Só não come quem não quer

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Entre outros momentos preciosos, álbum registra o encontro de Gal Costa e Marina Sena. Foto: Alile Dara/ Divulgação
Entre outros momentos preciosos, álbum registra o encontro de Gal Costa e Marina Sena. Foto: Alile Dara/ Divulgação

“O poeta desfolha a bandeira/ e a manhã tropical se inicia” e a parceria do baiano Gilberto Gil com o piauiense Torquato Neto (1944-1972), lançada há 65 anos, exala frescor, em sua releitura que marca o encontro de Assucena Assucena (voz), Liniker (voz), Letrux (voz) e Josyara (voz e violão), nomes dos mais talentosos da música brasileira deste primeiro quarto de século.

A faixa abre “Biscoito Fino”, revelando-se acertada escolha para inaugurar um repertório que costura clássicos da música popular brasileira a partir da influência da Semana de Arte Moderna (1922), de que o movimento tropicalista foi um dos maiores credores.

"Biscoito Fino". Capa (de Ricardo Basbaum). Reprodução
“Biscoito Fino”. Capa (de Ricardo Basbaum). Reprodução

Com direção musical de Guilherme Kastrup (bateria e percussão) e curadoria de repertório de Renato Vieira e Ana Basbaum, que também assina a direção artística, o álbum está para muito além de mera coletânea: são releituras que, ao mesmo tempo, reaproximam o ouvinte de um repertório quase completamente presente ao inconsciente coletivo, além de apresentá-lo a um público mais jovem e trazer novidades, aqui e acolá, na contramão, apresentando também novos nomes e repertórios.

Casos de “Um Pedaço de Amor” (Edgar), citada em “Aquarela Brasileira” (Silas de Oliveira) – interpretada por Leci Brandão (voz), Rodrigo Campos (voz, cavaco, guitarras e percussão), Jonathan Ferr (piano, rhodes, baixo synth e vocoder) e Edgar (voz) – ou “Rap (P) Agatha” (Bia Ferreira) e “Dívida Histórica” (Brisa Flow), ambas citadas em “Deus Lhe Pague” (Chico Buarque), no encontro das citadas/citantes/cantantes com o Metá MetáJuçara Marçal (voz), Kiko Dinucci (guitarras e synths), Thiago França (saxofone tenor) e Marcelo Cabral (contrabaixo acústico e baixo synth). Em “Bim Bom” (João Gilberto) são citadas “Oba-lá-lá” (João Gilberto) e “Amálgama” (Jorge Mautner), com o trio Lucas Nunes (voz e piano), Dora Morelenbaum (voz) e Jorge Mautner (voz falada e violino).

O poeta Oswald de Andrade (1890-1954), um dos artífices do movimento modernista, afirmou que um dia a massa ainda iria comer do biscoito fino que ele fabricava – expressão que acabou por batizar a gravadora que lança o projeto homônimo, fundada em 1993, por Olívia Hime e Kati de Almeida Braga.

“Biscoito Fino”, o álbum, disponível nas plataformas de streaming, guarda preciosidades e surpresas, por exemplo o encontro de Gal Costa (1945-2022) e Marina Sena em “Para Lennon e McCartney” (Fernando Brant/ Márcio Borges/ Lô Borges), com incidental de “O Vento” (Dorival Caymmi).

Guilherme Kastrup, Dino Vicente (synths), Arrigo Barnabé e Negro Léo. Foto: Luan Cardoso. Divulgação
Guilherme Kastrup, Dino Vicente (synths), Arrigo Barnabé e Negro Léo. Foto: Luan Cardoso. Divulgação

A urdidura do álbum é delicada e o baiano Caymmi (1914-2008) é o autor da faixa seguinte, “Sargaço Mar”, em inspirada e particular interpretação de Arrigo Barnabé e Negro Léo, em dueto – e só então fui entender a citação que o pianista londrinense fez, em entrevista concedida a este resenhista, quando elogiou o maranhense e afirmou ter com ele gravado (à época, procurei o dueto nas plataformas de streaming, sem sucesso).

De piano (Paulo Braga toca o instrumento em “Sargaço Mar”) a piano, a próxima faixa é a instrumental “Água e Vinho” (Egberto Gismonti/ Geraldo Carneiro), a cargo de Bianca Gismonti, filha do autor, acompanhada apenas do MPC de Kastrup. No medley “Nanã (Coisa Nº. 5)” (Moacir Santos/ Mário Teles)/ “Honra ao Rei” (Letieres Leite)/ “Dança (Bachianas Brasileiras Nº. 4) (Heitor Villa-Lobos)”, Bianca se junta a Claudia Castelo Branco – juntas formam o Duo Gisbranco, com diversos álbuns lançados – e a Kastrup (MPC e percussão).

A seção cantada é retomada com o encontro poderoso de Maria Bethânia e Chico Chico, acompanhados por Maíra Freitas ao piano, na releitura de “Em Nome de Deus” (Sérgio Sampaio). Potentes também são os encontros de Jards Macalé e Criolo em “Sem Samba Não Dá” (Caetano Veloso), Arnaldo Antunes e Luedji Luna em “Sentado à Beira do Caminho” (Roberto Carlos/ Erasmo Carlos) e a pegada eletrônica na releitura de “Fico Louco” (Itamar Assumpção), com Lenine e Anelis Assumpção.

O repertório se completa com o medley “Fim de Caso” (Dolores Duran)/ “Eu Sei de Cor” (Antonio Junior/ Elcio Carvalho/ Gustavo Pereira/ Larissa Silva), no encontro de Zélia Duncan (voz), Letícia Soares (voz) e Wanessa Dourado (violinos e bandolim), e “A Vida do Viajante” (Luiz Gonzaga/ Hervê Cordovil), por Luiz Caldas (voz, violão de aço e guitarra) e Illy (voz).

A Biscoito Fino oferece o cardápio, saboroso e colorido, temperado pela riqueza, diversidade e exuberância de nossa música popular. Refestelemo-nos com o luxuoso banquete!

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Ouça “Biscoito Fino”:

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