Retratos: Leo Aversa/ Divulgação
Retratos: Leo Aversa/ Divulgação

Só o fato de ser o parceiro mais constante de Egberto Gismonti e ter feito letras para músicas do argentino Astor Piazzolla (1921-1992) bastaria para colocar Geraldo Carneiro no panteão dos maiores artistas surgidos no Brasil na segunda metade do século XX.

Mas o poeta, letrista, dramaturgo e roteirista é bem mais que isso: artista multimídia antes de o termo ser inventado, o mineiro de Belo Horizonte se mudou ainda criança para a então capital federal, o Rio de Janeiro, onde vive desde então.

Em todas as áreas fez muito e com qualidade. Se ficarmos apenas no campo da música, além dos já citados, escreveu letras para Eduardo Souto Neto, Francis Hime, João Donato, John Neschling, Moacyr Luz, Olívia Byington e Wagner Tiso, além do irmão Nando Carneiro, e foi gravado por nomes como André Mehmari, Charlie Haden (1937-2014), Delia Fischer, Hamilton de Holanda, Jan Garbarek, Jane Duboc, Leila Pinheiro, Mauro Senise, Naná Vasconcelos (1944-2016), Ney Matogrosso, Olívia Hime, Sérgio e Odair Assadi, Tom Jobim (1927-1994) e Miúcha (1937-2018), Yo-Yo Ma e Vinícius de Moraes (1913-1980) e Toquinho.

Ano passado, Geraldo Carneiro lançou o excelente “Folias de aprendiz” (Intrínseca, 2022, 264 p.; leia um trecho), misto de memória, autobiografia e bibliografia afetiva, em que passeia, como o título indica, por seus anos de juventude, mesclando a própria vida e criação a obras de arte por que foi atravessado, nos mais diversos campos, num diálogo sensível e inteligente, com destaque para seu convívio com personagens como João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), Vinícius de Moraes, Paulo Mendes Campos (1922-1991) e Millôr Fernandes (1923-2012), entre outros.

Uma das delícias de ler Geraldo Carneiro é, instantaneamente, tornar-se um seu íntimo – e daqueles com quem ele goza/ou de intimidade. Sua prosa fluida e elegante parece estar sendo dita numa mesa de bar a alguém muito próximo. Apesar da estreita ligação com figuras monumentais e fundamentais da cultura brasileira, o escritor nunca soa arrogante, pedante ou deslumbrado. Entre o convívio com pessoas e obras, tateia com humildade e ética as histórias que se sente à vontade para nos contar.

Por e-mail ele conversou com exclusividade com FAROFAFÁ.

ZEMA RIBEIRO: “Folias de aprendiz” é um livro de memórias, permeadas por tua relação com as artes, entre fruição e criação. É muito interessante como as obras de diversos artistas admirados por ti permeiam a narrativa, fundindo-se à tua própria história de vida. O que foi mais fácil e mais difícil ao longo desse processo?
GERALDO CARNEIRO: O processo fluiu com certa tranquilidade e muita alegria. Às vezes batia uma dor, por relembrar as perdas e os momentos difíceis. Mas em geral foi uma viagem agradável pelo tempo.

ZR: Outra coisa que chama a atenção no livro é o fato de você se despir completamente de vaidades. Como ser parceiro de Egberto Gismonti e Astor Piazzolla e ter convivido com Vinícius de Moraes, Paulo Mendes Campos e tantos outros e não deixar isso afetar o ego?
GC: Meu ego não é lá grandes coisas. E os encontros foram tão acidentais que não vejo mérito neles, mas sim conspirações do acaso.

ZR: O seu arco de interesses e atuações é vasto, incluindo a poesia, a música popular, o teatro, a televisão. Como é ser um artista multimídia desde antes de o termo ter sido inventado?
GC: Nunca tinha pensado nisso. Acho que essa multiplicidade artística se deve também ao acaso e, sobretudo, à necessidade de ganhar a vida. Aliás, creio que ninguém escapa desta última, a não ser o Conde Tolstói e mais meia dúzia de afortunados da classe dominante. O próprio livro, como você sabe, foi escrito graças à encomenda do editor.  

ZR: Há um episódio em que você cita uma fotografia da infância e revela fazê-lo com base na lembrança que você tem da fotografia, em vez de ir consultá-la para assegurar se a memória não te trai. Isto explica o fato de o livro não trazer imagens ilustrando-o?
GC: Até pensamos em incluir no livro um caderno de fotografias. Mas nunca tive tempo nem organização mental para guardá-las. Se minha irmã não fosse fotógrafa e minha mãe não guardasse os recortes de jornal, talvez não existissem registros meus. Não tenho muita fé na posteridade. Acho que a gente só vive hoje, depois se precipita no caos.

ZR: Você diz não ter fé na posteridade. No entanto, é um dos maiores artistas que o Brasil já conheceu, que produziu uma obra consistente, espalhada pelas mais diversas linguagens, com vários livros publicados e inúmeras composições gravadas. Não reside aí uma contradição?
GC: Agradeço suas palavras amáveis. Mas desconfio que a posteridade não é lá muito católica, nem ateia, budista ou muçulmana. Algumas coisas sobrevivem ao presente por acaso; outras, às vezes mais importantes, não. E há pessoas que perseguem e planejam sua posteridade. Já eu só pretendo ser feliz nesta encadernação.

ZR: Talvez o nome mais citado ao longo de seu livro seja o do poeta Carlos Drummond de Andrade [1902-1987] e você foi aluno de Cacaso [Antônio Carlos de Brito, 1944-1987], ambos marcantes em sua trajetória, mas com o primeiro você travou contato praticamente apenas com a obra, e com o outro chegou a ter esse convívio mais próximo. Gostaria que você aprofundasse essas relações e saber se para você há diferença entre conhecer apenas a obra de um poeta e conhecer um poeta, no sentido, talvez de conhecer mais a fundo o processo criativo que resultou naquela obra. Quer dizer: apesar de sua explícita predileção por Drummond você diria se sentir mais íntimo, não apenas das pessoas, mas das obras de Cacaso, Vinícius ou Paulo Mendes Campos, por exemplo, para citar criadores com quem você conviveu?
GC: Por acaso os poetas que conheci de perto eram pessoas muito interessantes. Cada qual com o seu grão de loucura – o que, aliás, é fundamental. Drummond, aliás, fala desse tema, convocando o Espírito de Minas a ajudá-lo a conservar sua sanidade. E, quanto ao Drummond, não é bem o caso de predileção minha: a presença dele é avassaladora na poesia do Brasil e da língua portuguesa.

ZR: O recorte temporal de “Folias de aprendiz”, como o nome indica, são os anos da juventude. Alguma perspectiva de um novo volume com a continuação destas memórias?
GC: Se houver interesse dos leitores, posso escrever um segundo volume, e, se for o caso, um terceiro. A vida é sempre uma aprendizagem, mesmo quando as folias são mais interiores do que as do lado de fora.

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