O cantor, compositor, pianista e escritor Arrigo Barnabé estreou em disco há 43 anos, com o icônico “Clara Crocodilo” (1980), álbum que promoveu uma ruptura na música brasileira e fez tudo nela parecer velho, como diz o próprio autor, sem falsa modéstia.
A íntegra do repertório do elepê, marco inicial da Vanguarda Paulista, será apresentada por Arrigo Barnabé e a banda Sabor de Veneno em show neste sábado (25), às 21h, no Teatro Paulo Autran (Sesc Pinheiros, Rua Paes Leme, 197, São Paulo/SP) – os ingressos custam entre R$ 15,00 e 50,00.
A ocasião marca o lançamento da luxuosa nova edição de “Clara Crocodilo”, em vinil, acompanhado de livreto especial com imagens da época e depoimentos inéditos do compositor e integrantes da banda.
Arrigo Barnabé (voz e piano elétrico) será acompanhado por Bozzo Baretti (teclado e sintetizador), Mário Campos (baixo), Paulo Barnabé (bateria), Paulo Braga (piano), Tetê Espíndola (vocal), Vânia Bastos (vocal), Ana Amélia (vocal), Suzana Salles (vocal), Roney Stela (trombone), Mané Silveira (sax alto), Chico Guedes (sax soprano), Ubaldo Versolato (sax barítono) e Claudio Farias (trompete).
Por telefone, Arrigo Barnabé falou com exclusividade a FAROFAFÁ.
ZEMA RIBEIRO: “Clara Crocodilo” tem 43 anos de lançado, o que nos leva a imaginar que um disco com esse tempo facilitaria as coisas, no sentido de que a banda que estará contigo no Sesc é a mesma que tocou contigo no álbum, mas não é um repertório, afinal de contas, tocado todo dia. Eu queria saber o seguinte: o que é mais fácil e mais difícil em realizar um show desse álbum que é um dos discos icônicos da música brasileira?
ARRIGO BARNABÉ: Da banda original dois morreram: o baixista, o Tavinho [Fialho], e o percussionista, Rogério. O guitarrista, o Gilson [Gibson], ele praticamente abandonou a carreira. De resto são os mesmos músicos, basicamente os mesmos músicos, a Regina Porto também não está, ela praticamente abandonou também. Então o que a gente tem de novidade? A gente tem o Mário Campos fazendo o contrabaixo, a gente tem o Paulo Braga fazendo teclados. E estamos sem percussão. E colocamos mais uma cantora, a Ana Amélia, que trabalhou muito com o Zeca Baleiro, aí de São Luís, também. Tudo é difícil. Porque emocionalmente, quando eu vou ensaiar, até eu chegar, encontrar os músicos, eu fico tocado, eu sou uma pessoa sentimental. É uma coisa que me sensibiliza encontrar as pessoas, lembrar das coisas, mas tudo tem alegria também. Agora, o repertório é um repertório difícil, e nós estamos velhos, né? Então, o pessoal mais novo tem a mente mais alerta, mais atenta, é difícil, mas está bem legal, porque se tem uma coisa que a gente preservou foi o clima e o clima da época aparece muito quando a gente faz o show. E é incrível você ver porque às vezes eu leio em livros, livros sobre a música popular brasileira, várias pessoas escreveram falando sobre esse período, aí vêm e falam de mim como se eu fosse mais uma das pessoas que fez rock, ou que colocou rock, e a hora que você escuta o som [risos]… ainda nesse show ainda tem a Tetê Espíndola, e ela canta uma valsa minha, que é “Londrina”, uma valsa sentimental, e canta “Canção dos Vagalumes”, uma canção experimental, erudita, então fica uma coisa que você fala assim, “isso é um panorama da produção dos anos 1980 em São Paulo, cara”. É impressionante, é foda, não é por nada [risos], é muito foda. E o público jovem, olha, vou te dizer, se você assistir o ensaio, a gente ensaiando, não envelheceu um centavo, não envelheceu nada, é um negócio super atual. Impressionante.
ZR: Mesmo quando a gente pega o disco, tem muito disso, aquele cenário futurista, é um disco de 1980 mas que já imaginava o réveillon de 1999 para 2000, então é muito quente, nesse sentido de não ter envelhecido. Como você falou, tem gente que não te coloca no devido lugar, no sentido de achar que você foi apenas mais um, e você não tem um herdeiro na música brasileira, não tem ninguém que se possa dizer “ah, o novo Arrigo”, alguém que foi marcadamente influenciado por Arrigo no sentido não de uma cópia.
AB: Não tem.
ZR: Tem hora que não dá para ser modesto. Quando você lançou o álbum você tinha dimensão, ideia do que ele viria a ser? Tem gente que não conhece, tem gente que vai achar que é mais um disco, mas para quem se aprofunda, “Clara Crocodilo” é um objeto de culto.
AB: Quando eu lancei o “Clara”, a impressão que eu tive é que tudo ficou velho. A música popular brasileira ficou velha, o que as pessoas faziam, ficou tudo velho pra mim. Eu tinha noção do que eu estava fazendo, eu tinha noção da ruptura, da radicalidade, eu tinha noção total, eu sabia, e isso foi inclusive uma coisa difícil pra mim, porque tem tanta qualidade que eu fiquei com aquele negócio, “puta, eu não vou conseguir fazer mais nada depois que eu fiz isso aqui”, porque eu acho que tá tudo aí, sabe? E as pessoas reclamam, falam “por que você não continuou?”. Não dá, eu não tenho ideia, já fiz tudo que dava. Aí eu fiquei fazendo uma coisa mais, fiz o “Tubarões” [“Tubarões Voadores”, seu segundo disco, de 1984], fiz outras coisas, fiz os trabalhos com música erudita. Eu tinha consciência do que eu estava fazendo, eu sabia que eu estava produzindo uma ruptura, eu sabia que eu estava propondo, vamos dizer assim, colocar dissonância na pauta do gosto brasileiro, era bem claro o que eu estava fazendo, eu sabia tudo o que eu estava fazendo.
ZR: Você falou há pouco que é muito sentimental. O que significa para você lançar uma nova edição, uma nova tiragem do vinil, num tempo em que a música é consumida basicamente através de plataformas de streaming e quero saber de você o seguinte: se a gente pode falar em uma nova volta do monstro, já que ali, entre o lançamento do vinil, em 1980, e a reedição em cd foram 20 anos, 2000, e agora mais 23 para essa nova tiragem em vinil.
AB: Eles fizeram uma coisa muito bonita. Eles fizeram um box, nesse box tem um trabalho do Luiz Gê, tem um gibi do Luiz Gê, tem estudos da capa, estudos de história em quadrinhos que ele começou a fazer sobre “Clara Crocodilo”, sobre “Diversões Eletrônicas”, tem uma camiseta, aquela camiseta lá que apareceu bastante propaganda do “Clara Crocodilo”, e tem um segundo vinil, que é material que esse pessoal garimpou, coisas que eu, por exemplo, um ensaio antes de fazer um show em 1981 ou 80, alguém gravou, eles pegaram essa fita e colocaram eu tocando piano, a trilha sonora do filme chamado “A Estória de Clara Crocodilo”, que a Cristina Santeiro fez, é um curta-metragem, essa trilha sonora está, trechos de um show que a gente fez no Tuca [Teatro da Universidade Católica], inclusive é o show, é onde a gente fez a foto que está no disco, no álbum duplo, a parte de dentro, tem uma foto com a banda, a foto é desse show. Então tem um material bem bacana, eles fizeram um negócio muito legal. E o “Clara” finalmente saiu num vinil bom, de qualidade, porque o vinil que a gente lançou o “Clara” em 1980, você era independente e mandava fabricar na Continental, aqui em São Paulo era tudo fabricado na Continental, e pros independentes eles usavam a pior massa que tinha, então o disco saia todo meio empenado, era horrível, então agora está saindo com uma massa boa, com uma gramatura de vinil legal, acho que é 200 [gramas].
ZR: Falando de dentro, de quem participou do movimento naquela época, mas também de fora agora, com esse olhar distanciado de algumas décadas, como é que você avalia a importância da Vanguarda Paulista – você, Itamar Assumpção [1949-2003], Grupo Rumo, Premeditando o Breque, etc., etc., etc. – para a música brasileira e a influência desse grupo, desses artistas todos que eu citei, sobre artistas que surgiram depois?
AB: Olha, alguma importância a gente teve, a gente teve alguma influência. A gente conseguiu marcar alguma posição, a gente conseguiu propor, a gente conseguiu, cada um tinha um programa estético próprio, você pode ver, o meu programa estético é baseado na dissonância, o programa estético do Itamar é outra coisa, o programa estético do Premê é mais ligado ao humor, o programa estético do Rumo é mais ligado a uma questão semiológica, linguística, e a gente conseguiu propor coisas consistentes, que tiveram repercussão. Não tiveram repercussão suficiente para mexerem mais com as pessoas, com a sociedade. A gente foi bastante boicotado pelas rádios, pelas televisões. Porque eu acredito que se a gente tivesse tido uma divulgação televisiva e radiofônica, a gente ia interferir no gosto das pessoas, a gente ia interferir na história do gosto musical brasileiro. Então, a gente está propondo uma outra coisa, e a gente conseguiu atingir um grupo pequeno de pessoas, não conseguimos atingir um grupo grande, não tivemos a chance que teve, por exemplo, a Tropicália, que fez aquelas misturas todas de música erudita com música popular, com poesia concreta, com não sei o quê, e tiveram um programa de televisão na tevê mais assistida da época, era a Record, eu acho, enfim, a gente não teve nada disso, a gente foi na pauleira.
ZR: As fusões que você experimenta em “Clara Crocodilo”, atonalismo, dissonância, rock’n roll, música erudita, narrativas radiofônicas, roteiro de história em quadrinhos, no meu entendimento, elas partem de um pressuposto que é contrário a qualquer tipo de preconceito, quer dizer, a gente tem que estar aberto a todo tipo de influência e extrair dali o que é bom. Quer dizer, “Clara Crocodilo”, o disco, é realmente um caldeirão pop, não necessariamente popular, por tudo isso que você está falando, não teve grande penetração em rádio e televisão, mas as poucas pessoas que conhecem, conhecem profundamente, cultuam e colocam realmente o disco num pedestal que é super merecido, é um liquidificador de referências. O que você tem ouvido hoje que tem te prendido a atenção? O que Arrigo Barnabé diz “isso aqui vale a pena, isso aqui todo mundo tem que ouvir”?
AB: Olha, não tem muita coisa que eu tenho ouvido. Eu gosto bastante do trabalho do Negro Léo, sabe? Embora eu ache que ele tenha mais a ver com o Itamar.
ZR: Que é maranhense.
AB: Ele é maranhense? Olha só! Eu fiz outro dia um show com ele. Foi muito legal. E a gente gravou uma versão de uma música do [Dorival] Caymmi, gravamos eu e ele, num álbum da Biscoito Fino, que está saindo agora celebrando os 100 anos da Semana de [Arte Moderna de] 1922 na música popular brasileira. Gravamos eu e o Léo, foi super legal. Eu gosto muito dele. Tem um grupo de meninos também, mas está meio fora do Brasil, que é o Quartabê. Tem um grupo muito bom de Londrina, que eu estou para lançar um disco agora com eles, eles fizeram uma releitura do “Clara Crocodilo”, rock pesado, chamado Aminoácido.
ZR: Eu escrevi sobre o documentário “Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor”, do cineasta Alfredo Manevy.
AB: Eu não vi ainda.
ZR: Eu ia perguntar se você tinha visto e o que tinha achado, tem um trecho que você aparece cantando um trecho de “Nervos de Aço”.
AB: É, eu autorizei isso.
ZR: Já que você ainda não viu o documentário, eu vou fazer a pergunta que eu não ia fazer, sobre a importância de Lupicínio, que eu imagino que seja grande para você, já que você o escolheu para dedicar um show a seu repertório.
AB: Olha, eu gosto muito de todas as canções do Lupicínio. Acho muito legal, acho muito interessante. Eu acho que tem um viés que poucas pessoas percebem, é que tem um negócio de humor junto. Tem um humor amargo, não é um humor doce, mas tem um humor, tem ironia, muita ironia. Então são qualidades, assim. E para quem quer atuar como intérprete, são qualidades ótimas.
ZR: E eu percebo em Lupicínio, é até uma coisa que eu digo no texto que escrevi sobre o filme, a injustiça com Lupicínio, que é um cara geralmente diminuído pela questão do que Augusto de Campos chamou de “cornitude”, a coisa da dor de cotovelo. É como, por exemplo, Paulinho da Viola, que nunca entra na lista de maiores compositores brasileiros, grandes compositores brasileiros porque as pessoas colocam Paulinho num rótulo de sambista que acaba sendo um reducionismo.
AB: Ah, mas na minha lista ele está [risos].
ZR: Na minha também [risos]. Na minha estão Paulinho da Viola, Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Sérgio Sampaio… mas geralmente as pessoas fazem esse recorte, Paulinho da Viola é sambista, então nunca entra na lista, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Chico Buarque…
AB: O disco do Paulinho, a gente falou de “Nervos de Aço”, o disco “Nervos de Aço” [1973] é uma coisa, o disco anterior, “A Dança da Solidão” [1972], é um negócio espetacular. Eu cito Paulinho da Viola no “Clara Crocodilo”, você sabe, né?
ZR: Sim, “Comprimido”.
AB: Na música “Diversões Eletrônicas” eu cito “Comprimido”.
ZR: Que é genial. E ele lá já citava Chico.
AB: “Comprimido” é maravilhoso. Eu fiz agora um show cantando Itamar, fiz domingo passado, com o pessoal que tocava com ele, o trio de base da Isca de Polícia, a cozinha. O Jean [Trad, guitarrista], o Paulinho [Paulo Lepetit, baixista] e o Marquinhos [Marco da Costa, baterista]. E eu estava ensaiando com eles, aí fiquei mostrando pra eles o Paulinho [da Viola], eles não conheciam essas coisas do Paulinho da Viola, o pessoal ficou de queixo caído, “Nossa Senhora!”, conhecem pouco o Paulinho, o Paulinho é demais, incrível.
ZR: Você publicou “No Fim da Infância” pelo Grafatório em 2019, reunindo textos que saíram na revista piauí, textos que transitavam entre as memórias de infância e memórias musicais que se entrecruzam. Eu me lembro particularmente, me comove muito a história de tua ida para a final, o Santos jogando, você entra com a banda…
AB: Aquilo é inacreditável.
ZR: …e o trecho que você revela ter sentido vergonha de admitir que chorava por ouvir “Assum Preto”, de Luiz Gonzaga [e Humberto Teixeira], e disse pro teu pai que chorava porque o Santos tinha perdido para o Taubaté.
AB: [risos] Homem não chora. Chorar por causa de música? Não.
ZR: Dito isto, quero te perguntar duas coisas: como é que você lidou com a pandemia que veio depois de “No Fim da Infância” e se tem algum disco ou livro novo para breve.
AB: Eu, nesse período da pandemia, eu compus algumas coisas, sabe? Eu refiz a minha ópera “Gigante Negão” [1998], trabalhei com a Beatriz Bracher, escritora, ela tem um livro, eu fiz um programa Supertônica, um programa de rádio com ela, falando sobre o livro dela, chamado “Anatomia do Paraíso”. Esse livro “Anatomia do Paraíso”, o personagem principal é um estudioso, a tese dele é sobre o “Paraíso Perdido” [1667] do [John] Milton. A gente estava conversando no programa, falando, e tal, e eu falei “pô, que interessante isso, porque eu pesquisei muito o Milton pra fazer o “Gigante Negão”, o “Paraíso Perdido”, eu li sobre essas questões”, e ela falou assim “você sabe que enquanto eu estava escrevendo eu escutava direto a sua “Missa in Memoriam Itamar Assumpção” [2007]” e o Itamar Assumpção era o Gigante Negão, foi ele quem encarnou o Gigante Negão no show. E eu nunca fiquei satisfeito com o libreto que eu tinha escrito e propus a ela que fizesse um novo libreto e a gente passou o começo da pandemia, o primeiro ano praticamente, trabalhando nisso, porque ela reescreveu o libreto e escrevemos vários trechos novos e eu escrevi várias outras peças musicais para ajudar na narrativa, foi um negócio muito legal de fazer. Depois eu escrevi uma peça para a Orquestra da USP, para narrador e orquestra, com texto meu também. Eu também fiz uma gravação do [compositor russo Ígor] Stravinsky, [a suíte] “A História do Soldado”, como narrador. Depois escrevi uma peça para o Quarteto de Cordas da Osesp, é uma peça para quarteto de cordas, piano e narrador, um texto que eu escrevi durante a pandemia. Eu escrevi bastante coisa durante a pandemia, eu comecei a escrever. Começou a aparecer, o primeiro ano e meio da pandemia, comecei a escrever e de repente publiquei no instagram só para ver o que acontecia e as pessoas começaram a curtir. Então passei a escrever muito, escrevi bastante texto.
ZR: Uma pandemia produtiva, digamos.
AB: É um negócio chato, muito chato, é horroroso, você fica deprimido pra caralho.
ZR: Tem que inventar uma forma de escapar dessa deprê.
AB: Agora eu tenho desenhado, tenho pintado, tenho feito experiências plásticas, vamos dizer assim. No final da pandemia eu comecei a fazer isso, tenho feito algumas coisas. Meu filho é artista plástico, eu sempre converso com ele, ele que fez a capa do “Gigante Negão”, então é também uma forma de a gente se aproximar. Mas não saiu nada, eu publico no instagram, fica lá três, quatro dias, depois eu apago. O pessoal do Grafatório queria publicar, mas eu não tenho certeza da qualidade do trabalho, sabe? Então eu falei, “não, peraí, tá cheio de poeta bom por aí, eu não sei se isso vale a pena publicar, então eu vou esperar”. Vai sair um filme agora, chama “O Homem Crocodilo”, é de um menino de Londrina, Rodrigo Grota, é um longa. É sobre o meu processo de criação.
*
Ouça “Clara Crocodilo”:
que legal a entrevista. Olha, acho que dá pra pensar a Graforréia Xilarmônica como herdeira do Arrigo. E como tem toda uma cena herdeira da Graforréia no RS, tem um tanto de consequência direta do trabalho da vanguarda paulista que dá pra mapear. Claro que nada é assim tão estanque e que há mais referências cruzadas. Outro que dá pra pensar nisso é o Arthur de Faria, esse um “arrigueano” mais puro.