A linguagem de fresta povoa filme sobre o Clube da Esquina

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Em cartaz em 20 cidades brasileiras a partir desta quinta-feira, 28, o filme Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina, de Ana Rieper, destaca-se por dois motivos principais no meio da massa de produções sobre aquele período histórico da música de Minas Gerais e do Brasil. Em primeiro lugar, trata-se de um documentário geograficamente centrado. Parte de sua graça e desenvoltura se deve a atitudes como filmar os irmãos Márcio Borges e Lô Borges circulando pelas ruas de sua juventude em Belo Horizonte, vasculhar as escadarias do Edifício Levy e entrar no mitológico apartamento onde a numerosa família Borges acolheu Milton Nascimento, visitar a simplória esquina entre as ruas Divinópolis e Paraisópolis que deu nome mais ou menos imaginário a todo um movimento musical…

O passeio distraído faz pensar em como e por que a música brasileira tem o tamanho que tem, mas nem por isso jamais se estabeleceu aqui um turismo cultural consistente voltado à sua mitologia. De modo geral, a esquina Divinópolis x Paraisópolis está tão relegada às traças quanto a “Haddock Lobo, esquina com Mattoso” cantada por Tim Maia para reverenciar a turma da Tijuca carioca, a residência na Urca também carioca onde a portuguesa Carmen Miranda cresceu, a casa de Dona Canô na baiana Santo Amaro da Purificação, os sobrados das famílias Lee e Dias Baptista na Vila Mariana e na Pompeia paulistanas onde os Mutantes floresceram, o pequeno Cachoeiro do Itapemirim capixaba de Roberto Carlos, o rio que era a rua de Fafá de Belém e de tantos outros artistas paraenses, o endereço dos bailes de funk carioca de MC Júnior e MC Leonardo, o Capão Redondo paulistano dos Racionais MC’s etc. etc. etc. Nada Será Como Antes acende uma luz prosaica sobre essa possibilidade e, ah, se todos os documentários culturais fossem como Nada Será Como Antes nesse aspecto…

O segundo trunfo, esse mais propriamente musical, reside na construção paulatina nunca explicitada sobre o que originou a síntese musical única e inédita organizada ao redor da voz sobrenatural de Milton Nascimento. Esse castelo vai-se erguendo pelos depoimentos dos rapazes (hoje senhores) que circundavam Milton e deram cama instrumental e conceitual ao Clube da Esquina.

Devagar, vamos aprendendo que Milton e Márcio Borges aproximaram a MPB do cinema e da nouvelle vague francesa. Que Beto Guedes e Lô Borges inseminaram a música mineira com a paixão por (e para) John Lennon & Paul McCartney. Que o saxofonista Nivaldo Ornelas trouxe o gosto do jazz de Miles Davis e outros norte-americanos. Que o pianista Wagner Tiso salpicou pitadas de Chopin, Ravel e outros compositores eruditos, mas também da musicalidade cigana do leste europeu, sobre a música pop(ular brasileira). Que Toninho Horta pescou saberes dos violeiros caipiras e os transpôs para a guitarra pós-roqueira de “O Trem Azul” etc. Que o carioca Robertinho Silva (único negro do elenco, além de Milton) trouxe o candomblé, os pontos de orixás, os tambores de terreiro, a afro-brasilidade para a bateria e a percussão de “Cravo e Canela” e do Clube da Esquina como um todo. Que o rock progressivo britânico penetrou as fibras do clube por intermédio de Flávio Venturini e de integrantes do power group Som Imaginário (criado para acompanhar Milton), entre outros. Que Tavinho Moura beliscou o folclore local e que a religiosidade barroca mineira transbordou das vielas de Diamantina, de Ouro Preto, daqui, dali e de todo lugar. E assim por diante.

Os clubbers se movimentam pelas vielas de Minas Gerais – fotos de divulgação do filme

Depoimento por depoimento, o filme expõe, sem precisar dizer, que a mistura espetacular de referências, preferências e origens individuais resultou na excepcionalidade daquele encontro coletivo descomunal e nas sonoridades nunca antes ouvidas que ele forjou. Num relance, um dos clubbers da esquina define o papel de Milton como orquestrador do encontro: um “canto da sereia”.

Outra coisa que a diretora Ana Rieper não explicita, mas fica gritante no desfile de dezenas de participantes do movimento que teve seu auge nos anos 1970, é algo que já foi sublinhado pela cantora e compositora carioca Joyce Moreno (ausente do documentário, embora presente nos bastidores das gravações de Clube da Esquina, em 1972, na condição de esposa do violonista e guitarrista Nelson Angelo): o Clube da Esquina foi uma barca dos homens, um clube do Bolinha, de cabo a rabo.

Pouquíssimas mulheres aparecem ou são mencionadas em Nada Será Como Antes, a não ser na condição de musas, casos da gaúcha Elis Regina, uma das vozes do Milton compositor em seus anos de escalada, e de Duca Leal, à época casada com Márcio Borges e inspiradora do épico esquiniano “Um Girassol da Cor do Seu Cabelo“. Joyce (que assim como Elis gravou “Nada Será Como Antes” antes de Milton, em 1971) costuma objetar: para ela, a grande musa do clube sempre se chamou Milton Nascimento. O muso, a propósito, aparece falando no documentário, mas em registros não muito recentes.

Para bons entendedores, as marcas do tempo histórico estão todas presentes em Nada Será Como Antes, sem que jamais a diretora fuja dos trilhos da sutileza e do respeito pelos radiografados. Questões raciais, pequenas misoginias ou homofobias cintilam do mesmo modo como eram enfrentadas à época, de dentro do armário. O mesmo se dá em relação ao dom político expressado (subliminarmente) pelo Clube da Esquina e explicitado (candidamente) no documentário pela fala de um dos integrantes da confraria, quando diz que todos eram jovens de esquerda. Nada Será Como Antes, como o movimento cultural que o originou, comunica-se no idioma e na linguagem da fresta.

Leia mais sobre Nada Será Como Antes – A Música do Clube da Esquina aqui.

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