Manu Chao durante seu show no Cine Joia, em São Paulo (foto de Nana Tucci)

“Gravei um repertório para o povo cantar”, disse o cantor pernambucano Reginaldo Rossi (1943-2013), o Rei do Brega. O cantor franco-espanhol Manu Chao também gravou um repertório para o povo cantar duas décadas atrás (quando lançou o álbum Clandestino, em 1998), mas Manu tem uma preocupação adicional: fazer o povo olhar para dentro de si quando anda meio esquecido de si mesmo. Por isso, flanando pelo território brasileiro neste Verão, Manu tem aberto seus shows com a canção Garçom, clássico incontestável do Rei do Brega de 1986.

Na noite desta terça-feira, 14, no aquecimento para a Jornada de Momo, Manu instalou a Jornada de Manu em dois shows-relâmpago no Cine Joia, no coração da Liberdade, em São Paulo, mais de 10 anos depois de sua última turnê regular na Capital paulista. Logo após um DJ set de música latina vertiginosa servido pelos irmãos Sebastián e Mateo Piracés-Ugarte, da banda paulistana Francisco, El Hombre, Manu entrou em cena com seu power trio (percussão, violão, ukulele) apenas, cantando Garçom, a pedra de toque de Reginaldo. Mas não se trata apenas de um tributo: logo em seguida a Garçom, Manu emenda Giramundo, na qual declara: “Yo no falo español/Yo no falo português/Ô, desculpa, minha gente/Yo só falo portunhol”. Passa de um universo musical a outro como se sorvesse a mesma cachaça pura, sem mudança de ritmo, sem alteração de pulsação, sem solavanco cultural.

Sem pátria, sem gravadora, sem agente, deliberadamente sem agenda, manuseando um esperanto de todas as línguas, Manu Chao é um artista livre que onde chega instala a festa. Além da notável força política das canções de Chao, ele carrega consigo a mais política de todas as mensagens: vive como pensa, pensa como vive. Vê um bar pé-sujo no Centrão de Fortaleza e entra e bebe com os frequentadores no balcão apenas porque ouve no alto-falante um som que lhe diz respeito (e era Se Ainda Existe Amor, de Raulzito, na voz do cantor Balthazar).

Mais importante: Manu ganhou ferrenha autoridade em sua carreira para não fazer o que não quer. Pode tranquilamente chamar o bloco financeiro-esportista da FIFA de “ladrão” em uma canção, La Vida Tómbola, que todo mundo saberá a que ele se refere e não se permitirá contestação.

“Se eu fosse Maradona, viveria como ele. Porque o mundo é uma bola que se vive à flor da pele”. Enquanto o artista cantava La Vida Tómbola, um rapaz da plateia do Cine Joia erguia ao céu uma camiseta da seleção argentina de futebol com a inscrição MESSI nas costas, como se esperasse que Manu reinserisse em sua música o nome do notável vitorioso argentino de 2022, Lionel Messi. Mas Manu ignorou, provavelmente porque não vê paralelo de comparação entre o exemplo calado, reverente e neutro de Messi e a locomotiva de subversão e provocação de Maradona.

Os hits se sucedem (dos discos Próxima Estación: Esperanza, de 2001, e La Radiolina, de 2007, no início, até a consagração de Je ne t’aime plus e Bongo Bong, de Clandestino, no final) e, entre um e outro, Manu saúda a cidade, saúda o público, puxa duelos de dentes com os parceiros musicais, espalha euforia e congraçamento. Nos anos 2000, o cantor tinha uma conexão mais forte com o Rio de Janeiro. Agora, é o Nordeste que está impregnado no mélange de Manu (que tem um filho no Ceará), com Reginaldo e até Gonzagão marcando ponto (Fogo-Pagou, de 1973).

O público de Manu Chao não é mais teen como era nos anos 1990. Está calejado agora, muitos se viram obrigados a lutar contra o fascismo, perderam amigos e amados nos últimos anos, choraram e se esgoelaram nas ruas. Manu lhes providencia redenção por algumas horas. É um herói ético que, além de tudo, carrega representação em sua fidelidade ao desregramento e aos despossuídos.

A reportagem do FAROFAFÁ agradece a Manu Chao os dois convites que deixou na portaria e que permitiram que a gente assistisse ao show no Cine Joia

PUBLICIDADE

1 COMENTÁRIO

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome