No início de tudo, eram Os Namorados. Num tempo de profusão de conjuntos vocais masculinos, iniciado pelo Bando da Lua de Carmen Miranda, pululavam Anjos do Inferno, Quatro Ases e Um Coringa, Namorados da Lua, Garotos do Céu, Vocalistas Tropicais, Quitandinha Serenaders, Os Titulares do Ritmo, Os Cariocas, Demônios da Garoa, Conjunto Farroupilha… Em 1953, numa breve derivação dos Namorados da Lua do precursor da bossa nova Lúcio Alves, o futuro crooner solo Miltinho secundou e foi secundado por um tal Donato, que viria à história da música com M maiúsculo como João Donato. Era um improvável migrante acreano que se integraria aos rapazes da zona sul carioca na invenção da bossa nova, admitido no clube talvez porque vivera no Rio de Janeiro desde a infância.

Os Descontentes: JD conta como conheceu JG

Os dois excêntricos da bossa carioca tinham isto em comum: o acreano Donato cantou com Os Namorados, o baiano João Gilberto participou dos Garotos da Lua até ser demitido, por ter voz pequena demais, como Donato cantava com picardia (acima ou aqui, a partir de 26′). Uma das quatro músicas que Os Namorados deixaram gravadas em 1953 era “Eu Quero um Samba”, de Haroldo Barbosa e Janet de Almeida, original de 1945 dos Namorados da Lua que só ganharia prestígio definitivo em 1973, ao ser registrada pelo outro João. Outra, assinada por Sebastião Gomes e Bide, chamava-se “Pagode em Xerém“, três décadas antes do advento de Zeca Pagodinho (com quem Donato gravaria “Sambou… Sambou“, 55 anos mais tarde).

“Eu Quero um Samba” (1945), gravado por Donato com Os Namorados em 1953

Nessa fase romântica, os dois joões assinaram algumas composições em dupla, das quais rodou mundo “Minha Saudade”, apresentada primeiro em versão instrumental por outro futuro artífice da bossa, o violonista carioca Luiz Bonfá, em 1955, e gravada com letra rês anos depois pela bossa-novista excêntrica (porque negra) Alaíde Costa, num dos marcos introdutórios clandestinos da bossa.

“Minha Saudade” tem sido exaustivamente regravada, por brasileiros como Paulo Moura (em 1958), Bola 7 (1959), Tamba Trio (1962), Rosinha de Valença (1964), Milton Banana (1965), Victor Assis Brasil (1966), Walter Wanderley (1967), Sivuca (1969), Badi Assad (1995), Ithamara Koorax (1997), Gilberto Gil (1999), Toquinho (2005)… e, no exterior, por jazzistas como Herbie Mann (em 1962), Cannonball Adderley (1963), Bud Shank (1965), Brother Jack McDuff (1966), Putte Wickman (1982), Hendrik Meurkens (1991), Lisa Ono (1995), Joe Negri (1998), Eddy Palermo (2005), Christian Søgaard (2010)…

Enquanto JG penava para se estabelecer, o nome do então acordeonista JD debutou no mesmo 1953 à frente do grupo não-vocal Donato e Seu Conjunto, interpretando versões morenas de standards da América de cima como “Tenderly“. A influência do jazz era moeda corrente entre os fãs de Frank Sinatra e do brasileiro Dick Farney, mas a brasilidade já pedia passagem, numa transmutação mais otimista do sambinha (de origem mexicana) “Está Chegando a Hora” (“o dia já vem raiando, meu bem/ eu tenho que ir embora”), rebatizada “Já Chegou a Hora“, em que o coro masculino repetia à exaustão a frase-título.

Assim foi modulado o LP instrumental de estreia de Donato e Seu Conjunto, Chá Dançante (1956), embrionário e nada bossa-novista, mas amplo e maleável na distribuição equilibrada entre o choro carioca de Pixinguinha (“Carinhoso”), o samba-jazz gaúcho de Lupicinio Rodrigues (“Se Acaso Você Chegasse”, quatro anos antes da versão envenenada de Elza Soares), o baião pernambucano de Luiz Gonzaga (“Baião“, “Baião da Garoa”) e Zé Dantas (“Farinhada“), o samba praieiro baiano de Dorival Caymmi (“Peguei um Ita no Norte”). O produtor, ainda um aspirante ao prestígio e ao sucesso, atendia pelo nome de Antonio Carlos Jobim.

Nada aconteceu, João Donato submergiu, converteu-se do acordeom ao piano (seguindo a tendência modernizadora que queria ver pelas costas a influência forrozeira de Gonzagão) e se jogou no mundo, literalmente, trabalhando no México com Elizeth Cardoso e nos Estados Unidos com o percussionista cubano Mongo Santamaria e com o bandleader norte-americano de ascendência porto-riquenha Tito Puente. Ambos gravaram composições do jovem Donato.

“Silk Stop”, futura “Gaiolas Abertas”, na versão de Paulo Moura, 1958

Às vésperas da bossa nova, o saxofonista e clarinetista Paulo Moura apresentou uma das composições solo inaugurais de Donato, “Silk Stop” (1958), cujo motivo principal se tornaria, um quarto de século mais tarde, samba nas cordas vocais do letrista Martinho da Vila e MPBossa nas da intérprete Nara Leão, sob o título “Gaiolas Abertas” (1982).

O próprio Donato só conseguiu passar a lançar suas próprias criações e a gravar no estilo bossa nova na volta ao Brasil, quando editou, como Donato e Seu Trio, os LPs Muito à Vontade… (1962) e A Bossa Muito Moderna de Donato e Seu Trio (1963). Começam a brotar a partir daqui futuros clássicos da bossa nova, como “Sambou… Sambou” e uma tal “Índio Perdido” (1963).

A primeira virou canção em tempo de sambalanço em 1964, na voz de Doris Monteiro (e na de Elza Soares, logo depois): “Sambou, sambou, não descansou/ ficou zangado quando o dia clareou/ eu nunca vi sambar assim/ gosta do samba muito mais do que de mim”. “Índio Perdido” (convertida em samba-jazz pelo trio de Dom Salvador em 1966), era versão embrionária do colosso que ficaria conhecido como “Lugar Comum” ao receber letra de Gilberto Gil, 12 anos mais tarde. Em 1966, Doris Monteiro deu personalidade vocal a mais dois standards donatianos, “Muito à Vontade” (1962) e “Aquarius” (1965), essa última anterior à coqueluche hippie pela Era de Aquário. Artista e produtor musical ligado à multinacional Philips que acolheu Donato, o baiano João Mello é o letrista de “Sambou… Sambou”, “Muito à Vontade” e “Aquarius”.

Sem o magnetismo de João Gilberto, de Tom Jobim ou mesmo do poeta Vinicius de Moraes, Donato não emplacou uma identidade própria nesse momento, e voltou a migrar para os Estados Unidos, onde permaneceria por mais dez anos. O primeiro lançamento internacional, já na crista da voga do sucesso da bossa junto ao jazz, foi um disco assinado em dupla com o saxofonista e flautista estadunidense Bud Shank, egresso da banda de um ídolo de Donato, o pianista Stan Kenton.

Metade das faixas de Bud Shank & His Brazilian Friends (1965) era assinada por JD: “Sausalito”, “Minha Saudade”, “Silk Stop”, “Caminho de Casa” e “Sambou… Sambou”. Entre os “amigos brasileiros” que gravaram o LP com Shank estava a jovem violonista fluminense Rosinha de Valença, não creditada na capa norte-americana, mas sim na versão brasileira lançada pelo selo Elenco, do ex-Bando da Lua Aloysio de Oliveira. Donato também foi creditado na capa de Brazil! Brazil! Brazil!, de Shank, agora lado a lado com Chet Baker, Joe Pass, Clare Fischer e o também brasileiro Laurindo Almeida.

Ainda em 1965, Donato lançou nos Estados Unidos o primeiro álbum inteiramente atribuído a ele, sob orquestração do maestro alemão Claus Ogerman: Piano of João Donato – The New Sound of Brazil. Aqui surgem duas outras parcerias fundadoras com João Gilberto, “Coisas Distantes” (traduzida para “Forgotten Places”) e “No Coreto” (“Glass Beads”), e as primeiras versões de duas novas obras-primas, “Sugarcane Breeze” (que só em 2001 receberá sua primeira versão cantada, como “Vento no Canavial”) e “Amazon“.

Segunda versão cantada de “Sugarcane Blues”, com Emílio Santiago, 2003

“Amazon”, simultaneamente, converteu-se em sucesso easy listenting pela voz macia do ídolo pop jovem californiano (de ascendência mexicana) Chris Montez, sob o título “Keep Talkin’“, da floresta amazônica para Los Angeles, com escala imaginária no México. “Keep Talkin'” ficará por aí mesmo, mas como “Amazon” ou “Amazonas” essa peça será uma favorita donatiana de jazzistas nacionais e internacionais, com versões gravadas por Walter Wanderley (1967 e 1981), Cal Tjader (1968 e 1976), Luiz Carlos Vinhas (1968), Tony Hatch (1968), o Som Três de Cesar Camargo Mariano (1968), Roberto Menescal (1969), Milton Banana (1971), o argentino Agustin Pereyra Lucena (1976), Yana Purim com Herbie Hancock (1987), Toninho Horta e Arismar do Espírito Santo (2007) etc.

Subindo degraus rumo ao prestígio como músico de estúdio, escreveu arranjos para o álbum The Shadow of Your Smile (1965), da baiana migrante Astrud Gilberto, ex-esposa do outro João. Niteroiense migrante em fase de posicionamento na indústria musical estadunidense, Sergio Mendes deu a largada em 1967 para a ascensão de outra das composições mais difundidas da história de Donato em termos internacionais, “The Frog“, uma melodia vibrante sem letra, apenas cantarolada pelo grupo de Mendes, Brasil ’66, na linha batráquia onomatopeica do paraibano Jackson do Pandeiro.

Outra favorita do jazz (e do easy listening), a melodia de “The Frog” frequentará a música de gente como o italiano Augusto Martelli (1969), o alemão Les Humphries (1971), a japonesa Yuka Kido (1994), o finlandês Jarkko Toivonen (1996), a polonesa Grażyna Auguścik (2000), o israelense Mattan Klein (2007) e o alemão Till Brönner (2008), entre muitos.

“The Frog” será mais um exemplo de composição donatiana em contínua transmutação, exibida em 1970 na abertura do antológico LP internacional A Bad Donato. Sem os vocais do Brasil ’66, torna-se uma bossa fusion funkeada à base do fogo psicodélico/black power de James Brown e das trilhas de filmes de blaxploitation do início dos 1970, algo que Eumir Deodato, outro parceiro bossa-novista radicado nos Estados Unidos, também vem fazendo nesse momento. Essa versão servirá de molde, sete anos mais tarde, para o hit “Les F…“, cantado em francês pelo belga Jacques Brel, que anuncia “The Frog” como “chanson comique”.

Não por acaso, a pororoca entre o acreano Donato e o carioca Deodato produzirá, em 1973, o também funkeado e experimental The Music of DonatoDeodato, de uma big band liderada pelos teclados da dupla e integrada por Randy Brecker (trompete), Michael Gibson (trombone), Romeo Penque (flauta e assovio), Bob Rose (guitarra), Allan Schwartzberg (bateria), Ray Barretto (congas) e os brasileiros Mauricio Einhorn (harmônica) e Airto Moreira (percussão).

Sobre a caminhada de “The Frog”, o segundo grande responsável pela internacionalização do sucesso será o velho parceiro João Gilberto, que repatriará o tema para a floresta amazônica de origem, sob o título “O Sapo”, no álbum gravado e lançado no México em 1970.

“The Frog” vira “O Sapo” na voz e no violão de João Gilberto, 1970

JG retoma o idioma universal de “The Frog” em vocais-onomatopeias agora radicalizados, mais livres, leves e soltos. O destino glorioso seguinte do frog que virou sapo será mudar de sexo pela garganta de Gal Costa, com o nome “A Rã” e letra concretista de Caetano Veloso, no antológico álbum Cantar. Nessa versão cantada, até o soulman Tim Maia se renderá à bossa nova, em 1991.

Tim Maia se rende à rã de João Donato, em 1991

Sergio Mendes e Donato tentaram repetir a dobradinha de sucesso de “The Frog”, agora a partir da figura pré-manguebit de um caranguejo, “The Crab”, lançado apenas em compacto em 1972, sem lograr o mesmo impacto da experiência anterior.

“O Sapo” de João Gilberto, por outro lado, faz despertar o interesse da MPB por João Donato, o que se consolidará com sua volta ao Brasil em 1972 e com o advento d'”A Rã” de Gal e da bela “Ahiê”, gravada por Nana Caymmi na Argentina, em 1973, sob assinatura a seis mãos por Donato, Paulo César Pinheiro e a migrante Flora Purim. “Ahiê” carrega o espírito idílico que dará forma à música donatiana nos anos 1970: “Ahiê/ é o lugar onde eu vou viver/ ahiê/ mas também pode ser meu bem/ querer”.

Começa a nascer o “lugar comum” donatiano, que será o Acre, a Amazônia, a Bahia, o Rio de Janeiro, o Brasil, a América Latina. “Ahiê/ é o que você quiser dizer”, resume a canção. Ao mesmo tempo, no crucial álbum Previsão do Tempo (1973), o companheiro bossa-novista e pós-bossa-novista Marcos Valle lança “Não Tem Nada Não“, uma parceria Donato-Deodato-Valle em tons latinos, que começa a depurar o imaginário viajandão do Donato setentista: “É, não tem nada, não/ você tem razão/ que de confusão/ não se vive, não/ não vou procurar/ nem telefonar/ tudo vai passar, viu?/ (…) não tem nada, não/ pois eu não sou mais/ do que um joão, viu?”.

O primeiro resultado completo dessa fase, ainda no ano-chave de 1973, é o primeiro disco cantado de João Donato, Quem É Quem, uma espécie de coletânea de grandes sucessos que nunca haviam sido cantados nem feito sucesso pelo próprio autor, sob produção de Marcos Valle, como ele um bossa-novista sem preconceitos ou amarras estilísticas. A voz iconoclasta, pastosa e joãogilbertiana de Donato dá luz e viço a “Chorou, Chorou”, “Ahiê”, “Até Quem Sabe?“, “Terremoto” (que Gil gravará ao vivo no ano seguinte), “Fim de Sonho”, “Mentiras” (agora na voz de Nana Caymmi), “Nana das Águas” e “Cala Boca Menino” (brincadeira inédita do mestre Dorival Caymmi).

Na voz do dono, “Amazonas” permanece sem letra, “A Rã” segue cantarolada (“O Sapo”, portanto, foi rebatizado antes da chegada de Caetano e Gal) e “Cadê Jodel” (1970, subtítulo “The Beautiful One”) ganha letra e parceria de Marcos Valle.

Ainda em 1973, Claudette Soares gravou “Mentiras” e Doris Monteiro lançou “Até Quem Sabe?“, ambas inéditas. A segunda será regravada em 1974 por Maysa, em seu derradeiro álbum, e ao mesmo tempo catapultada para o panteão da MPB por Gal Costa, ao lado de “A Rã” e da meiga “Flor de Maracujá“, em Cantar. “Até Quem Sabe?” é outra canção que cumprirá a sina de ser regravada à exaustão, aqui e em todo lugar.

Compostas e arranjadas por Donato, as três gravações de Gal reposicionam o autor na MPB, e também nos bastidores da indústria fonográfica. Ainda em 1974 ele fará os arranjos de quatro sambas na voz de Clara Nunes, o antológico “Conto de Areia“, “Nanaê, Nanã Naiana”, “O Que É Que a Baiana Tem?” e “Esse Meu Cantar”.

A conversão de “Índio Perdido” em “Lugar Comum” consuma-se quando o índio perdido encontra seu lugar ao lado de Gilberto Gil, que grava a canção com letra pela primeira vez no álbum Ao Vivo (1974), uma ode do início ao fim à abstração e ao ensimesmamento maconheiro. “Beira do mar/ lugar comum/ começo do caminhar/ pra beira de outro lugar/ à beira do mar/ todo mar é um/ começo do caminhar/ pra dentro do fundo azul”, canta Gil, louco e lúcido como nunca antes nem depois.

A lista de gravações de “Lugar Comum” será extensa, desde 1975, em versões lançadas por Miúcha, a jazzista exilada Tania Maria (sob o título “Beiro de Mar”), Doris Monteiro (1977), Herbie Mann (1978, traduzido para “Common Place”), o argentino Litto Nebbia (1985), o ex-titã Arnaldo Antunes (em versão roqueira áspera de 1995), Gal Costa em trio com Wanda Sá e Célia Vaz (1998), Leny Andrade (2006), Nelson Ayres (2011), Ron Carter (2016)…

“Lugar Comum”, de João, mas também de Gil, 1975

A melodia de “Índio Perdido”, capturada na infância do assovio de um pescador nas águas do rio Acre, encontra a voz de João Donato em 1975, como faixa de abertura de Lugar Comum, que de resto se constrói por vários tipos de brincadeiras (indígenas?) em música e texto, com sons e palavras pulando para o mundo feito pipoca. Exemplos de canções em estado de graça são a clássica “Bananeira” (“bananeira não sei, bananeira sei lá/ a bananeira, sei, não, a maneira de ver”), a latina “Tudo Tem” (“tem, tem, tem/ tudo tem”), a alucinógena “A Bruxa de Mentira” (“bombom de rapadura/ saborosa figura”, “bruxinha gostosura”, “rapadura bombom”), o afropop “Emoriô” (“emoriô deve ser uma palavra nagô/ uma palavra de amor, um paladar/ emoriô deve ser alguma coisa de lá/ o sol, a lua, o céu de Oxalá”), “Que Besteira” (“que besteira você fez/ pois eu/ também/ já fiz/ que besteira você fez/ já faz/ um mês/ ou mais/ que besteira você fez/ pois foi/ você/ e a beleza de um rapaz”)…

O disco estabelece ainda parcerias com gente de outros cantos da MPB: o roqueiro rural Guttemberg Guarabyra, em “Ê Menina” (ê, menina, ê, menina/ ieiê, Oxum da mina”); os sambalançantes Orlandivo e Durval Ferreira, em “Patumbalacundê”; o sambista Sidney da Conceição, no louvor aos orixás “Xangô É de Baê” (“uma flor no jardim eu vou buscar/ e jogar no mar pra Iemanjá/ vou pedir a meu mestre Oxalá/ pra no meu caminho o sol brilhar”); e Caetano Veloso, em “Naturalmente”.

Lugar Comum causou impacto às raias da unanimidade junto à comunidade musical. Em 1975, em seu compacto de estreia, Fafá de Belém dá versões bastante pessoais a duas pérolas donatianas, uma com Gil, “Emoriô“, e outra com Caetano, “Naturalmente“, que devolve Donato a domínios amazônicos, embora não acreanos: “Viva Belém do tucupi/ Belém, Belém do tacacá/ Belém, Belém do açaí/ Belém, Belém do Grão-Pará”. Emílio Santiago suingou “Bananeira” como faixa de abertura de seu LP de estreia, no mesmo 1975. Sergio Mendes apanhou para si a genial “Emoriô“, já em 1975. O trombonista Raul de Souza transformou “Bananeira” em “Banana Tree”, em 1977. Bebel Gilberto deu roupa, cara e vida novas a “Bananeira“, inaugurando uma era de bossa eletrônica na música planetária, em 2000. A regravação de Joyce Moreno, no mesmo ano, abriu um tempo de colaboração estreita entre dois artistas com muito em comum.

Acumulam-se ainda versões de “Que Besteira” (por Wanderléa em 1975, e Clara Moreno em 2010), “Ê Menina” (Gil em 1982, Sergio Mendes em 2006), “Bananeira” (Ed Motta em 1999, Bocato em 2001, Maogani em 2001 e 2019, Paulo Moura e Aquilo del Nisso em 2003, Sergio Mendes em 2006), “Emoriô” (Sandra de Sá em 1999, Monobloco em 2010, Gil e BaianaSystem em 2020), “A Bruxa de Mentira” (Arnaldo Antunes em 1999, Wanda Sá em 2005).

Aquele que seria o sucessor de Lugar Comum, e que Donato sonhava como um álbum triplo, teve sessões de gravação em 1977 e 1978, mas não foi lançado. Foi publicado quatro décadas depois, dentro da caixa A Mad Donato, pelo selo Discobertas, sob o título Gozando a Existência. O material recuperado, composto por nove faixas, não parece formar uma unidade e se dispersa entre experimentações jazzísticas, uma seresta cantada por um certo José Amin, o longo vocalise “Gozando a Existência” levado por Alaíde Costa, o “Canto da Lira” de Djavan na voz do próprio, versões instrumentais de três canções que ficariam conhecidas no Clube da Esquina 2 (1978) de Milton Nascimento (“Toshiro”, “Testamento” e “Olho d’Água”).

Hoje amados, Quem É Quem e Lugar Comum não conseguiram consolidar João Donato como artista/cantor de MPB. Muito longe disso, empurraram-no à condição de arranjador/músico de estúdio. A associação com o núcleo tropicalista formado por Caetano, Gil e Gal funcionou como trampolim para que ele se responsabilizasse, ainda em 1975, pelo arranjo da “Modinha para Gabriela“, imortalizada por Gal (e por Sonia Braga) na abertura da novela global Gabriela. Integrado ao grupo baiano nesses anos, Donato tocou piano para Caetano em “Qualquer Coisa” e “Drume Negrinha” (1975) e na íntegra do primoroso álbum Gal Canta Caymmi (1976).

Daí por diante, assinou um sem-número de arranjos, invariavelmente modernos, para Os Tincoãs, de “Oxóssi Te Chama” (1975), “Cordeiro de Nanã” e “Atabaque Chora” (1977), entre outras; Marku Ribas, no álbum Marku (1976), no qual também tocou piano elétrico e sintetizadores; Paulo Diniz, em Estradas (1976); o disco samba-rock de Orlandivo (1977); Emílio Santiago na gema samba-soul “Nega” (1977) e em diversos trabalhos; Johnny Alf em quatro faixas do LP Desbunde Total (1978); Luiz Melodia em “Mulato Latino” (1978); João Bosco em Linha de Passe (1979); o paraense Paulo André Barata no álbum Amazon River (1980); João Gilberto e Rita Lee no dueto ao vivo de “Jou Jou e Balangandãs“, em 1980; o maranhense João do Vale com Tom Jobim em “Pé do Lajeiro (Aonde a Onça Mora)” (1981); Nara Leão em “Nasci para Bailar” e “Gaiolas Abertas” (1982), ambas de sua autoria; Djavan em “Tanta Saudade” (1983), uma parceria Djavan-Chico Buarque; a dupla-casal cristã egressa dos quadros da bossa nova Edson e Tita (Lobo) em Partiu do Alto (1990); Marisa Monte em “Quem Foi” e “Aconteceu” (2006)…

O piano de Donato, elétrico ou acústico, povoa a MPB dos 1970 e 1980 (e adiante) em inúmeras gravações, várias delas históricas: “Coração Tranquilo” (1978), de Walter Franco; no Clube da Esquina 2 (1978) de Milton Nascimento e na versão de “Cais” por Nana Caymmi, em 1977; em “Noturno” (“ah, coração alado…”), um dos maiores sucessos na voz de Fagner, em 1979; em “Alta Noite” (1993), na estreia solo de Arnaldo Antunes, com Marisa Monte nos vocais; no rap “Mantenha o Respeito 2” (1998), de Marcelo D2.

“Amazon”, que já fora “Keep Talkin'”, tornou-se definitivamente “Amazonas” em 1977, quando Lysias Enio, irmão de Donato, deu-lhe letra em português para Nara Leão cantar, em duo com o próprio Donato. “Vou embora/ tá na hora de voltar pro Amazonas/ na cidade na saudade choro tanto/ que meu pranto feito um rio se fez mar”, cantam Nara e João, à procura do paraíso apelidado de “lugar comum”: “Vou armar a minha rede/ com a morena a me embalar/ sonho livre/ como a garça voa livre pelo espaço/ vou descendo rio abaixo de canoa/ vida boa de ter tempo pra sonhar/ vou fazer uma palhoça/ com a morena vou morar e amar/ vou ser livre/ como livre vai correndo o Amazonas/ na canoa deslizando em suas ondas/ vou seguir o seu caminho para o mar”.

Em 1986, já menos requisitado como músico de estúdio, Donato pôde lançar seu primeiro álbum solo em 11 anos, o quase integralmente instrumental Leilíadas, jazzístico e gravado ao vivo. De um conjunto conciso de composições inéditas, sairão mais algumas peças antológicas da MPB, depois de letradas por parceiros diversos. Com versos e interpretação de Chico Buarque, “Leila XIV” virará “Cadê Você” (1987). Compondo para Gal Costa, Caetano Veloso transformará “Leila XII” em “Nua Ideia” (1990). “Leila IV“, em particular, estará destinada a se tornar mais uma obra-prima da parceria Gil-Donato, transmutando-se em “A Paz” para a voz de Zizi Possi, em versão pop de 1987 e em releitura chique de 1991.

Leilíadas não chegou a significar uma retomada do protagonismo por Donato, pois outros dez anos se passaram até que ele lançasse um próximo álbum, o cantado e inspirado Coisas Tão Simples (1996), de regravações produzidas pelo japonês Kazuo Yoshida. Desse segundo intervalo sem discos no mercado, a caixa da Discobertas resgatou dois CDs inéditos, com gravações de 1988 e 1989. O primeiro, batizado Naquela Base (a partir da faixa-título original de 1962), reúne leituras autorais de algumas das “Leilas” e algumas peças desconhecidas até 2018 (“Varanda”, “Bounce Blues”, “Som Montuno”).

O segundo é um trabalho inacabado à base de sintetizadores, gravado no estúdio do ídolo pop oitentista Ritchie, recuperado sob o título Janela da Urca. Temas então inéditos, “Pelo Avesso”, “Hao Chi”, “Entre o Sim e o Não” e “O Amor Se Derrama” sairiam em discos posteriores de Donato ou de outros intérpretes, mas outras – “Baixo Xingu”, “Janela da Urca”, “Que Bobeira”, “A Música do Amor” – aparentemente permaneceram intocadas até 2018.

Ainda que o irmão Lysias Enio seja o parceiro mais constante, não se pode dizer que João Donato tenha sido econômico nas composições com artistas de diversos nichos. Escreveu canções com Martinho da Vila (o irreverente samba “Daquele Amor, Nem Me Fale“, 1982, regravada com brilho por Elza Soares em 1985, “Suco de Maracujá” em 2005); Caetano Veloso (“Surpresa“, 1982, gravada pelo próprio Caetano, “O Fundo“, 1986, lançada pela paraense Leila Pinheiro, e “Naquela Estação“, 1990, no disco de estreia de Adriana Calcanhotto); Moraes Moreira (“Marília”, 1982, “Amor Perfeito”, 1995); Abel Silva (“Simples Carinho“, 1982, um standard do repertório de Angela Ro Ro); Baby do Brasil (“Um Arco-Íris na Tarde”, 1982); Fausto Nilo (“Leila VI – Lua Dourada”, 1986, “Sonho de Marinheiro”, 2006, “Meu Amor Ideal”, 2009); Cazuza (“Doralinda“, lançada por Donato em 1996 e depois em gravação póstuma de Cazuza); Miúcha (“Tempo de Amar”, 2002); Arnaldo Antunes (“Clorofilha do Sol – Planta”, 2003, “O Fogo”, 2013); João Bosco (“Nossas Últimas Viagens“, 1999, “Eu Não Sei o Seu Nome Inteiro”, 2012); Carlos Lyra (“Pra Sempre”, 2019); Tulipa Ruiz (“Gravidade Zero”, 2019).

Tulipa Ruiz + João Donato = “Gravidade Zero”, 2019

Uma repopularização da bossa nova e da obra donatiana a partir da produção japonesa de Kazuo Oshida em 1996 foi o impulso inicial para que Donato se atirasse em duas décadas e meia de produção febril. Ergueu a partir daí uma longa série de discos instrumentais: Café com Pão (1997, em dupla com o baterista e percussionista Eloir de Moraes), Só Danço Samba (1999, dedicado à obra de Tom Jobim), Amazonas (2000, como João Donato Trio), Brazilian Time (2001, idem), The Frog (2001, idem, com a Orquestra Jazz Sinfônica), Remando na Raia (2001), Dois Panos pra Manga (2006, em dupla com Paulo Moura), Uma Tarde com Bud Shank e João Donato (um reencontro depois de 42 anos, 2007), O Piano de João Donato (2007), o bom Sambolero (2010, de novo como João Donato Trio), Donato Elétrico (2016), Bluchanga (2018), o volume 7 da série Jazz Is Dead (2021, com Ali Shaheed Muhammad e Adrian Younge). A Blue Donato, lançado pelo selo inglês Whatmusic em 2005, recupera gravações inéditas de 1973, em que o artista interpreta instrumentais de Herbie Hancock, Wayne Shorter e McCoy Tyner.

Também voltou a cantar nesse período, em Ê Lalá Lay-Ê (2001, com várias inéditas compostas com Lysias Enio), Managarroba (2002), Donatural (2009, ao vivo, com interpretações de Joyce Moreno, Leila Pinheiro, Emílio Santiago, Angela Ro Ro, Gilberto Gil, Marcelinho Dalua e Marcelo D2), Live Jazz in Rio (2014, metade instrumental) e Serotonina (2002, seu derradeiro álbum, com dez inéditas e participações vocais de Anastácia e Céu).

O rap e a bossa se encontram em “Balança”, Donato + D2, 2002

No inspirado Managarroba, compôs com D2 (“Balança”), Arnaldo Antunes e Marisa Monte (“Nunca Mais“), com participações vocais respectivas de D2 e Marisa. Gravou diversos álbuns em dupla, com Joyce Moreno (Tudo Bonito em 2000, Aquarius em 2009), Emílio Santiago (Emílio Santiago Encontra João Donato, 2003), Wanda Sá (Wanda Sá com João Donato, 2003), Tita Lobo (João Donato Reencontra Maria Tita, com composições seculares de Edson e Tita, 2006), Jards Macalé (o irreverente Síntese do Lance, 2021, com a parceria “Coco Táxi” e mais nove inéditas). Joyce, em particular, virou parceira constante em boas composições: “Prossiga” (2000), “E Vamos Lá” (2002), “E Passa o Carrossel“, “No Fundo do Mar” (2008), “Luz da Canção” (2009).

Joyce e Donato: “E Vamos Lá”, 2002

Em 2008, no bojo das comemorações pelos 50 anos da bossa, com muitos projetos coletivos, Donato uniu-se a Carlos Lyra, Marcos Valle e Roberto Menescal para o álbum Os Bossa Nova e aos instrumentistas Raul de Souza, Luiz Alves e Robertinho Silva, no disco de samba-jazz Bossa Eterna.

Despojado dos clubismos dos bossa-novistas (ou, talvez, de quaisquer grupos e gerações), Donato manteve-se sempre atento às novidades sonoras, o que comprovam participações em trabalhos de Acabou la Tequila (“Eu Não Preciso de Ninguém pra Ser Feliz“, 1996), Marcelo D2 (“Espancando o Macaco”, 1998, “Sinistro”, 2006), Funk Como Le Gosta (“Whistle Stop”, 1999), Marcelinho Dalua (“Lá Fora“, 2003), Kassin (“O Seu Lugar”, 2006), Vanessa da Mata (álbum Sim, 2007), Orquestra Imperial (“Enquanto a Gente Namora“, de Donato com Thalma de Freitas, 2012), Tulipa Ruiz (“Tafetá“, 2015, “Manjericão“, 2019, “O Recado da Flor“, 2022), Anelis Assumpção (“Escalafobética“, 2018)…

O veterano Sergio Mendes colaborou com a travessia da música de Donato para o século 21 no álbum Timeless (2006), em que regravou “The Frog” em versão funk-eletrônica, com os rappers estadunidenses will.i.am e Q-Tip e “Bananeira” com o reggaeman jamaicano Mr. Vegas. Alvo de admiração de artistas de várias vertentes da música eletrônica, o indígena musical acreano foi sampleado por A Tribe Called Quest (1992), J Dilla (1996), The Avalanches (2000), Dave Hollister (2000) e Freddie Joachin (2008), entre outros.

Donatão e Donatinho: “Sintetizamor” (2017)

O mais bonito salto transgeracional da fase final de Donato se deu em 2017, no moderno e ensolarado álbum Sintetizamor, dividido com seu filho tecladista Donatinho. Com citações a jazz, bossa, funk, samba-soul, Azymuth, disco music, black Rio, Robson Jorge & Lincoln Olivetti, synth-pop, Michael Jackson, house, Daft Punk, lounge music etc., o álbum apresenta dez parcerias pai-filho (ora cantadas por um, ora por outro, ora por outras vozes), inclusive em trios ou quartetos com Davi Moraes (“De Toda Maneira“, “Interstellar“), Domenico Lancellotti e Julia Bosco (“Surreal“), Jonas Sá (“Luz Negra”) e o veterano Ronaldo Bastos (“Vamos Sair à Francesa”).

Em pique de discothèque, “Quem É Quem” volta a fazer um sobrevoo amazônico: “E quando chegar no fim o que tem?/ o que ainda pode vir do além?/ de Belém/ do Pará/ tucupi/ tacacá”. No mesmo ano, no instrumental Bluchanga, João Donato volta para casa uma derradeira vez, em “Rio Branco”, consagrada à cidade natal onde começou a nascer seu “Lugar Comum”. A saga não terminará com sua morte.

Donato se despede de “Rio Branco”, 2017

(Leia mais sobre João Donato em FAROFAFÁ e na Amazônia Real.)

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2 COMENTÁRIOS

  1. Texto excelente sobre a obra sensacional desse gênio. Creio que ele não seja mais popular porque cantar não era o forte, mas fica claro o quanto influenciou em todos os cantos da mpb. Suas música emociona profundamente.

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