Lembranças, lenços, lances de agora. Capa. Reprodução
Lembranças, lenços, lances de agora. Capa. Reprodução

O poeta e jornalista Celso Borges se debruça sobre São Luís e o universo de Chico Maranhão para contar a história de “Lances de agora”, obra-prima lançada pelo compositor em 1978

Uma aura mágica e mística sempre envolveu “Lances de agora”, disco ao mesmo tempo profano e sagrado, gravado por Chico Maranhão na sacristia da Igreja do Desterro, em junho de 1978, lançado no fim daquele ano pela Discos Marcus Pereira, o mesmo em que a gravadora lançou “Bandeira de aço”, em que Papete registrava nove músicas, de Cesar Teixeira, Josias Sobrinho, Ronaldo Mota e Sérgio Habibe, “compositores do Maranhão”, como consta na capa do disco.

O disco de Chico Maranhão tem 11 faixas, interpretadas pelo próprio compositor, com acompanhamento do Regional Tira-Teima, como assinala a contracapa – invariavelmente os discos lançados por Marcus Pereira traziam textos elucidativos sobre os artistas e repertórios registrados, assinados por ele próprio ou seu fiel escudeiro Marcus Vinicius, cantor, compositor, arranjador e produtor ainda na ativa.

O poeta e jornalista Celso Borges joga luz sobre a importância do disco de Chico Maranhão em “Lembranças, lenços, lances de agora: memórias e sons da cidade na voz de Chico Maranhão” (Palavra Acesa, 2022, 265 p., R$ 50,00), realizado com recursos da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, no Maranhão administrados pela Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão (Secma). Não é exatamente uma biografia do disco, no sentido de escrutinar as sessões de gravação – além da Igreja do Desterro, parte delas foi realizada nos estúdios da TVE, no Bairro de Fátima, revela a obra –, tampouco de Chico Maranhão, que se esquivou de dar nova entrevista para o livro. O prefácio é de Flávio Reis.

“Este disco merece um seminário para debate e penitência”, cravou certeiro Marcus Pereira na contracapa do disco que acabou por dar nome artístico definitivo a Chico Maranhão: Francisco Fuzzetti de Viveiros Filho era conhecido como Maranhão, nos tempos em que cursou arquitetura na turma abandonada por Chico Buarque na USP e no início de sua trajetória artística: o disco-brinde com o lado a com suas músicas e as de Renato Teixeira no lado b, de 1969, quando a gravadora era ainda uma agência de publicidade (com o disco distribuído a clientes no fim do ano), e o elepê de 1974, seu primeiro solo, intitulado simplesmente “Maranhão”, mas que caiu na boca do povo como “Gabriela”, por conta do frevo de abertura, defendido em 1967 pelo MPB-4, no Festival da Record. Só quando “Lances de agora” chegou é que Chico Maranhão passou a ser assim chamado, por decisão unilateral de Marcus Pereira, para revolta inicial do compositor, que depois se acostumaria a ser reconhecido como um dos maiores gênios de nossa música.

Há dois acertos, para começo de conversa, no livro de Celso Borges: ele não pretendeu escrever uma obra isenta, objetiva, imparcial: não esconde do leitor sua admiração por Chico Maranhão e sua predileção particular por “Lances de agora”, cujas letras transcreve e analisa; e o jornalista e o poeta que lhe habitam não brigam; caminham de mãos dadas ao recontar uma história cheia de personagens importantes: do próprio Chico Maranhão que adentra a sacristia para gravar às vésperas de completar 35 anos de idade, dos músicos que o acompanham nas sessões de gravação, de dona Camélia Viveiros, mãe do artista, professora e pianista, que acreditava piamente em uma educação que caminha de braços dados com a cultura popular (e que, de algum modo, antecipou ideias freireanas), de nomes da geração laborarteana, cujos caminhos e destinos se aproximam e se afastam, se cruzam e desencontram, como “as retas mais curvas que o mundo tem”.

A pesquisa iconográfica e o trabalho de tratamento/restauração de imagens (Cláudio Lima) são um capítulo à parte, por vezes revelando um Chico Maranhão pouco conhecido do grande público, que em geral reconhece a qualidade de sua obra, canta seus clássicos a plenos pulmões, sobretudo em arraiais no período junino (descontado o período de pandemia, para não fugirmos do assunto do momento), mas enxerga nele um artista arredio, excêntrico – e há um capítulo no livro todo dedicado a histórias que alimentam este folclore em torno de seu nome.

Chico Maranhão gravou quatro elepês pela Marcus Pereira: “Jogral” (1969), o disco-brinde dividido com Renato Teixeira, “Maranhão” (1974), do frevo “Gabriela”, “Lances de agora” (1978) e “Fonte nova” (1980), nenhum deles relançado em cd, o que de certo modo colaborou para a mística em torno deles, de discos para iniciados, hoje objetos de  culto, para colecionadores, raridades disputadas a tapas e a peso de ouro em sebos país afora (mas disponíveis, como toda a discografia da Marcus Pereira, no youtube).

O texto do livro passeia por uma São Luís que não existe mais, sem saudosismo ou juízo de valor, um tempo em que ainda era necessário pegar um barco para atravessar do Centro para a Ponta d’Areia e a capital litorânea não era tão quente, antes de o asfalto cobrir os paralelepípedos.

Chico Maranhão se considera um ser criador, que persegue fazer bem feito o que quer que se proponha, seja em música, seja em arquitetura. Celso Borges, além de criador, é também um irrequieto agitador, sempre inventando livros, revistas, saraus e movimentos.

Sobre “Lances de agora”, o disco, o poeta e jornalista convida: “É preciso ouvir esse disco com o prazer que ele dá. Como quem come uma fruta. Ouvi-lo mordendo corpo, carne, polpa, casca, pele, sabor, açúcar. Desconhecendo qual das músicas é o coração da fruta. A polpa não é a carne. A casca não é a pele. O caroço não é o osso. Provar o sabor, chupar a fruta. Que os fiapos trepem nos dentes, como manga. Que trave e trema a língua e escorra pela boca e manche a camisa que nos veste, como caju. Em cada verso o grão da farinha que a incha, como juçara. Como bacuri, buriti, sapoti, cupu, murici. Como cheiro de xiri, descoberto nos líquidos que as canções nos derramam. Perfume do paraíso. “Lances de Agora”. Agora. Vamos ler, vamos ouvir, vamos comer!”.

Assim seja! No ano em que Chico Maranhão, um dos compositores de sua predileção, celebra 80 anos – em agosto que vem –, Celso Borges lhe rende uma justa e merecida homenagem. Que mais e mais gente leia, ouça e coma “Lances de agora”. Agora!

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Ouça “Lances de agora”:

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