"Memória Sufocada", que estreia nos cinemas, faz a ponte entre o passado da ditadura e o presente - Foto: Reprodução

No exato dia em que o ex-presidente Jair Bolsonaro pisa no País, depois de um retiro nababesco de três meses em Orlando, nos Estados Unidos, o filme Memória Sufocada estreia nos cinemas brasileiros. A produção não trata de joias, furtadas ou subtraídas do patrimônio público, mas de vidas que foram assassinadas, torturadas ou violentadas pela ditadura militar. Bolsonaro e seus seguidores são presenças fantasmagóricas nessa história, que é uma revisita ao passado, mas busca a todo tempo conexões com o presente.

Gabriel Di Giacomo dirigiu esse documentário com base em depoimentos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), essencialmente o ponto de virada para a ressurgência da direita no Brasil. Depois de décadas apaziguado com a Nova República, o País mergulhou novamente numa aventura populista como reação dos conservadores ao que eles consideraram “excessos” da CNV, que passou a limpo as atrocidades cometidas pelos militares durante os anos 1960 a 1980.

No longa, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, único militar condenado como torturador durante a ditadura, aparece ora depondo na CNV, ora sendo exaltado por Bolsonaro, em pronunciamento midiático feito no dia da cassação do mandato de Dilma Rousseff. Vítimas da ditadura, que também prestaram depoimentos nas sessões da comissão da verdade, falam com todas as letras de como o aparato do Exército foi utilizado para aniquilar os adversários do regime militar. Sempre foi tortura, embora há quem ainda acredite que a violência política não existiu no Brasil.

É sintomático que o golpe militar continue sendo exaltado pelos bolsonaristas na atualidade, que clamam por “intervenção militar constitucional” e que tais. E Memória Sufocada faz questão de traçar esse paralelo entre o antes e o depois, numa clara intenção de mostrar que fake news e desinformação já eram usadas como tática para vencer a disputa de narrativas. Com pesquisas feitas na internet, que acabam sendo também propositalmente apresentados ao espectador nesse jogo de passado que justifica o presente, o documentário mostra as manipulações da verdade que eram feitas pelos governos militares para vender e propagandear uma imagem de normalidade institucional no País.

Giacomo se utiliza de um recurso questionável de mimetizar um tempo ao outro, interpondo imagens de manifestações bolsonaristas, descolorizadas e sequencialmente, com cenas da época da ditadura. Esse truque busca induzir o público com o argumento de que Bolsonaro existe, porque houve um período sangrento que o justifica. O diretor criou o site memoriasufocada.com.br, com materiais extras para ajudar o público a revisitar o passado com mais e melhores informações.

O diretor de Memória Sufocada acerta, com folga, ao trazer à tona imagens que sua equipe encontrou na pesquisa feita em documentos todos públicos, disponíveis na internet, mas ainda pouco assistidos. Por elas, fica evidente que o Brasil optou por ignorar o passado trágico, sem nunca ter feito uma reparação de fato, como aconteceu, por exemplo, com a Argentina, vide o belíssimo Argentina, 1985.

A construção sobre a imagem que o brasileiro faz da ditadura ainda é uma obra em construção, e não é à toa que Bolsonaro trabalhou todos seus mandatos como parlamentar e presidente nessa mesma lógica de enaltecer os militares e valores conservadores. Apesar da facilidade com que o brasileiro tem para virar a página da História, Memória Sufocada estreia num momento oportuno para passar o passado a limpo. E, para quem não se lembra, 31 de março de 1964 foi o dia que os militares deram o golpe no Brasil.

Memória Sufocada. De Gabriel Di Giacomo. Brasil, 2023, 76 mins.
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