O compositor Lupicínio Rodrigues. Reprodução
O compositor Lupicínio Rodrigues. Reprodução

A grandeza de Lupicínio Rodrigues (1914-1974) é, em geral, diminuída pelo que tão bem o poeta, tradutor, ensaísta e crítico Augusto de Campos ousou, acertadamente, chamar de “cornitude”: a dor de corno, quase uma corruptela da dor de cotovelo, inventada pelo compositor gaúcho, expressão que acabou por denominar seu repertório – cujo arco abarca do samba ao tango, passando por guarânia, bolero e até mesmo a bossa nova que viu nascer.

De onde vem tanta dor?, ouvimos a pergunta a certa altura do documentário “Lupicínio Rodrigues: Confissões de Um Sofredor”, de Alfredo Manevy. A resposta de Lupicínio é direta, quase a evocar o cearense Belchior (1946-2017), cujo “delírio é a experiência com coisas reais”: a obra do autor de “Nervos de Aço” se constitui autobiográfica. “Eu não sei descrever a dor dos outros”, confessa aquele que amou como quem respira.

O documentário vem percorrendo o circuito de festivais do Brasil – cuja trajetória se iniciou ano passado, na 46ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – e tem estreia prevista para o segundo semestre no Canal Curta! (coprodutor da obra, com a Plural Filmes). Na 17ª. edição do Fest Aruanda, em João Pessoa/PB, em dezembro passado, conquistou dois prêmios: melhor edição (Isabel Castro) e melhor trilha sonora (a direção musical é de Cacá Machado). O filme é narrado pelo ator Paulo César Pereio, também gaúcho, e a pesquisa e roteiro são assinados pelo diretor com Armando de Almeida e Márcia Paraíso.

O documentário é alicerçado por entrevistas concedidas por Lupicínio Rodrigues entre 1968 a 1974, ano de seu falecimento, mas vai além, percorrendo paisagens e personagens contemporâneos do artista, desde a infância até o sucesso e a discrição – não ouso falar em declínio –, quando o samba-canção perde força e o interesse do público e sobretudo dos meios de comunicação passa a se debruçar por outros fenômenos, como o rock e a jovem guarda.

Entre as personalidades que ajudam a contar e entender a história de Lupicínio Rodrigues estão astros como Gilberto Gil e Jards Macalé, além do homem-dicionário Ricardo Cravo Albin e do crítico Zuza Homem de Mello (1933-2020). O filme chega a frequentar uma reunião de descendentes do autor do hino do Grêmio de Foot-Ball Porto Alegrense, um encontro anual da família Rodrigues, em que um grupo de estudantes universitários revela, através de uma pesquisa, a dificuldade em traçar a genealogia do gênio.

Lupicínio com Grande Otelo (1915-1993) na capa de um suplemento do jornal "A Manhã", em setembro de 1951. Reprodução
Lupicínio com Grande Otelo (1915-1993) na capa de um suplemento do jornal “A Manhã”, em setembro de 1951. Reprodução

Uma curiosidade relembrada pelo filme é o fato de uma versão instrumental de “Se Acaso Você Chegasse”, um dos maiores sucessos de Lupicínio Rodrigues, ter ido parar na trilha sonora do filme “Dançarina Loura” (“Lady, Let’s Dance”, 1944), de Frank Woodruff. O filme foi indicado ao Oscar de Melhor Música Original, estando lá a música do gaúcho sem crédito nem autorização – quando Lupi, como era carinhosamente chamado pelos amigos, soube, sua reação foi tipicamente lupiciniana: ficou feliz com o reconhecimento, com o fato de ter chegado às telas de cinema mundo afora e reuniu os amigos para beber, comemorando. Ary Barroso (1903-1964) também teve música na trilha do mesmo filme e foi devidamente creditado, o que supõe um episódio de racismo, não o único lembrado ao longo do documentário.

Apesar do sucesso que fez durante décadas, fornecendo composições para vozes tão distintas, para além das aqui citadas, Lupicínio Rodrigues nunca viveu exclusivamente de música: ainda jovem entrou no exército, depois foi bedel em uma faculdade, administrou diversos bares – que lhe serviram também de palco – em Porto Alegre e foi diretor da Sociedade Brasileira dos Compositores Autorais por 28 anos, lutando por justiça na distribuição de direitos autorais.

Como se trata de um documentário sobre um compositor, não faltam intérpretes desfilando seu repertório: Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Adriana Calcanhotto, Gal Costa (1945-2022), Linda Batista (1919-1988), Ciro Monteiro (1913-1973) e Elza Soares (1930-2022) ajudam a entender a importância de Lupicínio Rodrigues para a história da música popular brasileira – para além de estereótipos e reducionismos. A história da última, contando o episódio em que conheceu o autor de “Se Acaso Você Chegasse”, com que estava fazendo sucesso, é simplesmente hilariante.

“Lupicínio Rodrigues: Confissões de Um Sofredor” é uma cinebiografia à altura da grandeza de seu protagonista, cuja obra segue vivíssima. É daqueles filmes em que o espectador se pega cantando e assoviando canções que, por vezes, julgava não conhecer, lembrar ou saber o autor.

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