Zé Ramalho - foto Leo Aversa
Zé Ramalho - foto Leo Aversa

Arnaldo Baptista, integrante fundador da banda tropicalista Mutantes, foi quem cunhou o termo “ateu psicodélico”, usado agora por Zé Ramalho para batizar seu novo álbum. A escolha do título Ateu Psicodélico pelo cantor e compositor paraibano carrega um tanto de significados, que tornam ainda mais prazeroso ouvir 12 novas canções de Zé, as primeiras apresentadas em dez anos, desde Sinais dos Tempos (2012).

Pintura de Arnaldo para Zé - foto Facebook Arnaldo Baptista
Pintura de Arnaldo para Zé – foto Facebook Arnaldo Baptista

Em primeiro lugar, a vinculação entre Zé Ramalho e Arnaldo Baptista (que tem divulgado entusiasticamente o novo trabalho em suas redes sociais) não é algo banal. Se a psicodelia é ponto de atração entre ambos, muitos são também os diques de separação: entre a tropicália e a ríspida e árida geração nordestina pós-tropicalista, entre o Nordeste e o Sudeste, entre um visionário “sério” e um “maluco” visionário, e assim por diante.

Em segundo lugar, não é qualquer artista pop que se autodeclara ateu, e Zé o faz com desassombro, também na entrevista em vídeo com a qual lançou Ateu Psicodélico: “Eu, além de ser psicodélico, sou ateu. Sempre fui. Apesar de ter sido criado no Nordeste por uma família extremamente católica, eu me libertei dessas coisas com 15, 16 anos, (…) Toda religião, para mim, tem um conceito de explorar, também, as pessoas, a sociedade”. Trata-se de uma proclamação de peso, já que os tempos são de extrema intolerância e é constante o burburinho sobre se Zé teria ou não se convertido ao bolsonarismo (o lado da disputa política que, a rigor, se manifesta como supostamente religioso e temente a Deus).

O artista se declara ateu também politicamente, apesar delançado diatribes contra Dilma Rousseff e ostentado posições políticas controversas (se preferimos um eufemismo) em anos recentes, como na estridente declaração que deu à imprensa em 2014, de conteúdo abertamente classista e sintonizado com os interesses do “andar de cima” da sociedade brasileira (“vida de gado, povo marcado”…): “É um governo chato, voltado para o social-comunismo do século 21. Comunismo é um estado social chato, querem que tudo seja dividido igualmente (…). Acho uma merda andar de avião com todas as cadeiras chapadas, não há mais primeira classe, executiva, é pra tudo ser igual”.

A intolerância tem recoberto a política brasileira desde mais ou menos a época em que Zé incorporou Danuza Leão e atirou-se contra o desaforo de dividir poltrona de avião com gente do “andar de baixo”, e não parece próximo de conclusão o debate sobre se devemos ou não “perdoar” ídolos artísticos que pensam e dizem coisas intoleráveis em nossas opiniões individuais. É uma decisão intransferível de cada um. Posto isso, é preciso que se diga, e esta uma opinião potencialmente intolerável para parte da (usemos mais um eufemismo) intelectualidade brasileira: Zé Ramalho é um gênio musical, e assim se exibe em Ateu Psicodélico.

O imaginário deste artista nascido em 1949 em Brejo do Cruz, na Paraíba, é de um tipo que preza pelo cerebral, mas não completamente, e joga o ouvinte ao mundo sensorial, mas não por inteiro. As frases nunca facilmente decifráveis pingam de estalactites no teto de uma caverna assustadora e encontram no chão as estalagmites do delírio estritamente musical. São feitas do mesmo material, a estalactite e a estalagmite, e no conjunto as palavras perturbam e complementam a alucinação sensorial, tanto quanto as guitarras do produtor pernambucano Robertinho de Recife raspam frases de sabor messiânico que não têm nada de messiânicas, porque não tentam conduzir o ouvinte para nenhum ponto específico. Você provavelmente não se tornará neocomunista nem neofascista por escutar a mágica musical de Zé Ramalho.

Ateu Psicodélico começa com as batidas progressivamente aceleradas de um coração, nas ondas hipnóticas da melodia de “As Onze Palavras”, entre “miragens” e “os últimos beijos que vão me lamber”. “Procurando o sopro do vento maior/ as ondas escavam a pedra da cor/ e o pensamento já se fez menor/ e as onze palavras enfim escutou”, diz o refrão marinho, numa atmosfera que sopra ventos passados como os do épico “Eternas Ondas” (1980), gravado originalmente pelo cearense Fagner.

Habitada por gaivotas e ondas que quebram na praia, a lenta e longa “Beira-Mar, a Ressurreição” ecoa o clássico “Beira-Mar” (1979), confirmando mais uma vez a fixação marítima do poeta nascido no interior paraibano profundo, onde ainda o sertão demora a virar mar. A ressurreição acontece entre “furacões enormes, ondas revoltadas/ pedras gigantescas, areias e brumas”, “montanhas de areia, enormes castelos/ camadas de sais a formarem rochedos”, “canoas perdidas, barcaças quebradas”. Em Zé Ramalho, a praia é deserto, a areia é oásis, a terra firme é naufrágio e o sertão já virou mar.

Novamente adornada por batidas cardíacas à la Pink Floyd, “Cópula” sucede a ressurreição, sexo explícito blues-rock-rappeado pela lupa do ex-garoto de aluguel, agora sem treponema pálido, nem viscoso. “A liberdade é ave voadora/ é o pára-raio de todos cometas/ a boca treme, vai balbuciando/ mordendo pontas de todas as tetas”, troveja o cantor, sob sonoridade tensa e tribal. Adiante, o tema sexual retorna, apenas sugerido, no forró orientalizado “Amanhecer Tantra” (“as histórias desses sonhos que vivi/ são estilhaços se espalhando por aí”), enriquecido pela sanfona gonzaguiana-dominguiniana do cearense Waldonys.

Tênue, a referência aos estados alterados de consciência se entrevê mansamente, entre ruídos noturnos silvestres, na toada nordestina “Olhar Entorpecido“: “Não vou deixar minha estrela se quebrar/ nem uma luz estará sem perceber/ léguas de sonhos que virão me abraçar/ tiram a cruz que me faz entorpecer”. O simbolismo repleto de imagens lisérgicas vira carrossel em “O Diagrama da Alma Dourada“, de contato íntimo com o Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967) dos Beatles, e palmilha “A Estrada de Tijolos Amarelos” do filme O Mágico de Oz (1939), mas transpondo-a para soturnas paisagens nordestinas, “pedras e conchas por todo canto”. A alucinação vira sertão no ritmo agalopado-forrozeiro do apocalíptico “Martelo Armagedon“, novamente com a sanfona de Waldonys.

A orgia dos sentidos vai do hard rock do Led Zeppelin à viagem lisérgica à base de sintetizadores new age (presentes em vários momentos de Ateu Psicodélico) em “O Gosto Fino das Sensações“: “Aqueles temporais de carne/ tudo arrancaram e varreram/ olhos de luzes abriram/ a brecha longa da fuga/ a face fresta da noite”. Alucinação e fantasia, no entanto, são vazadas de realidade e filosofia (e vice-versa): “Qual é a próxima vida?/ onde é o fim da viagem?/ o que virá em seguida?/ o gosto fino das sensações”. A ode ao desconhecido passa da angústia à quase-resignação de “O Que o Mundo Não Sabe Explicar“: “Imprimindo a grande consciência/ na imagem que veio do passado/ se transporta no tempo expirado/ a vontade de ver o que vai dar”.

A eletricidade roqueira de Robertinho de Recife, que caminha com Zé Ramalho desde a Antologia Acústica de 1997, recebe o aporte do guitarrista Andreas Kisser, num momento de puro nonsense pós-tudo, “Repentista Marvel”, em que o repente, a embolada e a literatura de cordel se entrelaçam com super-heroísmo hollywoodiano, mas menos para Incrível Hulk que para o Raul Seixas de “As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor” (1974): “Desenrole a consciência que eu tô no seu calcanhar/ eu vou viajar/ eu já cantei com Raul Seixas/ já cantei com Gonzagão/ cantei com o Sepultura/ e muito mais vou cantar”.

Ateu Psicodélico termina na balada agreste “Sextilhas Filosóficas”, sob trovoadas (não apenas as da voz do cantor, que se encontram em plena forma), como a dizer que onde queremos messianismo Zé Ramalho é filosofia e poesia: “Ao findar tem a partida e um passo que não derrapa/ no sonho tem compromissos que nenhum deles escapa/ do simbolismo existente em cada linha do mar, mar/ quem sabe essa cantada com luzes de improviso/ merece a cobiçada viagem desse juízo/ das coisas que o mundo teme, inferno e paraíso/ quem veio porque é preciso, seja do mar ou sertão,/ tirando fogo do frio, domando a escuridão”. Terminam em pique de juízo final os novos 12 trabalhos do Hércules paraibano.

Via de regra, o pensamento sudestino (ou, mais amplamente, não-nordestino) tem se recusado a esmiuçar ou sequer abordar as letras misteriosas, simbolistas e surrealistas de Zé Ramalho, e isso diz demais sobre o Brasil-ovo que não sai da casca, da superfície, da faixa litorânea, do interior disfarçado de cosmópolis. Diz muito sobre o horror que o sertanejo, antes de tudo um forte, causa em coronéis urbanos do Sudeste, do Sul ou de qualquer lugar (tal como, ironicamente, o pós-lobisomem Zé Ramalho teme os famintos da poltrona de trás no avião). É curta a bibliografia sobre o pós-repentista pós-trovador pós-Bob Dylan, mas há quem rompa a bolha. Em 2008, foi editado o livro Zé Ramalho – O Poeta dos Abismos, escrito pelo psicólogo e ufólogo franco-brasileiro Henri Koliver e publicado pela Aldeia Editorial, constituída pelo próprio autor em Alto Paraíso de Goiás, na Chapada dos Veadeiros.

Parte do trabalho resulta de entrevista de Zé por Koliver, que transcreve os depoimentos em primeira pessoa, como se fosse prosa fluente do próprio cantor-compositor. Os universos que a leitura descortina fazem perguntar como é possível que a história fabulosa de Zé Ramalho não entusiasme estudiosos não só franceses, mas também de cada canto do Brasil (a resposta para o enigma não está muito longe).”Uma parte do Nordeste é o portão do inferno”, declara o personagem traduzido pelo autor logo na primeira frase do relato-depoimento.

“Esta é a minha origem. Quando nasci, meu umbigo foi cortado por uma parteira, com uma peixeira, à luz do candeeiro, com o dia amanhecendo. (…) Conheci o mar com dez anos de idade. Meu pai morreu afogado em um açude, no sertão da Paraíba, quando eu tinha dois anos, e eu não tenho lembranças dele. Fui criado pelo meu avô”, rememora, evocando o velho e indivisível “Avôhai” (1978). Zé Ramalho não é assombração, mas assusta um bocado de gente desde que errava, ao lado do pernambucano Lula Côrtes, pela insondável rota indígena do Paêbirú – Caminho da Montanha do Sol (1975).

"Ateu Psicodélico" (2022), de Zé Ramalho

Ateu PsicodélicoDe Zé Ramalho. Avôhai/Discobertas.

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome