Cena da peça
Cena da peça "Teatro Amazonas" - Foto: Tristan Perez-Martin

O teatro é a arte do encontro, por mais chavão que a frase soe. Mesmo que artistas tenham se desdobrado para manter, durante a pandemia, os espetáculos cênicos em formatos híbridos, transmitidos por streaming ao vivo ou de forma gravada, nada se compara à alquimia do olho-no-olho entre plateia e artistas. O Festival Mirada, encerrado no domingo (18), revelou-se como o encontro em múltiplas possibilidades: por sua potência, pela diversidade das obras, pelos rompimentos estéticos e conceituais, por negar ou rever a história imposta, por permitir a todos respirar em seu sentido mais amplo.

Organizado minuciosa e extraordinariamente pela unidade Sesc Santos, o festival reuniu produções ibero-americanas num momento crucial para o Brasil. O projeto colonialista, talvez o nó górdio das sociedades modernas, está em curso e sendo colocado à prova, justamente quando o País celebra (ou deveria tentar refletir sobre) o Bicentenário da Independência. Jair Bolsonaro, cujas pretensões para se reeleger parecem um navio num destino sem volta rumo ao naufrágio, era a presença non-grata do Festival Mirada, como em tantos outros eventos culturais. Mas o que ele representa em essência, o projeto colonialista, continua em pleno vigor, no ano de 2022.

Embora o país homenageado fosse Portugal, o Brasil que sedia o festival ganhou uma centralidade a mais nessa edição. Foram apresentadas algumas obras de outros países que olham para o Brasil e refletem qual é o nosso papel no mundo. Uma delas se impôs por inúmeras razões: Teatro Amazonas, da dupla Azkona & Toloza. Ovacionados ao fim da apresentação no sábado, no Teatro Guarany, no centro de Santos, a coreógrafa Laida Azkona Goñi e o videoartista Txalo Toloza-Fernández, mostram como a Amazônia é hoje o que todo o território brasileiro foi para os portugueses no século 16, que ocuparam apenas as beiras do nosso litoral: um mero projeto de colonização.

Espetáculo em formato de teatro documental, em que Laida e Txalo se valem da técnica do verbatim, eles deixam claro que não são atores, e estão reproduzindo palavras e tonalidades de vozes de personagens da própria região amazônica que visitaram recentemente. “Os desertos são os lugares onde o capitalismo talvez seja mais duro, onde não há nada e ninguém vive”, diz Txalo. “Os projetos de desenvolvimento colonial e os de agora precisam dos desertos para legitimarem a sua entrada”, complementa Laida. Isso ocorreu no Deserto do Atacama, no Chile, onde a dupla encontrou inspiração para produzir o espetáculo Extraños Mares Arden (2014), na Patagônia argentina subtraída por milionários, que gerou a montagem Tierras Del Sud (2018), e agora no “deserto verde”, como também é conhecida a Amazônia. Os três espetáculos formam uma trilogia que se encerra com uma particularidade.

“Dos três territórios, a Amazônia atualmente é o lugar mais violento, porque há pessoas sendo assassinadas diariamente. Mas há também a violência da pobreza, da negação das culturais locais, e é muito mais dramático”, acrescenta Txalo, ao ser questionado se podia comparar as localidades das obras da trilogia. Teatro Amazonas começa sob um palco limpo e vai, lentamente, ganhando formas lúdicas que representarão as matas e construções. Didaticamente, eles falam de inúmeros projetos de colonização e exploração predatória da floresta, como a Fordlândia (PA), o projeto Jari (AP) e o próprio Teatro Amazonas (AM), da morte de lideranças defensoras da floresta, como Chico Mendes e Dorothy Stang. Ao final, o espetáculo mostra que vozes subjugadas da própria região, como os povos indígenas, estão se fortalecendo para reagir a esse processo colonizador que nunca foi interrompido.

O irônico é que a montagem Teatro Amazonas foi produzida por uma dupla de estrangeiros: Laida é espanhola e Txalo, chileno. Questionados como tem sido a reação do público em relação a essa obra que estreou há dois anos, no Chile, e já rodou palcos europeus, mas parece feita sob medida para o Brasil de Bolsonaro, Laida se adianta para responder. Na Europa, quando o espetáculo foi encenado, as pessoas diziam a eles: “A peça é muito interessante, eu não sabia disso, e no dia seguinte afirmam que levantaram pensando sobre o tema”. E Txalo arremata: “Quando apresentamos na América Latina, as pessoas nos dizem que não é só importante, mas urgente.”

Outra produção ibérica, vista por FAROFAFÁ, foi Cosmos, das atrizes e performers Cleo Diára (de Cabo Verde), Isabél Zuaa (origem portuguesa com ascendências de Guiné-Bissau e Angola) e Nádia Yracema (Angola). Com altos e baixos, o espetáculo parte de uma premissa, no mínimo, reflexiva: que outro mundo seria possível se fosse refundado a partir da mitologia africana? O afrofuturismo teria produzido um mundo mais humano? Ou tudo o que a Humanidade enfrentou em termos de guerras, fome, racismo, espoliações, acabaria por resultar no mesmo capitalismo selvagem que insiste em nos colonizar?

Intercâmbio cultural

“Conseguimos trazer trabalhos que olham para o Brasil, não só trabalhos que discutem o seu Bicentenário. As histórias na América Latina são muito parecidas. A partir do momento que tínhamos entendido que o festival homenagearia Portugal no Bicentenário da Independência, a gente buscou colocar essa discussão em cena e espero que ela renda novos encontros, novas possibilidades e também que a gente amplie nosso intercâmbio com Portugal”, afirma Tommy Ferrari Della Pietra, um dos curadores do Festival Mirada.

Na visão do curador, as peças brasileiras têm muito a ensinar para os artistas de Portugal, sobretudo na forma como eles enxergam o processo de colonização. “É muito importante trazer os portugueses para eles conhecerem isso e perceberem como o teatro aqui está colocando essas questões, que são questões fundamentais para eles também”, diz.

Cena de "Fronte[I]ra | Fracas[S]o", espetáculo teatral
Cena de “Fronte[I]ra | Fracas[S]o”, espetáculo teatral – Foto: Rafael Telles
Com uma perspectiva semelhante a Cosmos, Fronte[i]ra | Fracas[s]o, da parceria entre o grupo boliviano Teatro de Los Andes e o brasileiro Clowns de Shakespeare, propõe ressignificar questões como identidade, pertencimento e alteridade, muito caras aos povos colonizados da América Latina. E no confronto entre as experiências fracassadas pelo continente e mirando as fronteiras de até onde esses povos podem alcançar, quase numa visão utópica, chega-se a um espetáculo em que o público é convidado a refletir que história estamos construindo para nós mesmos e quais outras nos foram impostas. Construído nas incursões dos grupos em cidades amazônicas de Brasileira, no Acre, e Cobija, no Departamento de Pando, na Bolívia, Fronte[i]ra | Fracas[s]o partiu do encontro dos artistas com o público, amuralhado pelas paredes históricas dos Arcos do Valongo, em Santos, para tecer uma história marcada por um texto poético e singelo.

Em clave distinta, e certamente mais propensa à busca pela catarse, Discurso de Promoción, do tradicional Grupo Cultural Yuyachkani, fez uma atuação atualíssima para o Brasil que também revisita seu Bicentenário. A peça parte do quadro Proclamación de la Independencia de Perú (1904), do pintor Juan Lepiani, para mostrar que o povo foi escanteado da representação artística desse momento histórico. O mesmo valeria se fosse feito com o quadro Independência ou Morte (1888), de Pedro Américo, que voltou a ser exibido no Novo Museu do Ipiranga.

Na peça do grupo peruano, estudantes e professores de uma escola tradicional se rebelam contra as comemorações do Bicentenário do Peru e decidem questionar os símbolos e os valores que os quadros heróicos costumam vender. Num espetáculo performativo, em que o público precisa sair de sua posição estática, passiva até, os integrantes do Yuyachkani provocam, ainda que evocando por vezes uma linguagem desatualizada, senão inadequada, reações variadas que vão da repulsa ao que se vê à empatia pelos vários sofrimentos a que foram submetidos os povos latinos.

Espetáculo teatral "Lingua Brasileira", de Felipe Hirsch
Espetáculo teatral “Lingua Brasileira”, de Felipe Hirsch – Foto: Matheus Jose Maria

E essa jornada de encontros com o teatro presencial se encerrou, para o FAROFAFÁ, com o espetáculo Língua Brasileira, do diretor Felipe Hirsch, com composições de Tom Zé. A partir da música homônima, presente no álbum Imprensa Cantada (2003), o conjunto Ultralíricos, construiu uma densa dramaturgia que perpassa a formação da língua portuguesa, mas vai mais fundo na concepção do que são propriamente as línguas faladas.

Com seis atuantes (Amanda Lyra, Danilo Grangheia, Georgette Fadel, Josi Lopes, Pascoal da Conceição e Rodrigo Bolzan) no palco e quatro músicos (Biel Basile, Fernando Sagawa, Ivan Gomes e Luiza Brina) que apresentam as canções inéditas de Tom Zé, Língua Brasileira tem três horas de duração e evoca, quase como uma síntese, a tragédia da formação do Brasil. É preciso lembrar, sempre e de forma insistente, que a nação se desenvolveu à base do extermínio dos povos indígenas, e que a língua que hoje nos une é fruto de muitas dores e traumas do passado nunca cicatrizados. O encontro, aqui, é com a nossa própria consciência.

Repescagem do Mirada

Alguns espetáculos terão apresentações extras na capital paulista. São eles:

Dragon (Chile). De Guillermo Calderón. No Sesc Bom Retiro, dias 21 e 22.

Cosmos (Portugal). Com Cleo Diára, Isabél Zuaa e Nádia Yracema. No Sesc Santana.

Aurora Negra (Portugal). Com Cleo Diára, Isabél Zuaa e Nádia Yracema. No Sesc Santana, dia 23.

Teatro Amazonas (Espanha). Com Azkona & Toloza. No Sesc Vila Mariana, dias 22 e 23.

Cuando Pases sobre Mi Tumba (Uruguai). Com Sergio Blanco. No Sesc Consolação, dias 23 e 24.

* O repórter viajou a convite da produção do Festival Mirada
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