O poeta e jornalista Celso Borges. Foto: Otávio Rodrigues
O poeta e jornalista Celso Borges. Foto: Otávio Rodrigues

Vi CB pela primeira vez no começo dos anos 2000. Ele tinha lançado “XXI” (2000), seu primeiro livro-disco, que é uma coletânea de poemas publicados em seus livros até ali, uma espécie de celebração, não apenas de sua própria poesia – o que já seria motivo suficiente para tal –, mas dos encontros que a poesia lhe deu: naquela experiência de levar os poemas para além da página, comparecem vozes e imagens de diversos poetas e músicos que colaboraram para seu sucesso.

Perdoem a intimidade com que começo o texto, chamando logo de CB a Celso Borges (18/5/1959-23/4/2023): na ocasião ele abastecia a livraria Poeme-se, de Ribamar Filho, que ainda funcionava no número 52 da Rua João Gualberto, na Praia Grande, de que eu já era frequentador habitual. Então estudante, bolsista de nível médio em um banco, lisinho, tinha na carteira, por pura coincidência, o exato valor pelo qual o livro era vendido. Eu já comprava fiado no Riba, mas preferi prestigiar o autor, pagar à vista e catar o primeiro dos muitos autógrafos que CB me daria desde então. Ele ainda morava em São Paulo e deste primeiro encontro consolidou-se uma amizade, inicialmente nutrida por e-mails.

Quem conheceu e conviveu com Celso Borges sabe de sua energia – “quer fazer, faz” era uma de suas palavras de ordem –, tanto para realizar as coisas quanto para iluminar quem estava ao seu redor. Quantas vezes minhas tristezas não foram embora após um telefonema, um e-mail trocado ou um encontro presencial? Quem me socorrerá de tua partida, Celso?

Muita gente que falou comigo ao longo do dia de hoje indagava, com uma ou outra variação, “se ele estava doente”, e só agora entendo a discrição com que a família tratou seu quadro: como qualquer um de nós que acreditava em sua recuperação, era também uma forma de iluminar, de não se deixar abater, de saber que, como diz o dito popular, quem morre de véspera é peru.

Celso Borges faleceu às vésperas de completar 64 anos, amigo-irmão com idade para ser meu pai (o que muitas vezes foi, através dos conselhos que dava), mas essa distância geracional nunca foi obstáculo para nada, pelo contrário, não raro era mais jovem que eu. Convidou-me a dividir com ele um de seus projetos mais recentes, que deixa por publicar: “Luísadas” conta a história de mais de 100 músicas que têm nossa São Luís como tema ou paisagem. Ajudei-lhe modestamente a catar alguns verbetes, mas sua capacidade de trabalhar em meio ao caos era de longe bem maior que a minha e ele acabou tocando o projeto sozinho, sem nenhum pingo de mágoa ou ressentimento de lado nenhum. Estava trabalhando na produção de um caderno de partituras do compositor Sérgio Habibe.

Roubei-lhe, confesso, a dedicatória, que usei na “Chorografia do Maranhão” (que publiquei em 2018, com Ricarte e Rivânio Almeida Santos): “para José Antonio, música antes da música”. À maneira de Tom Jobim (1927-1994), Celso sempre se referiu ao azul do sorriso de meu filho, certamente sua cor preferida.

Passei o domingo inteiro tentando processar a perda de alguém tão querido e próximo e peço novamente desculpas aos poucos mas fiéis leitores pelo tom tão pessoal e autorreferente do texto. Mas como diria Drummond (1902-1987), “lutar com palavras é a luta mais vã”: impossível fazer diferente, neste caso. Impossível escrever um texto apenas dizendo quando e onde Celso nasceu e do que morreu, listar suas obras etc.

Impossível não lembrar das vezes em que, ainda morando em São Paulo, visitando a ilha, nos encontrávamos pelo Centro Histórico. Aproveitando a brisa quente de São Luís, invariavelmente estava de bermuda e a burocracia não lhe permitia adentrar a repartição pública onde eu então trabalhava; eu acabava descendo as escadas para irmos bater um papo regado a cerveja na Feira da Praia Grande.

Lembro que quando consegui comprar em um sebo “Cantanto” (1981), seu livro de estreia, publicado no ano em que nasci, mandei-lhe uma foto, à guisa de galhofa. Ele respondeu com um singelo “queima isso!”. Eu sabia que era um livro renegado, considerado desimportante e imaturo por ele – não à toa o único de que não há sequer um poema na antologia “XXI”, citada no início do texto.

Jornalista de profissão, poeta por vocação, Celso Borges me concedeu algumas entrevistas ao longo destes anos de amizade. Numa, dizia serem São Paulo e São Luís – referindo-se às cidades em que morou – os santos de sua devoção, ora protetores, ora algozes. Noutra, revelava sua disposição para a criação: “se eu chegar aos 80 anos com saúde, uma revistinha eu estarei fazendo” – cito de memória.

O poeta Marcelo Montenegro uma vez disse que Celso Borges fazia os livros mais bonitos que ele já viu e sempre foi bonito ver a empolgação deste verdadeiro Quixote para fazer as coisas, não só as suas, empolgação esta que nos contagiava a cada lançamento, para citar alguns, de “XXI” para cá: “Música” (2006), “Belle Epoque” (2010), “O Futuro Tem O Coração Antigo” (2013), “Pequenos Poemas Viúvos” (2021), “Lembranças, Lenços, Lances de Agora: Memórias e Sons da Cidade na Voz de Chico Maranhão” (2022), além dos CDs “A Palavra Acesa de José Chagas” (2013) e “Pão Geral – Tributo a Tribuzi” (2017), com poemas de José Chagas (1924-2014) e Bandeira Tribuzi (1927-1977) musicados e interpretados por diversos nomes da música popular brasileira.

Seus livros-discos e estes CDs coletivos são, em essência, uma síntese possível do caráter agregador de Celso Borges, um agitador no sentido mais profundo da palavra, seja dizendo poemas no palco, fazendo revistas (Guarnicê, Uns & Outros, Pitomba!), sendo curador da Feira do Livro de São Luís (sob sua batuta o evento anual teve suas melhores edições em 2013 e 2014), ocupando coretos e espaços abandonados da cidade, incentivando os mais jovens, bradando contra a mediocridade, sendo crítico com doçura – dizia, sem papas na língua, do que não tinha gostado em determinados textos meus. Era capaz de detestar este – perdoe-me, meu amigo, mas neste caso, não há palavras que sejam suficientes.

Craque da coletividade, lembro de (e agradeço) sua insistência para que eu estivesse na coletânea “São Luís em Palavras” (2017), que organizou com Wagner Merije, reunindo nomes da poesia, literatura, jornalismo e artes visuais com trabalhos sobre a capital maranhense; “requentei” um texto publicado na revista Brazuca e estou lá; participou ativamente das campanhas que denunciaram a arbitrariedade da prisão ilegal que tirou Luís Inácio Lula da Silva das eleições presidenciais de 2018, o golpe jurídico-político arquitetado por Sérgio Moro et caterva que pavimentou o caminho do genocida Jair Bolsonaro até o Palácio do Planalto: é um dos nomes entre os autores presentes em “Lula Livre – Lula Livro” (2018), organizado por Ademir Assunção e Marcelino Freire. Ao episódio também dedicou “Machado Afiado”, versão livre de “Small Axe”, de Bob Marley (1945-1981), em parceria com o poeta Fernando Abreu, companheiro de Akademia dos Párias.

Poeta em tempo integral, CB foi alcunhado pelos mais próximos de “o homem poesia”, tamanha era sua entrega ao ofício. Amigo comum, Otávio Rodrigues chegou a visitá-lo no hospital em que esteve internado em São Luís e revelou-me que mesmo ali ele estava trabalhando em novos poemas, o que aumentava nossa esperança por sua recuperação.

Mas não esqueçamos de sua importância também em campos como o jornalismo – foi o primeiro diretor de jornalismo da recém-fundada TV Mirante, no início dos anos 1980 – e o radialismo – coordenou a produção da Rádio Mirante FM no nascedouro da emissora, no mesmo período, tendo injetado juventude e inteligência numa programação até hoje lembrada por ouvintes e aficionados por rádio.

Em 1989 mudou-se para São Paulo, onde trabalhou em veículos como a TV Gazeta e a Folha de S. Paulo, voltando a residir em sua cidade natal em 2009. Era motivo de imenso orgulho, para Gisa Franco e eu, tê-lo como ouvinte do Balaio Cultural, na Rádio Timbira, onde ele também esteve algumas vezes, como entrevistado ou assessor de imprensa, acompanhando algum assessorado.

Era também um profícuo letrista de música popular, tendo sido parceiro de nomes como Assis Medeiros (“Bateu”, “La Liberté – Estrelas de Portugal”, com Leonardo Batista), César Nascimento (“Miolo”), Chico César (“Amor meu camarada“), Criolina (“São Luís-Havana”), Fausto Nilo (“Canhoteiro”, com Fagner e Zeca Baleiro), Gildomar Marinho (o poema “Vazio” em “Claustrofobia“), Ivandro Coelho (“Sempre”, com Gerson da Conceição), Maestro Tiquinho (“Se Fue“), Marcos Magah (“Tito (O Que Morreu Esmagado Por Uma Geladeira)”, “As Coisas Mais Lindas do Mundo”), Nosly (“June”, “Aldeia”), Ramiro Musotto (“A Serpente (Outra Lenda)”, com Zeca Baleiro), e Zeca Baleiro (“Balada do Amor em Chamas”).

Antonio Celso Borges Araújo faleceu hoje, Dia Nacional (e Estadual) do Choro e Dia Mundial do Livro, em São Luís – de livros nem preciso mais falar; chorão de alma roqueira, acima de tudo uma figura sem preconceitos, era habitué de rodas pela ilha. No dia em que a seleção argentina de futebol sagrou-se tricampeã mundial, após sentir fortes dores, ele passou por um procedimento para a retirada do apêndice. Descoberto um quadro oncológico, seguiu para tratamento em São Paulo, onde sofreu um acidente vascular cerebral. Havia retornado recentemente à cidade em que nasceu à Rua da Paz, 350, Centro, na esquina da Igreja de São João e da Faculdade de Farmácia (o Palácio das Lágrimas), cuja redução a ruínas chegou a lamentar.

O corpo de Celso Borges está sendo velado no Salvatore Funeral Home (Av. Avicenia, 3, Calhau). O sepultamento acontece nesta segunda-feira (24), às 10h, no Parque da Saudade (Vinhais).

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