"Caminhando Com Os Mortos". Capa. Reprodução

As sucessivas premiações que vêm amealhando com sua obra colocam em definitivo o nome de Micheliny Verunschk como uma das mais potentes e interessantes vozes da literatura brasileira na atualidade. Seu “O Som do Rugido da Onça” (Companhia das Letras, 2021) levou o Jabuti de melhor romance literário e o terceiro lugar do Oceanos, duas das mais prestigiadas honrarias literárias a que um/a escritor/a pode almejar.

O volume premiado inaugura a chamada trilogia do mato, que continua com o recém-lançado “Caminhando Com Os Mortos” (Companhia das Letras, 2023, 142 p.), romance em que a pernambucana consolida um estilo particularíssimo, em que o seu pleno domínio da linguagem está a serviço de contar uma boa história. A trilogia se encerra com o livro que ela está escrevendo, ainda sem título ou data de lançamento prevista.

O Brasil vem de um longo período de trevas – anos temerosos, após o golpe que impichou Dilma Rousseff, legitimamente eleita, por um crime que não existiu, caminho pavimentado e lavado a jato que alçou o neofascista Jair Bolsonaro à presidência da República. O noticiário destes tempos, entre o que é realidade e o que se convencionou chamar fake news, eufemismo para mentira, soava às vezes tão absurdo que, se colocado na boca de um personagem de ficção, por vezes era bem possível de ser acusado de inverossímil por um crítico, um teórico, um professor, ou mesmo um leitor.

“O leitor é muito inteligente”, disse Micheliny Verunschk em entrevista ao Giro Nordeste de ontem (1º.), na TVE Bahia – com retransmissão por um pool de emissoras públicas nordestinas de rádio e tevê –, a cuja bancada virtual este repórter compareceu, representando a Rádio Timbira, de São Luís do Maranhão.

Em sua resposta a este que vos escreve, justamente sobre as dificuldades de se escrever ficção em um país que passou recentemente por uma distopia, cujos efeitos são ainda sentidos, ela lembrou-se do poeta e jornalista Celso Borges (1959-2023), de cujo livro-cd “Música” (2006), Verunschk participou: ouvimos sua voz em “Breves Impressões Tiradas de um Jornal 448 Dias Antes da Morte de João Cabral”.

Em obras como as de Verunschk, Joca Reiners Terron ou Marçal Aquino, para citarmos poucos, é possível percebermos e entendermos a triste realidade brasileira dos anos recentes, para além da pandemia e do governo negacionista de viés autoritário recentemente desalojado do Palácio do Planalto. Nestes autores, e em alguns outros, a advertência lida na ficha catalográfica parece fazer ainda mais sentido: “os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles”.

“Caminhando Com Os Mortos” costura em sua trama fanatismo e intolerância religiosos, racismo, violência contra a mulher e a mistura quase sempre nociva de política com religião: puro suco de Brasil.

Um crime hediondo – uma mãe que mata a própria filha queimada, tentando, mais que purificá-la, ser bem vista aos olhos de um pastor evangélico – é o ponto de partida do livro, que não reforça estereótipos, mas que demonstra que pessoas comuns – algumas autointituladas “cidadãos de bem” – podem ser os “monstros” pintados pelas páginas policiais, com crimes justificados em nome de Deus.

Há um quê de poético na prosa de Verunschk e às citações bíblicas juntam-se trechos de letras de Bob Dylan e Lou Reed (1942-2013), numa multiplicidade de vozes que é espelho e trilha sonora de seu próprio jogo narrativo.

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Assista a entrevista de Micheliny Verunschk ao Giro Nordeste de ontem (1º):

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