O milagre (de) Amaro Freitas

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Amaro Freitas Trio, no palco do Teatro Arthur Azevedo, ontem (2). Foto: Fabiano de Andrade (@olharsaoluis)
Amaro Freitas Trio, no palco do Teatro Arthur Azevedo, ontem (2). Foto: Fabiano de Andrade (@olharsaoluis)

O pianista pernambucano Amaro Freitas é um dos grandes acontecimentos da música instrumental brasileira deste século. O menino pobre da periferia recifense que chegou a desistir dos estudos de música por não ter dinheiro para pagar a passagem de ônibus tornou-se um dos mais importantes nomes do jazz no Brasil, chamando a atenção dos públicos europeu e japonês, e amealhando premiações a torto e a direito.

Com três discos gravados – “Sangue Negro” (independente, 2016), “Rasif” (Far Out, 2018) e “Sankofa” (Far Out/ 78 Rotações, 2021) – Amaro Freitas voltou ontem (2) ao Maranhão; apresentou-se no Teatro Arthur Azevedo, na programação do Palco Mundo, espécie de prévia do Lençóis Jazz e Blues Festival, que acontecerá em setembro, em São Luís e, antes, em Barreirinhas – onde o pianista se apresentou em 2018 –, também produção de Tutuca Viana.

Amaro Freitas trajava um conjunto estampado e tênis, a leveza e descontração do figurino realçando seu despojamento musical. De porte físico avantajado, evoca uma espécie de rei africano, e os músicos que o acompanham – Jean Elton (contrabaixo acústico) e Rodrigo “Digão” Braz (bateria) – vestem branco, numa postura que demarca posição: a herança ancestral africana, o diálogo com a riqueza e a diversidade das tradições das religiões de matriz africana e o empoderamento do povo negro, elementos que permeiam sua música – instrumental.

Antes de sentar-se ao piano, anunciou que a primeira música era dedicada à líder quilombola Tereza de Benguela (1700-1770), lembrando que quando os aquilombados sob sua liderança tomavam armas de seus algozes transformavam-nas em panelas, numa metáfora perfeita para o Brasil de hoje, em que dizer o óbvio é preciso: alimentar (o corpo e a alma) e amar são mais importantes que armar. A segunda, ele anunciou logo também, era “Cazumbá”, inspirada no mítico personagem do bumba meu boi do Maranhão.

A performance de Amaro Freitas impressiona porque com ele o piano é mais que simplesmente um piano. Mesmo o que poderíamos chamar de convencional, quando o músico aperta as teclas do instrumento, está para além. Há algo de Thelonious Monk (1917-1982) no jeito com que ele percute as teclas, embora também haja tons de delicadeza em seu fazer musical. Por vezes o corpo do piano torna-se também instrumento de percussão e Amaro inclina-se para fazer as cordas soarem diretamente, sem a intermediação das teclas.

Na inédita “Dança dos Martelos”, que tocou anunciando já estar gravando um novo álbum – “vai ter muito de Maranhão”, avisou, para delírio da plateia –, usou pregadores de roupa em algumas cordas do piano para obter determinada sonoridade. A certa altura, a mão direita nas teclas e na esquerda um chocalho de guizos, que ele tanto tocava balançando quanto chocando-o contra as cordas e o corpo do instrumento, a que o músico praticamente se funde, quase tornando-se um só elemento, tão grande é sua entrega. Como o jazz se funde aos mais diversos elementos da cultura brasileira em sua música.

Entre a banqueta e o piano, Amaro Freitas dança, a seu modo, em mais uma maneira de seu corpo exalar música. Quando tocou um tema em homenagem à sua mãe, o público já estava há muito em êxtase e atendeu seu convite a vocalizar a melodia. No frevo “Encruzilhada”, com que encerrou sua apresentação, o lugar do improviso, no diálogo com os músicos, alternadamente, na cumplicidade explícita nos sorrisos que trocam o espetáculo inteiro, revelando a intimidade traduzida em música.

Amaro Freitas e sua música são milagres e este é meu testemunho de fé.

AINDA ONTEM

A noite de ontem pode ser considerada a noite dos pianos no Palco Mundo. Foi aberta por Henrique Duailibe (piano) – acompanhado por Renato Serra (teclado) e Ronald Nascimento (bateria) –, passeando por repertório autoral, que incluiu homenagens aos pianistas conterrâneos Zé Américo Bastos e Marcelo Carvalho, entre outros.

Na segunda apresentação, Gilson Peranzzetta (piano) e Marcel Powell (violão) passearam por repertório autoral – “Pra Tião”, parceria dos dois, intitula o disco lançado por eles ano passado e homenageia o violonista paraense Sebastião Tapajós (1944-2021), com quem o pianista já formou um duo –, homenagem ao pai do segundo, ninguém menos que Baden Powell (1937-2000) – “Deixa”, “Tem Dó” e “Canto de Ossanha” (afro-sambas da parceria de Baden e Vinícius de Moraes [1913-1980]), que encerrou a apresentação, estavam no set list de ontem, baseado no repertório do citado “Pra Tião”. De lá ouvimos também “Tocata para Billy Blanco” (1924-2011), com que Sebastião Tapajós homenageia o compositor conterrâneo, além de “Carioquinha” e “Pedacinhos do Céu”, ambas de Waldir Azevedo (1923-1980).

HOJE E AMANHÃ

A programação do Palco Mundo continua hoje (3), com apresentações de Arlindo Pipiu Sexteto, Lucille Berce e Dudu Lima com Carlos Malta; e amanhã (4), com Nivaldo Ornelas e Kiko Continentino, Isaac Cândido (com repertório de seu primo Raimundo Fagner) e Toninho Horta (com homenagem a Milton Nascimento), sempre a partir das 19h. Os ingressos podem ser trocados na bilheteria do Teatro Arthur Azevedo (Rua do Sol, Centro), a partir das 14h; cada pessoa pode retirar até duas pulseiras.

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