mas que todas têm entre si uma relação harmônica e essa temática espiritual, que é uma temática importante.
DF – As escolhas têm muito mais a ver com a letra, com o que a gente quer passar e falar, com o que a gente acha necessário. Obviamente, eu posso falar por mim, eu venho muito de uma prática do teatro, minha última década foi muito ligada à direção musical de teatro, então eu penso realmente muito, muito no que eu quero falar e como é que isso vai impactar as pessoas. Porque a mensagem, por exemplo, sair com “A paz” como primeiro single tem tudo a ver, não vamos falar mais de guerra, ou de morte, vamos acalmar nossos corações, embora exista a guerra, a gente não vai se cegar pra ela, mas a gente quer passar uma mensagem de alento. Então eu diria que todas as músicas escolhidas passam pelo critério da letra e as que ficam, que a gente gosta da música, obviamente. Algumas, eu e Ricardo acabamos não colocando, o processo foi visto realmente em parceria.

ZR – Vocês são dois artistas com carreiras solo consolidadas. Gravar um disco é menos difícil do que realizar uma turnê. Como está a agenda de divulgação de “Andar com Gil”?
DF – Gravar um disco é sempre um mergulho, fazer um álbum é sempre um mergulho mais fundo. O single é uma coisa pontual, o álbum a gente precisa pensar um pouco mais no conceito, não é um apanhado de faixas. Eu não acho nada difícil em música. Talvez seja falta de modéstia minha. Tudo que eu faço com paixão e amor, independente do resultado, aprendi isso com Egberto Gismonti [a quem ela dedicou o repertório de “Saudações Egberto” (Rob Digital, 2011)], não importa se isso é cem, mil, um milhão, o importante é a gente falar de coração com as pessoas e atingir as pessoas que gostam de verdade e aí a minha missão está feita.
RB – Essa questão de gravar o disco você tem que encontrar um conceito. Um conceito é uma coisa que leva tempo para você amadurecer, repertório. Eu acho que eu e a Delia nós seguimos caminhos parecidos porque são dois músicos que eram somente pianistas e ela enveredou para o canto antes de mim, começou a cantar já faz mais tempo do que eu. Pra mim, o canto, naturalmente ele veio, foi chegando, assim, nem eu esperava que fosse cantar, mas vim cantar, e canto hoje em dia. Acho que agrega, porque é muito diferente. No canto você lida com seu próprio corpo e tem uma relação direta com as letras, com os textos. A agenda, graças a Deus, temos muito trabalho, estamos hoje no Rio de Janeiro e amanhã em São Paulo, fazendo shows e divulgando o trabalho.

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Ouça “Andar com Gil”:

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