Waltel Branco (1929-2018) - foto André Alexandre/editora Banquinho

Em 506 páginas, o livro O Maestro Oculto (ed. Banquinho) resgata uma trajetória riquíssima, mas muito pouco difundida, mesmo nos círculos mais especializados em música brasileira. O maestro oculto do título é o violonista, guitarrista, compositor e arranjador Waltel Branco (1929-2018), paranaense de Paranaguá que colecionou um rol fabuloso de histórias sem jamais se colocar (e/ou ser colocado) na condição de protagonista. Entre os artistas que se relacionaram profissionalmente com ele, alguns em intimidade e profundidade, podem ser listados Radamés Gnattali, João Gilberto, Astor Piazzolla, Jacob do Bandolim, Pérez Prado, Luiz Bonfá, Henry Mancini, Dizzy Gillespie, Quincy Jones, Andrés Segovia, Paco de Lucia e uma lista de nomes que não parece ter fim.

Leia aqui um roteiro da playlist sobre Waltel Branco

O autor do livro, o jornalista paulista radicado em Curitiba Felippe Aníbal, conduz a narrativa com elegância e não chega a especular uma relação direta entre a invisibilidade de Waltel e a cor de sua pele, que reluziu a partir da música erudita, um dos inúmeros obitats em que a branquitude é hegemônica. É difícil comprovar motivos estruturais para que o rosto desse personagem permanecesse em menor evidência em relação aos de seus pares, mas não custa repetir com todas as letras: Waltel Branco era um maestro negro.

Aníbal traz elementos que poderiam situar Waltel, um maestro produtivo tanto no front erudito como no popular e nas fronteiras entre ambos, na condição de um Quincy Jones brasileiro (uma sugestão que aparece no livro pelas palavras do maestro Julio Medaglia) – com a diferença que Jones, também negro, foi uma celebridade musical que furou os bloqueios da invisibilidade nos Estados Unidos.

O jovem Waltel caminha pelas ruas do centro de Curitiba, onde estudou violão clássico, na Escola de Música e Belas Artes do Paraná, e se tornou músico de boates – fotos Editora Banquinho

Notado inicialmente pelo mestre Radamés Gnattali quando ainda morava e trabalhava em Curitiba, Waltel Branco foi conduzido pelo maestro gaúcho por caminhos que o levaram, muito jovem, a conviver e/ou trabalhar com nomes do quilate de Garoto, Pixinguinha, Dolores Duran, Claudio Santoro, Heitor Villa-Lobos, Tito Madi, Sérgio Ricardo, Newton Mendonça, Eumir Deodato, Wilson das Neves… Era apenas o início de uma jornada que, quando encerrada, com a morte de Waltel em 2016, aos 89 anos, traduzia um mapa detalhado de muito do que a música brasileira produziu de melhor no século passado. No currículo de Waltel Branco, constariam episódios marcantes do pré-bossa nova, da bossa nova, e do pós-bossa nova – sem que ele constasse, jamais, entre os formuladores daquele estilo musical que revolucionou a cultura brasileira a partir de 1958.

Waltel ao contrabaixo, entre Ed Lincoln e Miltinho (à esq.), Araken Peixoto e Djalma Ferreira (à dir.)

A primeira fase de êxito profissional de Waltel começou em 1957, quando, já transferido para o circuito de boates do Rio de Janeiro, ele se tornou um dos Milionários do Ritmo. Esse era o nome do conjunto que acompanhava Djalma Ferreira, multiinstrumentista, compositor, arranjador, bandleader e proprietário da boate Drink, um dos redutos fundadores da musicalidade mista e mestiça que hoje se conhece como sambalanço, na confluência entre Copacabana e o Leme, na zona sul do Rio de Janeiro.

As primeiras gravações profissionais de Waltel aconteceram como integrante do bonde Djalma Ferreira e Seus Milionários do Ritmo (com o crooner Miltinho, Ed Lincoln e Araken Peixoto, entre outras formçações), com direito de constar nas fotos do conjunto nos suingados álbuns Drink (1958), Depois do Drink (1959) e Drink no Rio de Janeiro (1959), lançados pelo selo independente Drink, fundado por Djalma. Em 1959, tocou guitarra no Quinteto de Dalton, do compositor e saxofonista Dalton Vogeler.

Segundo o biógrafo Felippe Aníbel, o sambalanço “Lamento” (1958), creditado a Djalma Ferreira e ao tenente-coronel do Exército e compositor Luiz Antônio, teria assinatura também de Waltel, que nunca reivindicou a co-autoria

No mesmo ano de 1957, o violão aproximou Waltel de outro morador do pensionato em que ele habitava, em Copacabana: o ainda desconhecido João Gilberto. Eles se tornaram colegas de quarto e, entre idas e vindas, mantiveram vínculos de amizade e de trabalho até que a morte os separasse (João morreria menos de oito meses depois do parceiro, em 2019).

Pouco perceptível ao olho púbico, o elo entre João e Waltel foi a ponte entre duas ilhas que se separaram (ou nunca chegaram a se unir), uma delas a dos cariocas brancos zona sul da bossa nova, outra a dos cariocas negros zona norte do sambalanço. Baiano e paranaense, João e Waltel não eram nem isso nem aquilo, e o fato de terem perpetuado o vínculo é uma dessas belezas misteriosas que a música brasileira esconde em suas nervuras. (A propósito, o livro de Felippe Aníbal registra um chiste usado ao longo da vida por Waltel, de que ele também era baiano: da Baía de Paranaguá).

O biógrafo alerta para o fato de que o nome de Waltel Branco não é habitualmente associado ao nascimento da bossa, embora ele estivesse presente nas célebres reuniões coletivas no apartamento da família de Nara Leão. Mas, segundo narra Felippe Aníbal, o futuro papa da bossa nova e o futuro maestro da Rede Globo fizeram juntos um primeiro arranjo para “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, a canção que daria partida ao fenômeno da moda em 1958. Esse arranjo não foi utilizado, mas Waltel estava próximo quando João concebeu e gravou seu LP de estreia, Chega de Saudade (1959), com arranjos de Tom Jobim. Segundo o biógrafo, Waltel apresentou a João o baterista curitibano Guarany Nogueira, que estaria na origem do toque sutil de bateria, à base de vassourinha, adotado pelo baiano como um dos traços constitutivos da batida bossa nova.

Os encontros entre João e Waltel se perpetuariam décadas afora, em madrugadas de telefonemas ou de caminhadas anônimas em praias fluminenses desertas. Um dos episódios de proximidade se deu em 1971, quando João chamou Waltel para conhecer o som de uma turma de jovens que se agrupava em comunidade sob o nome de Novos Baianos. Waltel assinaria o arranjo de “Você Me Dá um Disco?” (1971), do compacto duplo que antecedeu o clássico Acabou Chorare (1972). No futuro, faria arranjos também para o primeiro disco solo de Baby do Brasil, então Baby Consuelo.

João e Waltel voltaram a se trombar profissionalmente quando este desfrutava o status de arranjador e diretor musical prestigiado da Rede Globo e a emissora produzia o musical especial João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, que marcava a volta de João ao Brasil depois de uma década de exílio voluntário, em 1980. Num dos lances flagrantes do semi-anonimato do maestro paranaense, as orquestrações do especial foram atribuídas ao alemão Claus Ogerman, que já havia dirigido João em Amoroso (1977), mas não compareceu com os arranjos do especial global. Na falta do titular, foram elaboradas por Waltel Branco.

Waltel rege a orquestra para João

“Branco nunca soube se o nome de Ogerman foi mantido propositalmente pela Globo e pela Som Livre, como se um maestro gringo pudesse trazer mais prestígio ao produto final. Apesar disso, Waltel não manifestava ressentimentos em relação ao episódio”, interpreta Aníbal no livro. Tampouco há créditos para ele no LP homônimo resultante do especial. Seja como for, uma orquestração célebre e surpreendente dessa ocasião foi a de “Jou Jou e Balangandãs”, de Lamartine Babo, que promoveu o encontro musical até então improvável entre João Gilberto e Rita Lee.

Bossa nova, tropicália, rock e pop embalados num pacote só: “Jou Jou e Balangandãs”

O vínculo dos dois ex-companheiros de quarto de pensão prosseguiu nos palcos do mundo: Waltel era um dos prediletos de João para ser seu maestro em apresentações ao vivo no Brasil e no exterior, em diversas ocasiões ao longo dos anos 1980 e 1990, inclusive em situações dolorosas, de vaias, desistências de subir no palco de última hora e embates judiciais com empresários musicais – todos os casos são relatados em detalhes em O Maestro Oculto. Com João, Waltel assina ainda o arranjo de cordas de outra colisão improvável: a conversão em bossa nova de “Me Chama” (1984), rock-balada de Lobão, elaborada para integrar a trilha sonora da novela Hipertensão (1986), quando Waltel já deixara de ser o homem forte das trilhas sonoras das novelas globais.

De volta à virada dos anos 1950 para os 1960, enquanto a bossa nova se desenvolvia e partia para o mundo, Waltel Branco se integrou à cena do mitológico Beco das Garrafas, também em Copacabana, onde o samba-jazz seria o formato predominante, como numa “sofisticação” dos teores pop do sambalanço de gafieira do Drink e vizinhanças. Convivendo com músicos como Raul de Souza, Paulo Moura, J.T. Meirelles, Dom Salvador, João Donato, Airto Moreira, Luiz Eça, Hélcio Milito, Osmar Milito, Oscar Castro Neves, Sergio Mendes e muitos etc., Waltel atuou nesse período como guitarrista de estúdio em discos como A Suave Mariza (1959), de Marisa Gata Mansa, gravando a então inédita “A Noite do Meu Bem“, de Dolores Duran (que morreria antes do lançamento do extraordinário samba-canção), e nos LPs Sax Voz (1960), divididos entre Elizeth Cardoso e o saxofonista Moacyr Silva. Gravou também como membro da orquestra de Lyrio Panicali, em trabalhos como Sonho e Esperança (1961), de Tito Madi.

Também colega de Beco das Garrafas, a iniciante Elis Regina gravou a melosa “Canção de Enganar Despedida“, uma composição de Waltel com o parceiro Joluz, em seu desengonçado segundo álbum, Poema de Amor (1962). Entre outros que gravaram os primeiros e despretensiosos sambalanços compostos por Waltel estão Carminha Mascarenhas (“Ciúme, Teu Mal“, 1961), Telmo Soares (“Seresta de Gato“, 1962, decalcado n'”O Pato” de João Gilberto), Moacyr Silva (idem), Marisa Barroso e Astor Silva (“Brincando Gostei“, 1963), Francineth (“Meu Mundo É Você“, 1963), Nelsinho (“A Flor do Amor“, 1963), The Bossa Nova Modern Quartet (“Brincando Gostei” e “Beduíno“, 1963), o futuro produtor de samba Rildo Hora (“Menino João“, 1964) e Bossa Três (“Sambete Nº 4“, 1965), Copa Combo (“Samba do Bituca“, 1969) e The Boogaloo Combo (“Pela Praia, Pensando em Ti“, 1970), além da cantora norte-americana Peggy Lee (“An Empty Glass”, 1966, versão e inglês para uma parceria de Waltel com Luiz Bonfá).

“Samba Toff”, de Orlandivo e Roberto Jorge, integrou o primeiro álbum solo de Waltel

Foi nessa fase que Waltel gravou um primeiro LP creditado unicamente a ele, Guitarras de Fogo (1962), em formato instrumental e dançante, aos moldes dos Milionários do Ritmo. Produzido pelo jovem Hermínio Bello de Carvalho, o segundo LP solo, Violão/Recital (1965), seria inclinado à música erudita e colocaria lado a lado composições de Villa-Lobos, Guerra Peixe, Luiz Bonfá e Waltel Branco. Como artista, o maestro repetiria a fórmula nos álbuns Músicas do Século XVI ao Século XX (1968), Recital (1976), Violão em Dois Estilos (1980, dividido com Rosinha de Valença) e num álbum de temas eruditos em 1982. Em todos esses, exercitou sua paixão por Johann Sebastian Bach e interpretou versões sublimes para a “Bachiana Nº 5” de Villa-Lobos. Confirmando a sina de anonimato do maestro, nenhum desses álbuns está disponível nas plataformas digitais.

A “Bachiana Nº 5” de Villa-Lobos ao violão, na versão de 1980

Funcionário da gravadora independente Musidisc, Waltel Branco iniciou atuação nos bastidores, participando das táticas do proprietário Nilo Sérgio. Juntos, criaram grupos de fantasia com de fibra que, contratados por outras gravadoras, não podiam ter seus nomes impressos nas capas dos discos da Musidisc. Waltel arranjou e regeu, por exemplo, diversos discos da orquestra-fantasma Românticos de Cuba, que atacava de versões instrumentais de líderes das paradas musicais, tipo Sucessos de Roberto Carlos (1979). Foi com Nilo Sérgio e a Musidisc também que Waltel integrou uma tentativa de ressuscitar o pré-bossanovista Trio Surdina (sem ros componentes originais Garoto e Fafá Lemos). O álbum Trio Surdina em Bossa Nova (1963) trouxe a primeira gravação de “Samba em Prelúdio“, do companheiro de violão, bossa e afro-samba Baden Powell.

Paralelamente, Waltel gravava como integrante de diversos grupos instrumentais de samba-jazz, como Os Cobras, num álbum homônimo de 1960 (no qual constou sua primeira composição gravada, “A Flor do Amor“, com letra de Joluz, regravada no ano seguinte por Elizeth Cardoso); Os Saxsambistas Brasileiros, em Saxsambando (1960); Os Copa 5 de J.T. Meirelles, em O Novo Som (1965); Bossa Brass, no LP A Música Maravilhosa de Antonio Carlos Jobim (1966); e Turma do Bom Balanço (A Turma do Bom Balanço!!!, 1965).

Nos desdobramentos da movimentação no Beco das Garrafas, participou do álbum de estreia do baterista Dom Um Romão, Dom Um (1964), inclusive como autor das faixas afrocentradas “África” e “Dom Um Sete“. Em consequência, foi um dos arranjadores de Flora É M.P.M. (1964), LP de estreia da cantora Flora Purim, então casada com Dom Um Romão. É nesse ano de 1964 que Waltel, que até aqui atuava em disco como violonista, guitarrista e contrabaixista, começa a aparecer como arranjador e é pela primeira vez classificado como “maestro” na contracapa de um LP (o de Dom Um), aos 36 anos.

Felippe Aníbal tenta demonstrar a improbabilidade de que seja verdadeira a versão difundida entre fãs do som Waltel Branco de que o maestro fosse o verdadeiro autor e/ou arranjador do antológico “The Pink Panther Theme” (1964), assinada pelo maestro estadunidense Henry Mancini. Waltel relatava andanças pelos Estados Unidos durante os anos 1960, nas quais travou contato com o brasileiro exilado Laurindo Almeida, outro precursor da bossa nova (que integrara a orquestra de jazz de Stan Kenton e compunha para filmes de Hollywood), com o compositor e arranjador norte-americano Stanley Wilson, pioneiro das grandes trilhas sonoras do cinema, e, por intermédio desse, com o maestro russo Igor Stravinsky e, finalmente, com Henry Mancini.

Waltel liderou Dom Salvador, K-Ximbinho e Meirelles na versão sambalanço do tema da Pantera Cor-de-Rosa

Segundo o raciocínio de Aníbal, não é provável que Waltel estivesse nos Estados Unidos durante a confecção do filme A Pantera Cor-de-Rosa (em 1963), cuja trilha foi assinada por Mancini. Para ele, Waltel teria se enroscado em versões contraditórias a partir da confusão causada pelo fato de que ele criou, sim, o álbum Mancini Também É Samba, com versões sambalançadas de “The Pink Panther Theme”, “Peter Gunn”, “Moon River” e outros temas cinematográficos do norte-americano, mas lançado apenas em 1965 (ou 1966, como afirma o biógrafo), pelo selo independente pernambucano Mocambo.

Um pouco à moda dos grupos-fantasma da Musidisc, a capa de Mancini Também É Samba não contém créditos, e apenas no rótulo do LP aparece menção à “orq. direção de Waltel Branco” – entre os integrantes da orquestra, estão os ases da época Aurino, Cipó, Dom Salvador, Edson Maciel, K-Ximbinho, Meirelles, Neco, Pinduca (o percussionista, não o mestre paraense), Rubens Bassini e Victor Manga, entre outros.

A capa sem identificações de “Mancini Também É Samba” (1966)

Episódios similares, que o biógrafo não consegue confirmar nem descartar, envolvem figuras da alta política que o maestro teria conhecido pessoalmente, em especial Fidel Castro antes da Revolução Cubana (“era macumbeiro, tocava atabaque muito bem, andava sempre de branco”, afirma Waltel em entrevista ao autor, “era como um pai de santo, o Pérez Prado que conhecia é que me apresentou”) e Osama Bin Laden antes da implosão das Torres Gêmeas (nos anos 1990, em Foz do Iguaçu, no Paraná).

Nos primórdios em Cuba, para onde seguiu pela primeira vez acompanhando a cantora Lya Ray, quando ainda trabalhava em Curitiba, Waltel afirmava ter trabalhado com Pérez Prado, Mongo Santamaria e Chico O’Farrill, referências do mambo e da salsa. Nos dias norte-americanos, o biógrafo documenta encontros relatados por Waltel com pesos-pesados como Nat King Cole e Lalo Schifrin, mas afirma não ter encontrado comprovação de que tivessem de fato ocorrido, tal como nos casos de Stravinsky, Stan Kenton, Stanley Wilson, Pérez Prado, Mongo Santamaria, Chico O’Farrill e o indiano Ravi Shankar.

Fica no ar uma aura cascateira por sobre Waltel Branco, mas o biógrafo deixa de observar que o brasileiro, àquela altura, não possuía notoriedade considerável nem no Brasil nem em Cuba nem nos Estados Unidos, a ponto de que pudesse ter constado em reportagens de jornal, passagens por universidades ou fichas técnicas de apresentações ao vivo. Fato inquestionável é que, após o convívio (suposto ou não) com os trilheiros Laurindo Almeida, Stanley Wilson e Henry Mancini, Waltel estava pronto para assumir posto similar na Hollywood brasileira.

O nome Waltel Branco deixou de aparecer nos créditos de composições e gravações na segunda metade da década de 1960, por um motivo simples. Vendo-o tocar no grupo de ninguém menos que Dizzy Gillespie numa boate de Nova York, o empresário Roberto Marinho o convidou para trabalhar na rede de televisão que estava idealizando e iria ao ar pela primeira vez em abril de 1965. A ida de Waltel para a Rede Globo, antes mesmo da estreia, selou para sempre seu futuro artístico.

Ainda tímido, o envolvimento inicial do maestro da construção da indústria global se deu no contexto da explosão dos festivais de música popular na segunda metade da década. Diante da hegemonia da TV Record nessa área, a Globo passou a bancar em 1967 a realização do Festival Internacional da Canção (FIC), e Waltel participou desse momento histórico fazendo arranjos e orquestrações para algumas das canções concorrentes, além de se inscrever eventualmente como compositor. O único de seus arranjos de festival a ir adiante nas competições, em 1970, foi “Encouraçado“, grave canção MPB composta por Sueli Costa e Tite de Lemos e interpretada pelo futuro cantor soul nascido no Paraguai Fábio, que ficou em terceiro lugar na edição vencida por “BR3”, com Toni Tornado.

Realizado em etapas nacional e internacional, o FIC aproximou Waltel de artistas estrangeiros concorrentes, como a francesa Françoise Hardy (foi dele o arranjo de “À Quoi Ça Sert?” para o FIC de 1968), ou convidados para compor o júri, como o chileno Lucho Gatica e os argentinos Lalo Schifrin, Astor Piazzolla e Amelita Baltar. Aníbal cogita, mas não fecha questão sobre um possível affair entre Françoise e Waltel – se de fato aconteceu, é mais um caso de namoro entre astros negros ascendentes (como Wilson Simonal, Jorge Ben e Toni Tornado) e mulheres brancas, loiras e belas, que em 1970 enfureceria os militares ditadores de plantão e suas esposas defensoras da tradição religiosa, da família “de bem” e da propriedade privada – todas flagrantemente racistas.

Waltel Branco esteve na origem de uma revolução nas telenovelas da Globo, quando, em 1969, a emissora decidiu passar a valorizar tramas contemporâneas e antenadas com a realidade social brasileira, em detrimento das histórias ambientadas, até então, em épocas passadas e países distantes. Um dos aspectos a serem tratados com cuidado especial seria o das trilhas sonoras das novelas, que passariam a ter temas gravados exclusivamente para cada história.

A Waltel coube logo de início pilotar a criação dos arranjos da trilha de Irmãos Coragem, em 1970, que reuniria gravações da veterana Maysa e dos calouros Tim Maia e Joyce (essa cantarolando belamente uma favorita do maestro, a “Bachiana Nº 5” de Villa-Lobos, ao som de um berimbau – esse também um elemento recorrente nos arranjos de Waltel). A peça que foi à história foi o tema de abertura, “Irmãos Coragem”, composto por Nonato Buzar e Paulinho Tapajós e interpretado epicamente por Jair Rodrigues. Várias composições de Waltel nesse ofício correriam mundo décadas mais tarde, já nos anos 2000, relançadas, compiladas e sampleadas por DJs e artistas estrangeiros – caso, por exemplo, do “Tema da Zorra”, incluído na novela Assim na Terra Como no Céu (1970), lançado no mesmo ano pelo mestre do balanço Waldir Calmon e regravado em 2002 por Domenico Lancellotti no projeto Domenico + 2.

Waltel rege a Orquestra CBD em sua composição “Tema da Zorra” (1970)

Em horas extra-Globo, ainda em 1970, Waltel Branco ajudou a definir os pilares do soul e do funk à brasileira, assinando cinco arranjos de cordas do LP homônimo de estreia de Tim Maia. Não eram quaisquer canções, nem tiveram arranjos quaisquer: “Azul da Cor do Mar“, “Eu Amo Você” (composta por Cassiano), “Cristina“, “Flamengo” e “Risos“. “Waltel gostou tanto do resultado que chegou a se sentir como co-autor da canção. Talvez não seja exagero”, escreve o biógrafo, referindo-se a “Azul da Cor do Mar”.

A partir desse evento, o maestro passou a vestir com arranjos black music canções de artistas negros em busca de um lugar ao sol, como Gerson King Combo (em 1970, ainda como Gerson Combo e A Turma do Soul, pioneira em utilizar o rótulo Brazilian Soul, em íntima conexão com a pilantragem de Simonal), Toni Tornado (a balada soul “Eu Disse Amém“, 1971), Os Diagonais (o LP Cada um na Sua, de 1971, já sem Cassiano, que partia para a carreira solo), Hyldon (em Deus, a Natureza e a Música, de 1976, e Nossa História de Amor, 1977), Miguel de Deus (Black Soul Brothers, 1977), Dom Mita (Mita, 1977) e Tony Bizarro (“Que Se Faz da Vida” e “Como Está Não Faz Sentido“, 1978).

O compacto-fantasma de Airto Fogo

O próprio Waltel Branco teve seu momento “black is beautiful”, num compacto com “Jungle Bird” e “Black Soul” (1974), sob o pseudônimo de Airto Fogo, e no álbum solo instrumental Meu Balanço (1975), outro objeto de culto de DJs de música eletrônica e artistas dos anos 2000.

Waltel teve papel decisivo em outra inovação da Globo no início da década de 1970: foi arranjador de várias das trilhas sonoras encomendadas a duplas de compositores de sucesso, que seriam interpretadas por cantores escalados pela rede de TV, geralmente desconhecidos. Esse é o momento em que a Globo fundou gravadora própria, Som Livre, e ainda não havia firmado acordos para utilizar fonogramas das estrelas contratadas pelas multinacionais (formato que se tornaria hegemônico com o produtor Mariozinho Rocha, na fase que sucedeu Waltel e os produtores musicais globais Guto Graça Mello e Eustáquio Sena). Waltel trabalhou no desenvolvimento de projetos de cantores como Jacks Wu, nascido na China, Carlos Walker ou Denise Emmer, predileta do maestro que, ainda adolescente, surgiu cantando (muitas vezes em francês) em trilhas dos pais novelistas Janete Clair e Dias Gomes.

Misteriosa e supostamente francesa, Denise Emmer emplacou “Alouette” como tema do casal protagonista da novela Pai Herói (1979), escrita por sua mãe Janete Clair

Todas essas trilhas contêm uma sonoridade original e típica daquele tempo, forjada em grande medida pelos arranjos de Waltel, fossem seus compositores Antonio Carlos & Jocafi (O Primeiro Amor, 1972, e Supermanoela, 1974), Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle (Selva de Pedra, 1972, e Os Ossos do Barão, 1973), Roberto Carlos e Erasmo Carlos (O Bofe, 1972) ou Baden Powell e Paulo César Pinheiro (O Semideus, 1973).

O LP autoral Waltel Branco Apresenta Músicas da Novela Assim na Terra Como no Céu (1970), lançado e cultuado na Europa

Outro território muito habitado pelo maestro foi o samba. Entre os elementos introduzidos por Waltel Branco na sonoridade da música global destaca-se, ainda que quase silenciosa, a entrada dos atabaques do candomblé em arranjos variados, fossem os sambas de batuque do conjunto Brasil Ritmo ou as trilhas sonoras de novelas adaptadas de romances históricos de Machado de Assis, José de Alencar e Bernardo Guimarães para o horário das 18 horas (um exemplo é “Rumpi”, em A Moreninha, 1975).

O “lerê, lerê” imaginado por Waltel Branco torna-se um marco semi-silencioso da luta antirracista no Brasil

O apogeu dessa tendência se deu na trilha sonora da novela Escrava Isaura (1976), quando Waltel fez o arranjo antológico à base de atabaques de “Retirantes”, canção inédita de Dorival Caymmi sobre versos de Jorge Amado: “Vida de negro é difícil/ é difícil como o quê”. Nessa trilha lançada em compacto triplo estão os arranjos em estado de graça da obra-prima “Banzo” (1976), interpretada pelo trio baiano Os Tincoãs; de “Mãe Preta“, dos gaúchos Caco Velho e Piratini, gravada em 1954 pela portuguesa Amália Rodrigues, mas sem a letra original de denúncia racial, e retomada pelo Coral Som Livre; e de “Nanã“, do maestro (negro) Moacir Santos, em levada black power pela Orquestra Som Livre (ou seja, por Waltel Branco).

A verve afro-religiosa de Waltel chegou ao máximo no compacto duplo O Rei da Macumba (1978), com arranjos para os pontos de candomblé compostos pelo veterano J.B. de Carvalho. Num registro mais pop, arranjou o disco de composições de Fernando Santos inspiradas no candomblé, também em 1978.

Entre os inúmeros arranjos de Waltel para a Globo, brota uma diversidade que vai da tentativa de entrada de Vanusa na tradição MPB com “Amigos Novos e Antigos” (1975), de João Bosco e Aldir Blanc, à bossa nova easy listening de Sergio Mendes (e Gracinha Leporace) em “Horizonte Aberto” (1979), tema de abertura da novela Os Gigantes, e à disco-black music ruiva de Rita Lee em “Eu e Meu Gato” (1978), abertura de O Pulo do Gato (os créditos a Waltel não aparecem no álbum Babilônia, de Rita, que inclui “Eu e Meu Gato”). E não era só isso. Arranjos, orquestrações e/ou composições de Waltel Branco constroem hegemonia na Globo por um vasto período, passando por programas como Fantástico, os humorísticos Satiricon e Chico City ou os infantis Vila Sésamo (mais uma trilha a cargo dos compositores Marcos e Paulo Sérgio Valle), Globo Cor Especial, Globinho, Sítio do Picapau Amarelo (como diretor musical, já nos anos 1980) e Pirlimpimpim (fazendo o incrível arranjo de “Cuca“, com interpretação de Angela Ro Ro).

O tema de abertura do Fantástico, de 1973, foi composto por Guto Graça Mello e Boni, orquestrado por Waltel e interpretado pelo Coral Som Livre
Dupla formada na Globo e ali restrita, Kris e Kristina cantam a abertura de Chico City
O Sitio do Picapau Amarelo sob direção musical de Waltel Branco, 1981

Às voltas com artistas iniciantes, Waltel travou contato em 1974 com Djavan, que incentivou à revelia de outros diretores globais e a quem presenteou com um violão da Globo, penalizado pelas más condições do violão do artista alagoano. Por convicção e insistência de Waltel, Djavan integraria, com sambas ainda mais ou menos convencionais, as trilhas de Os Ossos do Barão, dos irmãos Valle, e Supermanoela, de Antonio Carlos & Jocafi.

Não era possível então saber, e nisso a invisibilidade do maestro negro favoreceu o curso da história, mas a corrente silenciosa que unia Waltel Branco, veteranos como Elza Soares (que pacificou universos em colisão ao gravar “Rainha de Roda” de Roberto e Erasmo Carlos, para O Bofe) e artistas emergentes como Tim Maia, Djavan e Rosa Marya Collin (bossa-novista que em 1976 ensaiou uma conversão à discothèque sob a batuta de Waltel) constituía algo que hoje chamamos, genericamente, black music brasileira, forjada na solda original entre soul, funk, rock, samba, bossa nova e MPB. Parece pouco aos olhos de hoje, mas era o engajamento antirracista possível nos anos de chumbo, na tela da rede televisiva que sustentava a ditadura civil-militar.

A posição privilegiada no departamento musical da Globo abriu portas novas a Waltel Branco, que passou a fazer arranjos para discos autorais de artistas como Alceu Valença (pilotando as cordas de Molhado de Suor, 1974), Pery Ribeiro (Abre Alas, 1974), o flautista Copinha (Jubileu de Ouro, 1975, de arranjos divididos com o mestre Radamés Gnattali, Copinha e K-Ximbinho), Maria Creuza (emepebizando “Tortura de Amor“, 1977, de Waldick Soriano, entre outras), Carlinhos Vergueiro (“Prendas do Lar” e “Noturno Paulistano“, 1978), João Bosco (o álbum Linha de Passe, 1979, com “Boca de Sapo” e o arranjo original ultrassambista de “O Bêbado e a Equilibrista“), Claudia Telles (“Demais”, 1983), Cauby Peixoto (o hit “Bastidores“, 1980, de Chico Buarque), Jane Duboc (“Cachoeira“, com Oswaldo Montenegro, e “Estrela do Mar”, 1980), Zé Ramalho (o acidentado álbum Força Verde, 1982), Geraldo Azevedo (“Beleza Agreste” e “Rasgo de Lua”, 1982) etc.

Mais obediente às convenções e regras (racistas) do mercado, arranjou uma série de discos de samba, do sambista black power Djalma Dias (Destaque, 1973, e Não Faça Drama… Caia no Samba!, 1974, com “Nada Sei de Preconceito“, de Leci Brandão); do efêmero (e genial) grupo Brasil Ritmo (Balança Povo, 1972), no qual estreou Neném da Cuíca, futuro percussionista histórico da Banda do Zé Pretinho de Jorge Ben; da irmã menos célebre de Beth Carvalho, Vania Carvalho (em “Nelson Cavaquinho“, 1978, de Egberto Gismonti); dos convencionais Diplomatas do Samba; da efêmera Sosó da Bahia

Desse núcleo, a associação de maior sucesso foi uma série de LPs do sambista joia Agepê, desde o inaugural Moro Onde Não Mora Ninguém (1975), passando por afrossambas joia como “Malungo“, “Lenda Nagô” (1977) e “Kiriê” (1981) e por tesouros pop-samba como “Menina de Cabelos Longos” (1977). Muitos desses discos orientados por Waltel eram lançamentos da Som Livre, quando a casa discográfica global começava a investir em artistas contratados para álbuns inteiros.

Balança Povo (1972), do conjunto Brasil Ritmo

Merece menção honrosa nos dias de glória de Waltel Branco, por fim, seu trabalho junto à música que na época foi classificada pejorativamente como “cafona”, com destaque para os arranjos para o cantor e compositor goiano Odair José no álbum Assim Sou Eu… (1972, com o trio jazz-soul-pop Azymuth no acompanhamento classudo e joias da música realmente popular brasileira como “Esta Noite Você Tem Que Ser Minha“, “Eu Queria Ser John Lennon“, “Vida Que Não Para” e a polêmica “Cristo, Quem É Você?“).

Dessa cepa são o loiro Marcus Pitter (do hit “Eu Queria Ser Negro“, 1971) e Evaldo Braga (na série O Ídolo Negro, de sucessos arrasa-quarteirão como “Sorria, Sorria“, 1972), ambos com discurso racial direto, além de Carlos Alberto, Suzana, Waldir Ramos (vendido como “o mito negro” após a morte precoce de Evaldo Braga), o forrozeiro convertido em “brega” Elino Julião, Ismael Carlos… Em clave de crossover e nostalgia, Waltel fez o arranjo de “No Auge do Rock’n’Roll” (1977), para Jerry Adriani. Nos títulos dos trabalhos de Braga e Pitter, aflora mais uma vez a qualidade black music imprimida pelo maestro invisível, que revestia o romantismo exacerbado do primeiro com grandiloquência e a quase-sutileza do segundo com um som aveludado à maneira do maestro “easy listening” (um “cafona” à norte-americana?) Burt Bacharach.

Felippe Aníbal reproduz em seu livro o texto de uma carta enviada a Waltel por Roberto Marinho em 1985, quando a Globo comemorava 20 anos de idade. “Doutor” Roberto cobria o funcionário-padrão de elogios e agradecimentos, no que se poderia ser interpretado como o início da travessia do escorpião pelo rio no lombo do sapo: a posição consolidada de Waltel Branco na Rede Globo ruía lentamente, a bordo, principalmente, do advento do pop de teclados e sintetizadores eletrônicos domados pelos músicos e arranjadores Lincoln Olivetti e Robson Jorge (esse, ironicamente, contou com arranjos de Waltel em seu compacto duplo de estreia, entre o funk e a emergente discothèque, em 1976).

Como pontua a biografia, o Departamento Musical da Globo, onde Waltel Branco pontificara e criara como ninguém mais, foi extinto definitivamente em 1991 – a produção de música original passaria a ser feita fora dos domínios da Rede Globo. “Todos os instrumentistas, copistas e maestros tiveram seus respectivos contratos rescindidos. Inclusive Waltel, que estava na casa havia mais de 25 anos”, escreve Aníbal. Sintetizadores engoliram as orquestras e Robson & Lincoln decretaram a obsolescência dos orquestradores, dos maestros e das orquestras. Caía por terra uma tradição que acompanhara toda a história da música gravada até ali.

Mesmo num processo de marginalização dentro da indústria, Waltel cometeu breves lampejos no tempo de derrocada, inclusive junto ao pop-rock que nascia e dava as cartas na década de 1980. É dele o arranjo de cordas de um dos maiores sucessos populares de Cazuza, formulado em clave de bossa nova: “Faz Parte do Meu Show” (1988). Banido da Globo, o maestro passou a ser convocado raramente para trabalhos fora dela (em momentos de exceção, fez arranjos para um belo disco de mantras indianos do trio Homem de Bem, em 1989, e para o baladão “Tinha Que Acontecer“, da sertaneja Roberta Miranda, em 1993). Tornou-se, nas palavras do biógrafçomo, um “maestro errante”, e acabou por voltar para Curitiba, onde se reintegrou à cena local de músicos e intérpretes, conviveu e fez parceria com a poeta Alice Ruiz (autora da ótima letra de “Canção pra Curitiba“, 2000) e fez o périplo de trabalhos de ensino, apresentações e projetos financiados pelo poder público paranaense.

Ao abandono por parte da indústria televisiva e musical de que ele fora peça essencial, corresponderam cenas tristes de abandono familiar, que o livro descreve em sua parte final sem dourar a pílula para o maestro, que seguiria seus dias distante da família e em constantes dificuldades financeiras. Sem ter ponto para registrar diariamente pela primeira vez em mil anos, ele conseguiu gravar alguns poucos álbuns instrumentais e inclinados ao erudito nos últimos anos de vida – o lindo, sereno e afrocentrado Kabiesí (1994), Naipi (2000), Mestre Waltel (2004, com a Orquestra à Base de Sopro de Curitiba) e 101 Músicas (2016).

Kabiesí (1994) incorpora composições preciosas como “Ninho de Cobra”, “Maha Mantra para Christian”, “Paranaguá” e “Kabiesí Brasil”

A medida superlativa da produção de Waltel Branco é dada na excelente biografia pela admiração e surpresa de Felippe Aníbal diante do modo como o maestro compunha seus arranjos e orquestrações. Muitas vezes, Waltel prescindia de instrumentos para fazer suas construções musicais. Passava diretamente para o papel sons que imaginava dentro de sua cabeça. Não é uma história banal, sob nenhum ponto de vista.

Waltel Branco no final da vida – fotos Editora Banquinho
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