Os óculos de Machado de Assis, em exposição na Avenida Paulista

O tamanho do Machado sempre faz a gente imaginar o tamanho da machadada. Mas o fato é que a expografia modesta da Ocupação Machado de Assis, aberta no último sábado, 18, no Itaú Cultural, na Avenida Paulista, não faz exatamente jus ao portento literário que foi o escritor. Acanhada em recursos multimídia, um pouco tímida na legendagem das obras nos balcões (às vezes é preciso debruçar-se demasiadamente sobre os painéis para poder lê-los), sem grandes ousadias expositivas, sem investidas no ineditismo de informação, a Ocupação é um tributo muito aquém do personagem.

Não se trata de esperar espetáculo de uma mostra acerca de uma literatura tão funda quanto a de Machado. Mas, certamente, uma exposição sobre um dos maiores escritores em língua portuguesa da História deveria atentar para seduzir primordialmente os não-convertidos, e a Ocupação Machado de Assis é mais adequada aos seus leitores habituais. Do ponto de vista da memorabilia, há pouca coisa original ou surpreendente – alguns manuscritos descritos como originais são, na verdade, fac-símiles. Machado não surge inserido no seu tempo, na ambiência viva do seu século, mas como um personagem um tanto enciclopédico, granítico.

Entre as boas intervenções em vídeo, há uma arguta digressão do curador da mostra, Hélio de Seixas Guimarães, que ilustra como Machado foi utilizando alguns dos livros da primeira fase de sua produção como um espaço de experiência para aquilo que viria depois. Então, o autor-visitante pode se sentir confortado nesse ponto: se Machado pode se escorar em pretensos fracassos para erigir obras-primas, talvez nem tudo seja fiasco e frustração nas trajetórias dos ordinários. Guimarães é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo, pesquisador do CNPq e especialista na obra da lenda do Cosme Velho.

O visitante encontrará objetos cedidos pela Academia Brasileira de Letras (óculos, penas, tinteiro, mata-borrão e ampulheta), uma reprodução de cópia do testamento de Machado, de 10 de outubro de 1908, exemplares de edições antigas dos seus livros (como o Memorial de Aires, póstumo, publicado apenas alguns meses após a morte do autor, em 29 de setembro de 1908), correspondência com Olavo Bilac, entre outras peças. Há exemplares de primeiras edições do autor e também de edições estrangeiras de seus livros, como Memórias Póstumas de Brás Cubas para o japonês e A Igreja do Diabo para o italiano.

Um bom totem é o de áudio, no qual se pode ouvir, lido por diversos intérpretes, em italiano, japonês, espanhol, árabe, polonês, croata e francês, textos do escritor, como Mão Preta. Há um fascinante recorte (de quase impossível leitura, pelo tamanho da reprodução) de um artigo de A Semana, de 31 de janeiro de 1897, no qual Machado aborda um dos maiores eventos sociológicos daquele século: a Guerra de Canudos. Seu fino sarcasmo, direcionado principalmente ao modo como a informação era produzida à distância dos fatos, marca o texto todo (transcrevo parcialmente abaixo com grafia atual):

“Os direitos da imaginação e da poesia hão de sempre achar inimiga uma sociedade industrial e burguesa. Em nome deles, protesto contra a perseguição que se está fazendo à gente de Antonio Conselheiro. Este homem fundou uma seita a que não se sabe o nome ou a doutrina. Já este mistério é poesia. Contam-se muitas anedotas, diz-se que o chefe manda matar gente, e ainda agora fez assassinar famílias numerosas porque o não queriam acompanhar. É uma repetição do crê ou morre; mas a vocação de Maomé era conhecida. De Antonio Conselheiro, ignoramos se teve alguma entrevista com o anjo Gabriel, se escreveu algum livro, nem sequer se sabe escrever. Não se lhe conhecem discursos. Diz que tem consigo milhares de fanáticos. Também eu o disse aqui, há dois ou três anos, quando eles não passavam de mil ou mil e tantos. Se na última batalha é certo que morreram novecentos deles e o resto não se desapega de tal apóstolo, é que algum vínculo moral e fortíssimo os prende até a morte. Que vínculo é esse?”.

E Machado, que pôs em dúvida em artigos a postura da imprensa face ao fenômeno de Canudos, prossegue: “De Antonio Conselheiro e seus fanáticos nunca se fez silêncio absoluto. Poucos acreditavam, muitos riam, quase todos passavam adiante, porque os jornais são numerosos e a viagem dos bondes é curta; casos há, como os de Santa Tereza, em que é curtíssima. Mas, em suma, falavam-se deles. Eram matéria de crônicas sem motivo”.

As leituras de Machado também contam com o talento de artistas de outras praias, como as atrizes Aysha Nascimento, Carlota Joaquina e Cleide Queirós e a cantora Juçara Marçal. O visitante pode testar seus conhecimentos em uma brincadeira com as palavras cruzadas e sentar-se num gabinete que emula o ambiente de produção do século 19.

A abertura da Ocupação marca o lançamento da coleção Machado de Assis pela Todavia Livros. Idealizada por Hélio de Seixas Guimarães, a coleção reúne todos os 26 volumes que o carioca Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), filho de mãe branca, açoriana, e de pai negro, publicou em poesia, crítica, teatro, tradução, crônica, conto e romance a partir de 1861. Neste momento, está à venda a caixa Machado, de tiragem limitada, contendo todos os volumes, por R$ 1.599,00. A partir do início de 2024, os livros poderão ser adquiridos separadamente. O Itaú Cultural apoiou e participou do processo de construção da coleção por meio do seu Núcleo de Artes Cênicas, Literatura e Música.

Em 2018, a emissora inglesa BBC fez uma pesquisa com 108 especialistas em literatura de 35 países diferentes para listar os 100 livros mais influentes da história. Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, publicado em 1881, ficou com a 60ª posição, à frente de obras como O Aleph, do argentino Jorge Luis Borges (90º), e Antígona, do grego Sófocles (79º) – a lista ignorou o russo Anton Tchekhov e o português José Saramago. “Ele é o maior literato negro, creio, da história da literatura universal”, disse, em 2003, o crítico literário Harold Bloom, quando da publicação do seu livro Os Cem Autores Mais Criativos da História da Literatura (Objetiva).

  • Ocupação Machado de Assis. Itaú Cultural (Avenida Paulista, 149). Grátis. Terça a sábado, das 11h às 20h; domingo e feriados, das 11h às 19h. A exposição fica em cartaz até o dia 4 de fevereiro de 2024.

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