A noite dos Oscars de 2024 foi a mais política dos últimos anos. Escancarou as estratégias da guerra cultural contra a classe artística ao expressar, ao vivo e improvisadamente, um gigantesco apoio, feito de aplausos e sorrisos, à intervenção mais feroz da noite, a do apresentador Jimmy Kimmel. Quase ao final da premiação, Kimmel leu uma presumível mensagem crítica postada na rede TruthSocial (uma plataforma de mídia social criada pelo Trump Media & Technology Group em 21 de fevereiro de 2022 apenas para expor o pensamento de extrema direita do seu mantenedor, o ex-presidente norte-americano Donald Trump, para 6 ou 7 milhões de radicais como ele) que tinha o Oscar como um alvo. Parecia uma piada, mas não era.

“Nunca houve um apresentador pior que Jimmy Kimmel nos Oscars. Seu discurso de abertura foi menor do que o de uma pessoa mediana tentando ser aquilo que não é, e nunca vai ser. Livrem-se de Kimmel e troquem por alguém mais reciclado, mas barato, o talento da ABC, George Slopanopoulos (referiu-se assim a George Stephanopoulos, âncora da ABC TV e ex-diretor de Comunicação da Casa Branca, ironizando a falta de discernimento do crítico). Ele poderia tornar todo mundo maior no palco, mais forte e mais glamuroso. Este é um péssimo show politicamente correto e, como tem sido durante anos, desarticulado, chato e injusto. Porque não dão os Oscars a aqueles que o merecem? Talvez assim seus índices de audiência e indicadores de televisão retornem das profundezas. FAÇAM A AMÉRICA GRANDE NOVAMENTE”. Nessa altura, todos riram.

Kimmel então prosseguiu: “Blá blá blá… Ok, agora vejam se vocês conseguem adivinhar o ex-presidente que acaba de postar isso no TruthSocial. Alguém? Não? Bem, agradeço a você, presidente Trump. Obrigado por você ter nos assistido, estou surpreso que você ainda esteja aí – já não está na hora de você estar na cadeia?”.

O apoio maciço a Kimmel, nessa hora (visto nos rostos dos atores e atrizes e diretores e diretoras) ratificou a jornada de polarização que o mundo vive nesse momento. A guerra aberta por Trump contra o direito de livre expressão, a cultura, as artes, estratégia da extrema direita contra os artistas (que subsidiou aquela que Bolsonaro tentou implementar no Brasil durante seu mandato, de criminalização, desmoralização, perseguição econômica e censura) traçada por “gurus” como Steve Bannon, estava escancarada em um dos maiores eventos midiáticos do planeta. Kimmel participou de sua quarta cerimônica como apresentador da noite.

Foi o Oscar mais político dos últimos anos. E, desta vez, não somente pela assimilação de ativismos afirmativos ou pela abertura geocultural, mas pela liberdade de expressão que permitiu em relação às conflagrações mais dolorosas de nossa época, a guerra entre Rússia e Ucrânia e a de Israel contra o povo palestino, rompendo diques de contenção de atitudes críticas e independentes. Superastros da música e do cinema, como Billie Eilish e Mark Ruffalo, ostentavam broches vermelhos em apoio a um cessar-fogo na Faixa de Gaza, sob bombardeio e ataques de Israel há 130 dias, com mais de 12 mil crianças mortas. Havia protestos também do lado de fora do Kodak Theater, um dos lugares onde a cerimônia dos Oscars era realizada, com centenas de manifestantes pedindo o fim do massacre.

Ao receber seu prêmio de Melhor Filme Estrangeiro, o britânico Jonathan Glazer, o diretor de Zona de Interesse, filme baseado em uma história do campo de concentração nazista em Auschwitz (baseada em romance de Martin Amis), também chamou atenção para o massacre no Oriente Médio. Subindo ao palco com o produtor James Wilson, Glazer, que é judeu, afirmou:

“Todas as nossas escolhas são feitas para refletir e nos confrontar com o presente. Não só para dizer ‘olha o que eles fizeram’, mas também ‘olhem para o que estamos fazendo agora’. Nosso filme mostra que a desumanização nos conduz para o pior”, disse. Agora mesmo nós estamos parados aqui como homens que negam seu judaísmo e o Holocausto sendo sequestrados por uma ocupação que empurrou para o conflito tantas pessoas inocentes, sejam elas as vítimas do ataque de 7 de outubro em Israel ou o incessante ataque em Gaza”. Ele finalizou dedicando o filme à memória de uma garota que lutou com a resistência polonesa quando tinha apenas 12 anos.

O diretor de 20 Dias em Mariupol, o ucraniano Mstyslav Chernov, fez um duro discurso antiintervencionista ao receber o prêmio de Melhor Documentário no Dolby Theater. Sua fala foi uma das mais cruas e emocionadas. Ele começou dizendo que gostaria de nunca ter tido uma razão para fazer o filme que fez. 20 Dias em Mariupol é uma crônica da própria experiência pessoal do diretor em uma cidade ucraniana cercada pelas tropas russas imediatamente após a invasão ordenada pelo presidente russo Vladimir Putin em fevereiro de 2022.

“Eu gostaria de ter a capacidade de fazer com que a Rússia nunca tivesse atacado a Ucrânia, nunca tivesse ocupado nossas cidades. Eu gostaria de dizer que a Rússia nunca matou centenas de milhares de meus conterrâneos ucranianos. Eu gostaria de libertar todos os reféns, todos os soldados que estão protegendo a terra, todos os civis que vivem agora em suas celas. Mas não posso mudar a história. Não posso mudar o passado”, disse Chernov.

A invasão da Ucrânia pela Rússia também foi lembrada, dessa feita pela própria produção do Oscar, ao projetar na tela uma fala do líder oposicionista russo Alexei Navalny, morto em fevereiro numa cadeia russa, durante o tradicional momento dos obituários do mundo do cinema (o que tornou a intervenção uma manifestação política deliberada). “A única coisa necessária para o triunfo do mal é boas pessoas não fazerem nada”, disse Navalny em um trecho do documentário Navalny, vencedor a categoria de Melhor Documentário em 2023.

A própria vitória de Oppenheimer, que trata da criação da bomba atômica, também demonstra essa tendência de se examinar as fundações da atitude belicista da humanidade, que tem aflorado com fúria nos últimos anos, chegando até a ameçar uma região tradicionalmente mais pacata, como as vizinhas Guiana e Venezuela.

Os Oscars 2024 também abrigaram um pequeno discurso de classe, quesito dos mais negligenciados pelo glamour de Hollywood. Quando o diretor do filme Ficção Americana, Cord Jefferson, subiu ao palco para receber seu Oscar por Melhor Roteiro Adaptado, ele aproveitou o espaço para conclamar os estúdios de cinema a fazerem mais filmes de menor orçamento. “(Esse Oscar) é um atestado de admissão e reconhecimento de que há muitas outras pessoas lá foram que não tiveram a oportunidade que me foi dada”, declarou Jefferson. “Eu entendo que é uma indústria avessa ao risco, mas filmes de 200 milhões de dólares também são um risco. E vocês aceitam o risco assim mesmo. Em vez de fazer um filme de 200 milhões de dólares, façam 20 filmes de 10 milhões de dólares ou 50 filmes de 4 milhões de dólares”, desafiou, advogando pelos excluídos da indústria.

Transmitido no Brasil pela TNT, a noite dos Oscars teve apresentação de Ana Furtado, Aline Diniz como especialista da noite e a atriz Andréia Horta como comentarista. Como de hábito, uma jornada muito adjetivada, histriônica, demasiado instagramática, tietada e pouco eficaz na qualidade da informação e da análise. A desaparição de artistas como Carl Weathers, Jane Birkin, Alan Arkin, Ryan O’Neal e outros gigantes não recebeu nem sequer um comentário, assim como a performance de Andrea Bocelli acompanhado do filho, Matteo. A comentarista Aline, que tem talento e carisma, chegou a se dizer aliviada de não ter seguido a carreira de jornalista para não ter de analisar as situações mais espinhosas da cerimônia.

Os vencedores da noite

Melhor filme: Oppenheimer

elhor diretor: Christopher Nolan – Oppenheimer

Melhor atriz: Emma Stone – Pobres Criaturas

Melhor ator: Cillian Murphy – Oppenheimer

Melhor atriz coadjuvante: Da’Vine Joy Randolph – Os Rejeitados

Melhor ator coadjuvante: Robert Downey Jr. – Oppenheimer

Melhor roteiro originalAnatomia de Uma Queda— Justin Triet, Arthur Harari

Melhor roteiro adaptadoAmerican Fiction – Cord Jefferson

Melhor ediçãoOppenheimer

Melhor filme estrangeiroZona de Interesse

Melhor animaçãoO Menino e a Garça

Melhor curta-metragem de animaçãoWar Is Over! Inspired by the Music of John & Yoko – Dace Mullins, Brad Booker

Melhor maquiagem e penteadosPobres Criaturas

Melhor design de produçãoPobres Criaturas

Melhor design de figurinoPobres Criaturas

Melhores efeitos visuaisGodzilla Minus One

Melhor documentário20 Dias em Mariupol

Melhor documentário de curta-metragemThe Last Repair Shop

Melhor fotografiaOppenheimer

Melhor curta-metragemThe Wonderful Story of Henry Sugar – Wes Anderson, Steven Rales

Melhor somZona de Interesse

Melhor trilha sonora originalOppenheimer

Melhor canção originalWhat Was I Made For? – Barbie

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