Foto de Leo Aversa

Há uma pilhéria no roteiro do show Que tal um samba?, de Chico Buarque de Hollanda, que parece embutir com clareza a bifurcação em que nos vemos imersos em seu novo espetáculo. Em dado momento, Chico apresenta a banda, fala de sua excelência musical e de como ele seria o músico menos dotado ali, sozinho com seu “violãozinho”, a léguas de distância do virtuosismo de um Yamandú Costa ou um Jimi Hendrix, ele diz, tirando sarro de si mesmo. Basicamente, Que tal um samba?, que Chico estreou ontem, quinta, 2, em São Paulo, e no qual divide a cena com a meio soprano paulistana Monica Salmaso, se equilibra justamente numa aparente dicotomia: Monica Salmaso, a parceira no espetáculo, é impecável, não erra uma nota, não tem lembrança do que seja desafinar, não tem inseguranças, desconhece a desmemória de uma canção ou de um arranjo, erudita que é.

Essa irrepreensibilidade de Monica nos dá a impressão de criar um ambiente de realidades paralelas no concerto, uma aparente oposição entre o rigor técnico e o puro instinto criativo. Da abertura, quando ela canta sozinha Todos Juntos (de Os Saltimbancos), tocando uma kalimba (ou piano de dedo), até uma interpretação rascante de Beatriz, sua quinta de seis canções no primeiro set do show, é tudo irrepreensível e roça a perfeição. Quando Chico entra em cena, parece que a gente sente até um alívio: eis aí um artista daquela espécie em extinção que incorpora o erro, a hesitação, o desvio de sentimentos, as inseguranças, o barulho do bar e a desconfiança em sua própria maestria para produzir uma obra que reflete exatamente sobre essa condição humana: a falha. E os dois têm algo a dizer juntos essa noite.

A própria presença física de Chico subverte um milhão de expectativas em torno de noções algorítmicas de satisfação, aproveitamento, performance, desempenho. Então, seria possível de se explicar com regras convencionais a presença de um homem de 78 anos sambando tropegamente num palco e sendo chamado aos berros de “gostoso” e “lindo” por garotas de 25 anos?

Vejam, essa observação não tem o intuito de macular a fantástica experiência que o show nos proporciona, apenas de transmitir uma sensação pessoal, mas transferível. Nem Monica é maquinal nem Chico é um jogador de dados. Em meio a essa tempestade perfeita, Chico caminha com suas botinhas London Fog por um cenário de refinadas combinações – estruturas geométricas fixas aparentadas das telas de Samsom Flexor dos anos 1950 e projeções de fotografias diáfanas do cotidiano de um Brasil profundíssimo – e com uma raramente alcançada comunhão com o espírito de alívio de toda sua plateia. Tudo conduzido do alto de um morro de batuques formidáveis pelo percussionista Chico Batera, a espinha dorsal do espetáculo.

Chico Buarque nos proporciona, pela enésima vez, uma revanche limpa, suave mas enérgica e altiva, erigida sobre a afirmação de nossa humanidade, nossa ternura comum pelos resistentes de todos os grotões, pelos que se negam ao açoite e fogem dos vinhedos na calada da noite. Ele é um de nós, e essa é a essência de sua arte. É por isso que rimos automaticamente quando ele tira sarro das patacoadas da Justiça (que lhe negou kafkianamente a autoria de Roda Viva, notória música de 1968), e também dos achaques constantes de que é vítima na Internet, mas salientando que não se abala com nada disso – só fica mesmo pistola quando dizem que ele “compra música” dos outros. “Eu não compro música! Mas…”, diz, peremptoriamente, para emendar então o verso da canção Bancarrota Blues: “Eu posso vender. Quanto quer pagar?”.´

A possibilidade de repertório tinha 5 décadas de cardápio pela frente, mas as escolhas finais fazem parte de uma afirmação da resistência, de releituras, com respostas pontuais à empulhação e ao falseamento (“Hoje eu tenho apenas/Uma pedra no meu peito/Exijo respeito”), à estigmatização das diferenças (“E agradeça ao Senhor/Você tem o amor/Que merece”), o recrudescimento do racismo (“E essa zoeira dentro da prisão/Crioulos empilhados no porão”), ao apagamento dos malfeitos e à anistia compulsória (“Por ergueres a mão, por bateres em mim”).

Quando Chico canta Bastidores, não é a autoralidade que está em jogo, e sim a lembrança viva de Cauby Peixoto, de como Cauby surrupiou essa canção de Chico no nascedouro e a tornou sua, e fez de seus versos a própria expressão de sua singularidade: “Cantei, cantei. Jamais cantei tão lindo assim. E os homens lá pedindo bis, bêbados e febris a se rasgar por mim”. As personas que Chico assumiu já não são mais suas, são nossas, ingressaram em um patamar de compreensão coletiva e aberta.

A amarração do show, que soa como um conjunto de fragmentos ganhando sentido progressivamente, se completa quando Chico canta Que tal um samba?, a composição mais recente. Aí está explicitado o exorcismo, que é integralmente compreendido pelo público, quando este berra mais alto os versos “Depois de tanta demência/E uma dor filha da puta, que tal?/Puxar um samba/Que tal um samba?”. O filho da puta parece ter reconhecimento instantâneo.

É evidente que a maior experiência de um show de Chico não é mais tentar entendê-lo, mas prestar nosso tributo às coisas maravilhosas de que é capaz o gênio humano. Pode-se desfrutar tudo apenas como um conjunto de clássicos da alma: O Meu Guri, Mil Perdões, Injuriado. É um privilégio infinito viver nesse tempo e ter a graça de ouvir uma obra-prima como Futuros Amantes sendo interpretada pelo seu próprio autor. E quando ele vai à boca do palco, cantando Tua Cantiga, de 2017, olhando fixamente para o fundo da imensa casa de shows (onde estão os antigos parceiros, a filha, a ex-mulher, as cantoras, os cronistas de futebol, as colunistas de jornal, os empresários da noite), de um jeito afetuoso, é impossível não interpretar aquilo como um aceno de despedida das turnês (que a gente torce para que nunca chegue):

“E quando o nosso tempo passar
Quando eu não estiver mais aqui
Lembra-te, minha nega, desta cantiga
Que fiz pra ti”

QUE TAL UM SAMBA?. Chico Buarque de Hollanda, com a convidada especial Monica Salmaso. Local: TOKIO MARINE HALL (Rua Bragança Paulista, 1281, Chácara Santo Antonio). Datas extras abertas para os dias 07 e 08 de abril (sexta e sábado). Início das vendas: 02/03 (quinta), às 14h. Informações e vendas:     

https://www.sympla.com.br/

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