A vida invisível de Eurídice Gusmão. Frame. Reprodução
A vida invisível de Eurídice Gusmão. Frame. Reprodução

CRÍTICA: Em A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, do cearense Karim Aïnouz, duas irmãs cultivam anseios que jamais se encontram

 

 

Um filme sobre mulheres, com mulheres, de arguta sensibilidade feminina, mas dirigido primordialmente aos homens. Que certamente ficarão incomodados, intranquilos, agoniados, e alguns se sentirão acossados nas poltronas do cinema. A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Karim Aïnouz, que finalmente estreia no País todo neste dia 21 de novembro, fala da vida invisível de milhões de mulheres que são vítimas, cotidianamente, de todo tipo de violência – as violências física, emocional, existencial, hierárquica, familiar, sexual, social.

Falando assim, parece um filme duro, sem afeto, mas é exatamente o contrário. É possível dizer, com certo exagero, que é uma espécie de Orgulho e Preconceito do morro, por tratar de tema tão doloroso com a delicadeza dos saraus de clube, dos recitais no Municipal, das festas ingênuas de lança-perfume e corsos pelas ruas. Como se fosse um filme de época, só que sua verdadeira intenção é de amarrar pontas soltas, aproximar fendas temporais.

As irmãs Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler) são as personagens centrais do filme. Criadas em uma atmosfera de pasmaceira cortesã por um casal de portugueses, elas têm inclinações diferentes: Eurídice tem talento para a música, corteja um destino de concertista em Viena; já Guida quer viver a vida plena, amores fabulosos de romances, festas sem fim, aventuras rocambolescas. Elas são, em essência, a mesma pessoa: uma é o que a outra quer ser, secretamente. Por isso, seus anseios jamais se encontram, porque não há como realizá-los em um mundo que se especializou em podá-los. Eurídice é um pouco como a Felicité, de Flaubert, atravessando o seu destino sem abdicar de sua pureza.

A naturalidade das violências todas que a mulher sofre é examinada com um olhar astuto por Karim Aïnouz. O diretor sabe que uma noiva que seja violentada pelo próprio noivo na noite de núpcias não será um drama que mobilizará as consciências. “Afinal, ela estava ali para isso, não?”, dirão alguns circunstantes. É uma das cenas mais angustiantes do filme. A mulher de classe média se encontra com a mulher de cortiço, a mulher de amores dançantes se encontra com sua capacidade materna, a mulher calada se encontra com a mulher que se emancipa, com a mulher que quer ser dona do seu destino. Melodrama existencial, o filme vai se encaminhando para um desfecho que parece de reportagem de programa de tevê de variedades, de domingo, mas desemboca em um final sempre incompleto.

O filme é baseado no romance homônimo de 2016, da então estreante Martha Batalha. Recifense, mas criada no Rio de Janeiro, a autora desenvolve com sutileza a vida limitada de Eurídice, uma mulher que vira dona de casa, mãe e esposa, provocando uma profunda reflexão sobre as escolhas que não lhe foram permitidas tomar. Porque Eurídice, vejam vocês, era uma mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados, ela projetaria pontes. Se lhe dessem um laboratório ela inventaria vacinas. Se lhe dessem páginas brancas ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram cuecas sujas, que Eurídice lavou muito rápido e muito bem, sentando-se em seguida no sofá, olhando as unhas e pensando no que deveria pensar, escreve Martha Batalha.

No cinema, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão é também um filme sobre o Rio de Janeiro, sobre certa passagem de uma cidade idílica, ainda solidária e humana, para um Rio de desabamento ético, moral, sentimental. Essa passagem é examinada entre os anos 1940 e 1950, mas alcança a nossa época, já desmembrada de seu glamour, de seus anseios do passado. Cearense, Karim Aïnouz revisita a atmosfera de nascimento do morro que Marcel Camus já tinha percorrido, em Orfeu Negro (1959), e chega a um resultado que é quase sociológico, quando morro e asfalto começam a se confundir. É um acurado exame da deterioração gradativa da ética, das pré-condições do humanismo.

O ritmo do filme contrasta com as tensões que constrói. As explosões são internalizadas, dependem de um trabalho fundamental dos atores, garimpadas pelo diretor com notável paciência em esgares nervosos e ambiente claustrofóbicos. Em vez de gastar os tubos com glamurosas reconstituições de época, optou por revisitar a célula fundamental do desenvolvimento das opressões: as famílias, a casa, a cozinha, a sala de estar. O espectador se vê transportado para a realidade “vintage” com exíguos elementos: o velho ônibus, o navio ancorado, as malas, o piano de cauda, os cortes de cabelo e os penteados.

O filme foi escolhido para representar o Brasil na disputa por uma vaga ao Oscar e venceu a mostra Un Certain Regard (Um Certo Olhar), do último Festival de Cannes, um dos mais importantes do mundo. É um reconhecimento mais do que merecido: o certo olhar que o diretor Karim Ainouz lança sobre o universo feminino é talvez um dos mais delicados que o cinema brasileiro já dedicou a essa dimensão da experiência humana.

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