Roger Waters durante apresentação no Allianz Parque, em São Paulo FOTO DE MARCOS HERMES

Então você achou que
Ia curtir ir ao show
Para sentir o pulso quente da confusão
Aquela adrenalina de um viajandão?

A letra da canção In the Flesh, da ópera-rock The Wall, de 1979, do grupo britânico Pink Floyd, a nona música que Roger Waters tocou nessa noite de domingo, 12 (a despedida do artista de uma turnê por 6 cidades brasileiras), no Allianz Parque, a despeito de seus 44 anos de existência, parece nunca ter sido completamente compreendida. Senão, o cantor, baixista e compositor inglês não precisaria colocar a (já) famosa mensagem de “advertência” no telão, antes de iniciar o show: “Se você é um daqueles que dizem: ‘Eu amo o Pink Floyd, mas não suporto a política do Roger’, vaza pro bar”.

Política é uma questão de opinião? A verdade é que Roger Waters anda pelo mundo desde os anos 1960 respondendo obsessivamente a essa questão. Não, não é uma questão de opiniões divergentes. Mas embute uma escolha basicamente muito simples: ou você está do lado do opressor ou do oprimido. “E nós vamos descobrir de que lado vocês fãs realmente se postam”, prossegue a letra da canção In the Flesh (traduções aqui do redator).

“Vaza pro bar”, como “statement” político, nasceu já da última turnê de Roger Waters pelo Brasil, e bem ali mesmo, no Allianz Parque, em 2018. Àquela altura, o País vivia a iminência de uma eleição presidencial. Teria sido fácil para o cantor, bem-sucedido e capaz de encher estádios em qualquer lugar do Planeta, ter se eximido de comentários a respeito dos candidatos em marcha àquela altura. Mas ele não achou conveniente: um deles estava predestinado a mergulhar o Brasil num período de conflagração e trevas, e os sinais disso eram muito evidentes. Então, ele se posicionou, e enfrentou a intolerância e as fake news do oportunismo oficial. Como consequência, ameaçaram até prendê-lo em pleno palco.

O “vaza pro bar” transborda então para o próprio roteiro do show: a quinta música do repertório, The Bar, é uma composição novíssima, uma balada de 2023, que Roger toca ao piano, acompanhado apenas do coro das duas cantoras de apoio da turnê: Amanda Belair e Shanay Johnson. A música, uma protest song dylanesca que aborda um ato de desobediência civil da nação indígena Lakota (que organizou um ato monumental, em 2016, contra a construção de um oleoduto atravessando suas terras, suas águas e seus recursos naturais em North Dakota, Estados Unidos), fala justamente sobre as consequências de se tomar ou não uma posição. “Todo mundo no bar está meio machucado? Sim, tanto eu quanto você”, canta Roger.

Não é nunca uma posição de meios-tons a educação sentimental política que Roger empunha nos shows. A lista de criminosos de guerra que ele desfila no seu telão começa com Ronald Reagan, passa por George Bush Pai e George Bush Filho e desemboca em Barack Obama e Joe Biden. Obama, aponta Waters, foi responsável por institucionalizar o uso de drones assassinos como armas de guerra e, ao nomeá-lo, o cantor expressa uma opinião política desconfortável, mas corajosa. Errar, para Roger Waters, parece menos danoso do que declarar neutralidade – nas canções antigas, a profusão de referências ao racismo, aos crimes de guerra, ao feminicídio, a preocupação com a causa palestina, o acolhimento progressivo das novas causas (como os direitos das pessoas trans), tudo isso mostra que Roger Waters acertou majoritariamente, e o anúncio de sua despedida dos palcos soa um pouco como uma orfandade. Roger Waters integrou um grupo de artistas gigantes que dedicou sua vida à convocação do público, ao esforço de provocar uma tomada de consciência coletiva. Esse clube vai se reduzindo drasticamente, um pouco devido à própria nova conformação da música e sua disseminação pelo mundo.

Isso dito, falemos um pouco da música propriamente dita. Ao contrário dos shows precedentes que Waters carregou pelo mundo, esse era um concerto mais compacto, menos pirotécnico e tecnológico e de produção bem menor e mais barata. Em 2016, o concerto com que correu o mundo reproduzia virtualmente (e com infláveis gigantescos) o edifício da Battersea Power Station, às margens do Rio Tâmisa, que está na capa do disco Animals (1977). No show The Wall, a féerie era ainda mais impressionante, até um avião se chocava contra o palco, explodindo em cena, um palco que virava um muro e depois era demolido e virava uma pilha gigante de milhares de “tijolos”. Esse novo show é até modesto, perto daqueles – apenas solta dois bichos infláveis no interior do estádio (uma ovelha, durante a execução de Sheep, e um porco, em In the Flesh).

As mudanças são mais sutis e concentram-se no repertório. Canções menos conhecidas da carreira solo de Waters são resgatadas em um movimento que parece de revisão e resgate. Duas delas são significativas: The Bravery of Being Out of Range (do disco solo de estúdio Amused to Death, de 1992) trata das intervenções norte-americanas no Oriente Médio e da situação cômoda de apoiar massacres e se mostrar um valente cheio de razão quando se está “longe do alcance” (Out of Range) das bombas e das metralhadoras Uzi. A outra é The Powers That Be, que é do disco Radio K.A.O.S., álbum conceitual quase esquecido que Roger lançou em 1987 após sua partida formal do Pink Floyd. “The powers that be” significa “indivíduos ou grupos na posição de autoridade”, e Roger Waters canta essa canção como se fosse um antigo MC de hip-hop, mais declamando e berrando do que cantando. “Eles gostam de um cadilaque à prova de bombas/Ar condicionado, torneiras de ouro/Rack para armas no banco traseiro/Calotas de platina/Eles escolhem cavalos para as corridas/Eles são as forças do mercado”.

Nota-se, no concerto, a intenção deliberada de livrar a guitarra de Dave Kilminster da onipresença da outra metade imperativa do som do Pink Floyd, David Gilmour. Alguns solos de guitarra são até mesmo suprimidos (ou trocados por outros instrumentos, como o saxofone de Seamus Blake). A versão ultrapesada de Run Like Hell (uma das três canções do disco The Wall que foram compostas por David Gilmour, e não por Roger), reestruturada sobre baixo e bateria, tem o dom de conectar o espectador com uma pulsão atemporal da música eletrônica, um arrastão cardíaco que comprova a modernidade das criações do grupo britânico.

As baladas clássicas, como Wish You Were Here, tocada em três violões, foram reinterpretadas por Roger Waters de uma forma mais grave, mais sombria, menos romântica. Shine on You Crazy Diamond, o tributo a Syd Barrett (1946-2006), o anjo caído do Pink Floyd, também recebeu um arranjo com algumas pequenas mudanças, além de sua nova contextualização entre as canções muito recentes da carreira solo de Roger, como Déjà Vu e Is This The Life We Really Want? (ambas do disco Is This the Life We Really Want?, de 2017), além de Two Suns in the Sunset (do último álbum de Roger como integrante do Pink Floyd, The Final Cut, de 1983). Roger permitiu ao espectador (quase 40 mil pessoas na noite escaldante desse domingo, 270 mil na turnê toda pelo Brasil), examinar suas duas vidas agora de octogenário – aquela que viveu em um sonho psicodélico coletivo, de 5 cabeças, e a que vive ainda como combatente solitário das causas dos expoliados. Ou, para ser mais político, permitiu coisa nenhuma: esfregou na cara.

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