“Esse nosso apartheid é sem termo/ temos que brigar por outra abolição”, cantam em uníssono dois representantes de ponta de tempos e movimentos musicais brasileiros bem distintos, o carioca Chico Buarque e o paulistano Emicida. Trata-se de “Senzala e Favela”, faixa-título de recém-lançado álbum póstumo em honra a Wilson das Neves (1936-2017), composto em sua maioria por parcerias do baterista carioca com o letrista Paulo César Pinheiro, várias delas inéditas. “Chicote ou zunido de bala/ favela ou senzala, não faz diferença/ me parece que em toda novela/ senzala ou favela é a nossa sentença”, denunciam os versos de Pinheiro, rascantes e soturnos como de hábito.

Com Chico, Wilson das Neves tocou desde 1982 até o fim de seu tempo por aqui. De Emicida, ficou amigo nos anos 2010, cantando com ele o controverso rap “Trepadeira” (2013) e co-assinando postumamente o lírico rap-canção “Quem Tem um Amigo (Tem Tudo)” (2019), gravado pelo rapper ao lado de Zeca Pagodinho. O álbum foi produzido por Alexandre Kassin, parceiro transgeracional de Wilson na Orquestra Imperial, e pelo baixista Jorge Helder, companheiro do artista na banda de Chico e no retorno internacional d’Os Ipanemas, um dos primeiros grupos integrados pelo baterista, que lançou um solitário LP de samba-jazz em 1964 e voltou à tona em 2001, pelos braços da gravadora britânica brasilianista Far Out. O arco formado pelos nomes citados até aqui dá dimensão dos laços de afeto que fizeram a história discreta (e/ou historicamente invisibilizada) de Wilson das Neves e que constituem a liga coletiva de Senzala e Favela.

O álbum preserva a imagem sambista de Wilson, embora a segunda faixa seja já “O Dia em Que o Morro Descer e Não For Carnaval”, um samba-rap envenenado interpretado por Marcelo D2 e BNegão, sob um título que evoca a um só tempo as canções de protesto dos anos 1960 e o levante de consciência negra que pressiona o Brasil a evoluir neste início de século 21. “Ninguém vai ficar pra assistir o desfile final/ na entrada a rajada de fogos, pra quem nunca viu,/ vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil/ guerra civil”, delineiam os versos pré-Quentin Tarantino (lançados originalmente por Wilson em 1996). “Ninguém sabe a força do pessoal”, adverte o samba-rap de libertação póstuma de Wilson das Neves.

Não foi bem assim enquanto ele esteve vivo e trabalhou como músico de estúdio e como acompanhante em shows de grandes nomes da música. O samba não foi exatamente o dom inicial do baterista, que compôs orquestras das TVs Tupi e Globo e durante os anos 1960 atuou em múltiplos conjuntos de samba-jazz, variação instrumental envenenada da bossa nova, menos branca e mais suburbana que a da turma de Ipanema. Nesse período, tocou com o homem-baile Ed Lincoln, integrou Os Ipanemas (liderados pelo maestro negro Astor Silva), Os Catedráticos e Os Gatos (ambos do jovem bossa-novista Eumir Deodato, o segundo com o samba-jazzista Durval Ferreira) e um tal The G/9 Group, feito para gringo ouvir (com Dom Salvador e Pedro Santos).

LP/CD ELZA SOARES - BATERISTA: WILSON DAS NEVES
Em 1968, Wilson toca “Balanço Zona Sul”, “Garota de Ipanema”, “O Pato” e “Deixa Isso pra Lá” para Elza cantar

Em 1965, participou do mitológico álbum Coisas (1965), do maestro afro-pernambucano Moacir Santos. Iluminado por Elza Soares, o rosto e o nome de Wilson debutaram em capa de disco em 1968, num álbum incendiário de samba-jazz assinado por Elza e pelo “baterista Wilson das Neves”. Na década de 1960, apenas uma música assinada por Wilson (em parceria com Astor Silva) foi gravada: o afro-samba-jazz “Congo“, no LP de 1964 d’Os Ipanemas.

Prestigiado por Elza, Wilson tocou bateria para uma galeria plural de artistas, que inclui Roberto Carlos, Elis Regina, Wilson Simonal, Carlos Lyra, Elizeth Cardoso, Tom Jobim, Egberto Gismonti, Taiguara, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Nara Leão, Caetano Veloso, Gal Costa, Ney Matogrosso e Sérgio Sampaio, entre muitos.

Elis e Jorge Ben, 1970: até aí morreu (Wilson das) Neves

Quando ainda não trabalhava como motorista de Kombi, Elis, em particular, gravou “Até Aí Morreu Neves” (1970), de Jorge Ben (Jor) – e se pode presumir de quais neves tratava Ben. O balanço de Das Neves figura em clássicos absolutos dos anos 1970, como nos timbales de África Brasil (1976), de Jorge Ben, e na bateria de Lugar Comum (1975), de João Donato (e Gilberto Gil). Deu ritmo à obra de expoentes do samba dos 1970, como Cartola, Nelson Cavaquinho, Clara Nunes, Martinho da Vila, Alcione, Roberto Ribeiro, Beth Carvalho e João Nogueira. Para além do Brasil, ele acompanhou Ella Fitzgerald, Michel Legrand e Toots Thielemans.

Nas horas vagas (digamos assim), Wilson das Neves gravou discos próprios entre 1968 e 1976, a começar por Juventude 2000 (1968), assinado por Wilson Neves e Seu Conjunto e constituído por uma miscelânea de samba-jazz, samba-soul, samba-rock e samba-pop que amalgama leituras instrumentais de afro-samba (“Nanã”, de Moacir Santos, e “Tem Dó”, de Baden Powell), bossa nova (“Wave”, de Jobim), samba-jazz (“Tema pro Gaguinho”, de Dom Salvador), easy listening (“Don’t Go Breaking My Heart”, de Burt Bacharach), tropicália (“Domingo no Parque”, de Gil) e canção “cafona” (“O Amor Está pra Nascer”, de Wanderley Cardoso). O arranjador cearense Geraldo Vespar assina a primeira e a última faixa, o pós-iê-iê-iê “Juventude 2000” e a bem-humorada “O Abominável Homem das Neves“.

A caldeira seguiu fervendo em dois álbuns com arranjos assinados pelo maestro negro Erlon Chaves, Som Quente É o das Neves (1969) e Samba-Tropi – Até Aí Morreu Neves (1970). Na cornucópia do primeiro, couberam Roberto & Erasmo Carlos (“Se Você Pensa“), Jorge Ben (“Zazueira“), Caetano (“Irene“), Dom Salvador (“Sambaloo“, “Tio Macrô“), a soul music de Ashford & Simpson (“California Soul“) e até o standard “Fly Me to the Moon“.

Na Na Hey Hey Him Goodbye - song and lyrics by Wilson Das Neves | Spotify
Samba-tropi: mistura de samba com beat e blues à la Jorge Ben

Em Samba-Tropi, Wilson das Neves aproximou-se como nunca da pilantragem de Wilson Simonal (e Erlon Chaves), o que o baterista explicou tintim por tintim e entre muitas aspas no texto da contracapa: “Samba-Tropi não é nada demais, é apenas como eu chamo essa ‘onda’ que o Jorge Ben está criando e que é uma mistura de samba com ‘beat’ e ‘blues’, e, como eu quero estar sempre por ‘dentro’, prestei atenção, gostei e, junto com essa ‘patota’ de músicos, passamos o ‘embalo’ do Jorge para o instrumental. Acho que vai dar o ‘maior pé’ (‘até aí morreu Neves’)”.

Não deu o maior pé, mas harmonizava com picardia Chico Buarque (“Essa Moça Tá Diferente”), Jorge (“Bebete Vãobora”), Beatles (“Come Together”), Nonato Buzar (“A Feira“), Burt Bacharach (“Raindrops Keep Fallin’ on My Head‘), The Temptations (“Cloud Nine“)… Entre a patota de músicos, filiavam-se os próximos criadores da black music nacional, como Dom Salvador (piano), futuro líder da banda Abolição; José Roberto Bertrami (órgão), futuro Azymuth; Sérgio Barroso (baixo), futuro Banda Black Rio; e Os Diagonais (vocais), do futuro soulman Cassiano.

A derradeira tentativa na direção samba-pop se deu em um segundo O Som Quente é o das Neves (1976), dessa vez mais ligado aos instrumentos do samba tradicional e trazendo inéditos temas cantados (pelo próprio Wilson). Diferentemente do que a capa leva a deduzir, o disco contorna a “pureza” sambista, a bordo de arranjos do pai da matéria acreano João Donato. A mistura ainda orienta o carnaval, com afro-samba de Baden Powell (“Berimbau”), samba afro-cubano made in Brazil (“Mambito de Arake“), sambaflei de Orlandivo (“Unidunitê” e “Os Caras Querem”, ambas parcerias com Donato), clássicos de Heitor Villa-Lobos (“O Canto do Pajé“) e do rock’n’roll (“Rock Around the Clock” e “The Saints Rock’n Roll”, de Bill Haley). Aqui aparecem as primeiras composições de Wilson desde “Congo”: as canções minimalistas “Estou Chegando Agora“, “Que É Isso Menina” e “Sá Nega” e a homenagem instrumental “Tema pra Elizeth”.

Desse momento em diante, o baterista passou 20 anos sem gravar novos álbuns, e só retomou a história interrompida com o CD independente O Samba Sagrado de Wilson das Neves (1996), marcado por duas diferenças notáveis: a adesão integral ao chamado samba “de raiz” e a consolidação como cantor-compositor. Das 14 faixas, 13 são compostas com Paulo César Pinheiro, e “Grande Hotel” inaugura uma nova parceria, com Chico Buarque. Aqui está a primeira versão do samba “O Dia em Que o Morro Descer e Não For Carnaval“, hoje rappeado por D2 e BNegão.

O samba marcará os três álbuns que ainda serão assinados por Wilson das Neves, Brasão de Orfeu (2004), Pra Gente Fazer Mais um Samba (2010) e Se Me Chamar, Ô Sorte (2013). A adesão ao samba-raiz traz novos parceiros além de Pinheiro, entre eles Delcio Carvalho, Nei Lopes, Aldir Blanc, Ivor Lancellotti, Cláudio Jorge, Luiz Carlos da Vila, Moacyr Luz, Arlindo Cruz, Edil Pacheco, Roque Ferreira, Toninho Nascimento… De quebra, Wilson participa, em 2006, do álbum Um Show de Velha Guarda, com a Velha Guarda Show do Império Serrano, sua escola de samba desde a juventude, cantando em “Dei-Te um Lar”, “Serra dos Meus Sonhos“, “O Poeta e a Natureza” e “Bálsamo da Paz”.

São dessa lavra sambista as regravações presentes em Senzala e Favela, que incluem ainda “Um Novo Amor Chegou” (2000), por Ney Matogrosso; “O Que É Carnaval” (2001), com Rodrigo Amarante; “Traço de Giz” (2004), na voz de Maria Rita; “Vou Sair Daqui” (2006), com Zé Renato; e “Samba para o João” (2013), mais uma parceria Chico Buarque-Wilson das Neves lançada por Wilson e agora interpretada por Chico.

A sambificação do artista sempre versátil não foi completa, porque ele participou de projetos mais híbridos, como a Orquestra Imperial (com Rodrigo Amarante, Kassin, Domenico Lancellotti, Moreno Veloso, Nina Becker, Thalma de Freitas, Rubinho Jacobina, Pedro Sá e outros), com a qual lançou três álbuns entre 2007 e 2013, e a volta d’Os Ipanemas, agora The Ipanemas. Com esses lançou, sempre pela Far Out, The Return of The Ipanemas (2001), Afro Bossa (2003), Samba Is Our Gift – O Samba É Nosso Dom (2006), Call of the Gods (2008) e Que Beleza (2010). Nos quatro primeiros títulos está com Wilson outro remanescente dos Ipanemas originais, o violonista, cavaquinista e guitarrista Neco, que morreria em 2009. Na nova encarnação, os Ipanemas se suavizaram por todos os flancos, nem tão samba “raiz”, nem tão samba-jazz envenenado, menos ainda a semente pop da fase 1968-1976.

Seu Jorge regrava “Que Beleza de Nega” (2010)

Senzala e Favela dá ampla vantagem ao Wilson das Neves sambista, incluindo ainda uma regravação dos Ipanemas, de “Que Beleza de Nega” (2010), na voz de Seu Jorge. Melancólicos sambas inéditos aparecem nas vozes de Áurea Martins (emocionante em “Embarcação” e “Luz do Candeeiro“), Zeca Pagodinho (“Sem Porto“), Moyseis Marques (também parceiro em “Café com Leite”) e Fabiana Cozza (“Duas Vozes“). Em registros artesanais, a voz do próprio Wilson protagoniza mais três inéditas, o samba de quadra para o Império Serrano “Se Você Não Me Levar“, a ode a Chico Buarque “Chefia” (“eu sou um imperiano/ e ele é um imperador”) e a fossa “Transitória” (“transitória/ foi na vida a nossa história/ de um amor que na memória/ traz recordação ruim”), essa última dividida com Roberta Sá.

Cláudio Jorge e Pretinho da Serrinha mostram “Do Que É Capaz o Tambor e o Agogô”

Senzala e Favela incorpora, por fim, um outro aspecto raramente iluminado da arte de Wilson das Neves: a proximidade com o candomblé. Acontece nas marcantes “Do Que É Capaz o Tambor e o Agogô”, nas vozes do co-autor Cláudio Jorge e de Pretinho da Serrinha, e “Rei de Oyó”, a cargo de Moacyr Luz e Gabriel Cavalcante. Esse lado sobressalta o melhor da fase internacional dos Ipanemas, que a Far Out procurava vender ora como um Buena Vista Social Club à brasileira, ora como “The Original Afro-Brazilian Kings”, em temas afrorreligiosos afiados como “Bambuí” (2003), “Canto pra Oxum”, “Afro Imortais” (2010), “Euê Ô” e “Eparrei” (2013). A assinatura do deslumbrante “Canto pra Oxum” revela que não era modismo a paixão pelo candomblé: o co-autor, Astor Silva, morreu em 1968.

Moacyr Luz e Gabriel Cavalcante interpretam “Rei de Oyó”

Tocante e solene, o último álbum que se tornou um tributo póstumo bordado por amigos e admiradores conta a história do Wilson das Neves pós-1976, mas nem tanto a do gênio iconoclasta do princípio até 1970. Infelizmente, a omissão também é parte integrante da história do samba e da música em geral.

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