O escritor, professor e historiador Wander Conceição, autor do livro que remonta a vida de João Gilberto em Diamantina

E se, na certidão de nascimento da bossa nova, viesse escrito “Diamantina, Minas Gerais”?

Ora, dirão os ipanemistas radicais, isso é de uma estupidez abissal!

Ora, dirão os juazeiristas fundamentalistas, isso é um insulto!

Bom, lamento informar, mas há grandes evidências disso. Nos anos de 1950, pouco antes de apresentar a batida que cimentou o caminho da bossa nova no mundo, o cantor, compositor e violonista baiano João Gilberto (1931-2019) praticou violão durante dois anos em Diamantina, Minas Gerais, onde morou na casa da irmã, Maria da Conceição Oliveira de Sá, a Dadainha, da primavera de 1955 ao outono de 1957, rumando dali para o Rio de Janeiro. Essa passagem já é bastante mencionada na historiografia do violonista, em passagens que vão do filme Onde está João Gilberto?, de Marc Fischer, aos livros de Ruy Castro e ao póstumo Amoroso, de Zuza Homem de Mello, mas quase sempre em tom incidental, quando não folclórico ou anedótico.

O período, entretanto, foi de atividade prodigiosa para João Gilberto. Em Diamantina, para alguns ele ganhou o apelido de Libório, pela semelhança com uma figura local. Mas a maioria o chamava de Joãozinho. Ali, enfureceu pelo menos um pai com serenata para a filha, namorou, escreveu poemas, criou amizades profundas e inimizades fugazes, profetizou ao barbeiro Zé do Bule que seria falado no mundo todo em breve, passou dias de pijama tocando dentro de um banheiro praticando violão, tentou encaixar La vie en rose na batida que inventara (sem sucesso), viu jogos de vôlei e dança de quadrilha por causa de uma namorada (Beth Coelho), reclamou de barulho de porta, ensinou os amigos a tocar violão e foi chamado de “desentoado”.

Essa fase agora está bem documentada em um novo livro. Desafinado – das cinzas da Acayaca à bossa nova, de Wander Conceição, com portentosas 636 páginas, foi uma pesquisa empreendida durante 22 anos pelo autor – um terço da sua vida – com o intuito principal de se contrapor, com informações e depoimentos, a uma afirmação que julgou negligente do escritor Ruy Castro, que definiu esse período de João Gilberto apenas como uma temporada em que o violonista morou em “uma cidade chamada Diamantina” (no livro Chega de Saudade).

“Embora numa escala abaixo do Rio de Janeiro, Diamantina se modernizava em debate ácido com seu longo passado. Definitivamente, não era um povoado poeirento isolado em distante rincão interiorano”, rebate o historiador Marcos Lobato Martins sobre a cena cultural da cidade que abrigou o desenvolvimento da bossa de João Gilberto. O livro não é sobre João Gilberto, é justamente sobre a cena cultural da cidade na qual ele viveu – um leque que permite conhecer a extensão da influência de musicólogos como o alemão Curt Lange, o compositor José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, e as refinadas técnicas de orquestração, a elegância melódica e as texturas harmônicas de compositores mineiros do período. O faro de João também o guiou pela riqueza dos sons de um repertório desenvolvido pelo calendário litúrgico, como os ofertórios, antífonas, ladainhas, réquiens, novenas, te deums, ofícios, entre outros.

Evidentemente, o tesouro para os joãogilbertianos estará no último capítulo, que contém 37 depoimentos inéditos de pessoas daquele tempo que ou desfrutaram da companhia de João Gilberto, ou o abrigaram em salas de música, ou o acompanharam em saraus e festas (ou o namoraram).

O bancário Geraldo Ribeiro de Miranda, por exemplo, contou, em agosto de 2000, que João Gilberto estudava infatigavelmente já com o intuito de inventar uma maneira nova de apresentar o violão e a voz, mas também expunha posturas políticas e sociais. “Ah, Geraldo! Eu sou meio socialista”, disse ao colega, ao explicar porque tinha um espírito antiamericanista.

João tinha inúmeros amigos, mas um dos mais próximos era Leon Horowitz, cujo apelido era Bubi. Horowitz foi o único que ganhou autorização para ver todos os ensaios do obsessivo João. Ele contou que Joãozinho não iniciava seus ensaios sem antes beijar uma pequena medalha que carregava com uma imagem de Santa Terezinha, e que costumava ouvir o som das orquestras e big bands norte-americanas sentado no chão da sala de sua casa. Certa vez, quando nasceu sua sobrinha, João anunciou aos amigos que iria afinar o violão e rumaria para a maternidade para tocar uma música no ouvido da recém-nascida. Acharam que era brincadeira, mas Bubi o acompanhou na insólita serenata.

Muitos amigos perceberam que João tocava violão com um elástico amarrado ao dedo mindinho e deste ao pulso, para imobilizar. Ficava fazendo uma espécie de ginástica com aquilo. “Os acordes eram diferentes. Nós tocávamos um pouco de violão, mas através das posições tradicionais. Ele já tocava utilizando acordes compostos por sétimas, por nonas. Acordes mais dissonantes. Um lá maior comum seria executado por ele, por exemplo, com sétima maior. Ele falava que estava estudando as harmonias e que sua permanência em Diamantina era para preparar um disco. Dizia que estava harmonizando as músicas e iria gravar”, contou Marina Felício Silva, uma amiga de João, em 2001.

“Ele vivia com o livro O Pequeno Príncipe, de Saint Exupéry, debaixo do braço, sobre o qual falava com as pessoas”, contou Mário Ângelo de Almeida. João também elogiava o verso livre de Carlos Drummond de Andrade, de quem sabia de cor alguns poemas e possuía o livro O Fazendeiro do Ar. “Percebi, relacionando a sua música com os estudos literários, que ele buscava a ruptura com a estrutura musical anterior e encontrava a dissonância da poesia de Drummond, Oswald, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e outros”.

“Em determinado dia, João Gilberto me levou até sua casa, na Praça do Mercado, para me mostrar uma coisa. Sentamos, ele tocou um pouco e me disse: – Randolfo! Esse ritmo é criação minha. Ninguém no mundo possui essa batida, apenas eu. Você está escutando aqui hoje, e vai escutar muitas vezes mais”, declarou, a Randolfo Lopes Canuto.

Os depoimentos sobre João foram colhidos durante dois anos, ainda lá no início do processo de feitura do livro, conta o autor, Wander Conceição. “Acabou sendo acertado ter feito isso rápido, porque quase todos já faleceram”, revela. “Mas, a partir do momento em que percebi que teria que contextualizar, o livro foi tomando outro rumo. Outros tantos elementos foram surgindo além de João. Como não tive patrocínio, nem uma instituição que me bancasse, levei 20 anos para concluir a pesquisa e a escrita. Aí passei mais 2 anos tentando patrocínio, até perceber que não iria conseguir, então resolvemos fazer essa edição e pagar com a venda dos exemplares”.

“A questão específica do ritmo é uma coisa que João Gilberto já tinha com ele internamente”, salienta o autor do livro. “Diamantina ofereceu sossego e reclusão para ele desenvolver uma coisa que já o incomodava. Mas a forma como Ruy Castro coloca no livro dele é que fica muito estranha. Por exemplo: ele dá uma entrevista para Marcelo Campos, que é um cara que escreveu um pouco sobre a passagem de João por Porto Alegre, e fala o seguinte: ‘Se João Gilberto fosse para Diamantina ou para a Lua, seria a mesma coisa’. Ou seja: isso aí, quem lê dessa forma um depoimento assim, não imagina que Diamantina tivesse todos esses valores que eu levantei. Ela não era uma cidade qualquer, até porque a pujança do diamante fez com que ela tivesse uma cena cultural extremamente desenvolvida desde a época colonial no Brasil. (Para Ruy Castro) Diamantina não teria nem condições de ter a percepção dessas coisas todas. Esse é um ponto. O outro ponto é que, na parte rítmica, harmônica ou melódica, Joãozinho foi buscar isso na música erudita. Por isso o capítulo onde eu mostro que foi em Minas que se fez uma música de extrema qualidade, próxima da que se fazia na Europa, e isso foi para o Rio de Janeiro. Assim como os fundamentos da bossa também foram. Mas Minas tem uma influência grande. Eu vejo o Rio como um catalisador. Num País extenso como o nosso, a cultura acaba indo para o Rio”.

“João Gilberto tentou introduzir essas músicas, mas, em Diamantina, não aceitavam. Na realidade, desde o Rio de Janeiro já não aceitavam, tanto que, quando ele começou a aparecer, foi em São Paulo. A gente tem a impressão que ele caiu numa fossa e foi para Diamantina para melhorar de uma depressão, por não conseguir ser compreendido”, afirma Mário Angelo de Almeida.

O Acayaca do título do livro é o nome de um clube de Diamantina. A partir desse clube, e de outros, a cena da Jovem Guarda encobriu as outras manifestações do período, e o livro também recupera os destaques jovens desse outro período, os conjuntos de iê-iê-iê de Diamantina, como Os Jetsons, Os Diamantinos, Le Cherry, The Trump’s, Os Continentais, The Beatles Girls. Joãozinho, o violonista boa-praça que não bebia, amava Ary Barroso e só tomava refrigerante, voou para muito longe, mas o que é quase unânime nos depoimentos é que manteve enquanto pode as amizades daquelas temporadas. E levou sua batida única na bagagem.

Desafinado – das cinzas da Acayaca à bossa-nova. De Wander Conceição. Mazza Edições, 636 páginas 165 reais (taxa de envio de 17 reais).

 

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