A cantora Patrícia Ahmaral celebra Torquato Neto em dois volumes - fotos: Kika Antunes/ Divulgação
A cantora Patrícia Ahmaral celebra Torquato Neto em dois volumes - fotos: Kika Antunes/ Divulgação

Desde sua estreia com Ah!, em 1999, a cantora mineira Patrícia Ahmaral sempre andou bem acompanhada, cercada de nomes interessantes, entre parceiros, produtores, instrumentistas e compositores. No campo dos ditos “malditos”, expressão que acabou se consolidando no imaginário do brasileiro para qualificar artistas da música que não se enquadram nos ditames e caixinhas da indústria fonográfica, já estava lá, por exemplo, Sérgio Sampaio (1947-1994). A produção era assinada por Zeca Baleiro.

Um Poeta Desfolha a Bandeira. Capa. Reprodução
A Coisa Mais Linda Que Existe. Capa. Reprodução

Ano passado, por ocasião dos 50 anos do suicídio do piauiense Torquato Neto (1944-1972), Patrícia Ahmaral lançou “Um Poeta Desfolha a Bandeira”. E em agosto passado “A Coisa Mais Linda Que Existe”, os dois volumes de “Patrícia Ahmaral Canta Torquato Neto”, que somam 19 composições do tropicalista, letrista, poeta, jornalista e agitador cultural.

Há algum tempo, Patrícia Ahmaral conversou por telefone, com exclusividade, com FAROFAFÁ. A cantora revela bastidores da produção, a ideia de dividir as canções tematicamente em dois volumes, as dificuldades enfrentadas por artistas independentes para desafinar o coro dos contentes, o luxo das participações especiais, o reencontro com Zeca Baleiro e seus próximos passos.

À guisa também de homenagear Torquato Neto, que hoje (10) completa 51 anos de falecido, finalmente publicamos a conversa.

ENTREVISTA: PATRICIA AHMARAL

ZEMA RIBEIRO: Ano passado, quando você iniciou essa homenagem a Torquato Neto, estava completando 50 anos do suicídio do poeta, jornalista, letrista, agitador, enfim. Você desde seu primeiro álbum já demonstrava afeição pelos ditos malditos, eu não gosto dessa expressão, mas acabou se cristalizando no imaginário do brasileiro. Então você já gravou Sérgio Sampaio no disco de estreia e ao longo da carreira, depois fez dueto com Jards Macalé, depois gravou o próprio Torquato Neto. Eu quero te ouvir sobre a relação com a obra desses artistas, entre outros de tua predileção. E aproveitar o gancho para perguntar o porquê da escolha por Torquato para esta homenagem, porque eu imagino que poderiam ser outros também, não é?
PATRÍCIA AHMARAL: Obrigada por essa pergunta porque ela me ajuda a compreender um pouco do que eu digo que eu acabei fazendo. Nesse lugar do cantor, eu acho que tem uma apreciação natural para mim, desse lugar de liberdade de invenção que compositores e compositoras trazem, é uma necessidade de estar nesse lugar, que eu acho que eu sempre trouxe como artista. Então esses compositores, eles me pegam muito por aí, seja na atitude, seja na poesia, sempre nesse território de invenção. E eu não gosto de estar num lugar de presunção em relação a isso, é uma coisa realmente muito natural para mim, de muito prazer, eu gosto de falar dentro dessa perspectiva, sabe?, então sempre foi muito natural para mim.

ZR: Você dividiu a homenagem a Torquato em dois volumes, um mais político, mais tropicalista, e esse segundo mais amorosa. Como é que surgiu essa ideia dessa divisão e como é que foi o processo de seleção de repertório?
PA: Eu entrei em contato com a obra musical do Torquato como intérprete, cantando essa obra num show que eu fiz em 1998, a convite do poeta Ricardo Aleixo, que hoje é um poetas mais importantes da cena contemporânea brasileira, e do poeta e pesquisador musical Marcelo Dolabela (1957-2020), que por algum motivo entenderam que eu seria uma pessoa, uma cantora interessante cantando um repertório do Torquato dentro da primeira Bienal Internacional de Poesia que aconteceu naquele ano em BH. Então, naquele momento, eu topei o convite, junto com os músicos que construíam comigo a minha carreira na época, Celso Pennini, Thiago Corrêa, Rogério Delayon e Luís Patrício, dando crédito a eles, que toparam a empreitada junto comigo, e naquele momento em que eu me deparei com aquele repertório, eu realmente me identifiquei muito com aquelas palavras e são parcerias com nome muito incríveis da cena brasileira, são canções muito fortes e aquilo realmente me deixou muito feliz. Eu realmente gostei muito de cantar aquele repertório. Então, a escolha pelo Torquato se mistura a essa pergunta que você trouxe antes, mas é uma escolha mais específica porque eu tive mesmo esse encontro com o repertório dele de uma maneira muito ampla, profunda, e isso realmente me pegou. E desde lá eu repeti esse show algumas poucas vezes e a ideia do disco, do álbum, ela foi amadurecendo aos poucos. Eu entrei em vários editais ao longo desses anos, não fui contemplada, mas acho que tudo acontece na hora certa, e finalmente quando veio a pandemia, quando a gente achava que não ia produzir nada, com a Lei Aldir Blanc eu pude começar então a gravar o projeto. Eu gravei grande parte com a Aldir Blanc e depois uma campanha de financiamento coletivo e finalizei realmente na raça [risos], com o que eu podia entregar. Então é essa a história, nesse desejo de estar nesse lugar artístico, vinculada a esse território da invenção que os compositores trazem.

ZR: E a divisão dos dois volumes e o processo de seleção de repertório?
PA: Essa divisão, aparentemente muitas pessoas acham que é porque é tanta canção, que precisou dividir. Não foi por isso. Eu tinha produzido uma faixa, que era “Zabelê”, foi antes da Aldir Blanc, porque eu já tinha decidido que eu ia fazer esse disco de alguma forma. A gente já estava no período pandêmico e foi disponibilizado na internet o documentário “Todas As Horas do Fim”, do Marcus Fernando e do Eduardo Ades. Eu não tinha conseguido assistir esse documentário no cinema e tinha tentado ver já em streaming e não conseguia. Aí nesse período pandêmico, quando eu já estava focada em produzir o disco, eu consegui assistir. Esse documentário traz uma abordagem um pouco diferente em relação ao que a gente vê sobre o Torquato, uma abordagem muito poética, muito delicada, e eu terminei o filme muito comovida. E na hora que eu terminei me veio o insight que eu queria abraçar o Torquato de alguma forma [risos], sabe? Isso pode parecer um pouco piegas, mas foi o que eu senti. Porque eu sabia de tudo aquilo que estava no documentário, muita coisa escrita, muitas biografias, outros documentários, mas aquele filme, com aquela abordagem, me trouxe um personagem grandioso, intrigante, mas não cabendo em si mesmo. E eu quis então remeter o Torquato ao amor que ele mesmo cunhou, foi o que me veio. Eu falei: nossa, eu quero fazer um recorte com as canções de amor do Torquato. Era uma forma de abraçar aquela figura. Ao mesmo tempo, como eu estava em contato com esse repertório há muitos anos, eu já tinha um desenho, de certa forma, daquele conjunto de canções lírico-amorosas, canções em que ele fala do amor romântico, eu já tinha esse conjunto na cabeça, eu sabia que isso existia, e que não era o foco que geralmente se coloca sobre ele, embora as canções de amor do Torquato sejam completamente atravessadas pela urgência confessional, pela necessidade de confessar o momento presente, ao mesmo tempo apontar para o futuro, sempre uma coisa muito ligada à realidade, enfim, com aqueles versos super arrojados, um jeito muito singular de falar de amor. Então essa divisão tem duas motivações: uma que é afetiva e uma que é artística, porque é um conjunto belíssimo de canções de amor e muito singular, e feito com uma pluralidade, uma diversidade de parceiros muito grandes, é um universo muito colorido de canções, porque cada parceiro traz uma construção musical diferente, ele tem parcerias com Paulo Diniz (1940-2022), com Edu Lobo, que são coisas muito diferentes. E isso também é algo que me dá muito prazer, eu acho que na minha carreira eu cantei coisas muito díspares, mas que são de certa forma amalgamadas pela leitura, pela interpretação, então essa divisão nasce desse lugar.

ZR: Entre um volume e outro, quase um ano de distância. A que se deveu isso?
PA: A princípio não era a ideia. A ideia era lançar um volume em novembro do ano em que foi exatamente a efeméride dos 50 anos do Torquato e lançar o segundo volume em janeiro de 2023. Mas eu fui pega de surpresa, porque há muito tempo eu estava sem produzir, foram quase 10 anos sem cantar e sem gravar. Quando eu retornei em 2018, que eu voltei a cantar, e a cena era outra, eu fui meio pega de surpresa com a enorme demanda que existe nesse modo de produzir e lançar música hoje, nessa cena atual. Então eu realmente não tive fôlego, eu precisei respirar e me concentrar para poder finalizar o disco dois, ele ainda não estava finalizado, faltava uma canção para ser produzida, que é “Pra Dizer Adeus”, e finalizar algumas coisas, mixagem, você precisa realmente tomar fôlego, se deve a isso mesmo. Como é um trabalho totalmente independente, embora eu tenha contado com imensas colaborações, mas a coordenação foi realmente toda minha, espero que esse quadro se modifique em breve [risos], porque é muita demanda, são muitas decisões para serem tomadas para poder colocar a coisa rodando. Mas eu acho que foi bom no final das contas, deu um tempo maior para as pessoas assimilarem o volume um e até para mim mesmo, para eu entender o que eu tinha feito. E eu lancei esse segundo já com uma perspectiva mais amadurecida.

ZR: Você já até tocou nesse tema de algum modo, mas eu queria aprofundar o seguinte: a gente percebe nas parcerias que você traz na escolha do repertório um amplo arco de relações criativas estabelecidas por Torquato, do pernambucano Paulo Diniz ao maranhense Nonato Buzar (1932-2014), passando por parceiros mais conhecidos, mais consagrados, digamos assim, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo etc. Isso para mim contradiz a aura que geralmente envolve as pessoas que cometem suicídio, supostamente pessoas isoladas, ensimesmadas, talvez antissociais. Como você avalia essa questão, essa pluralidade de parceiros com quem Torquato Neto criou?
PA: Acho que tem várias coisas que podem ser analisadas, humildemente, na minha leitura. Uma coisa que eu fico pensando depois de ler biografias, ver documentários, ler as cartas, as colunas culturais, eu acho que ele era muito generoso. Torquato era uma pessoa muito generosa, não no sentido cristão de ser bonzinho, no sentido mesmo de desejar colaborar com a cultura brasileira. Então eu acho que era um gesto consciente da parte dele oferecer letras para pessoas que surgiam ali na época, no meio da composição, que lhe chamavam a atenção, fossem eles conhecidos ou não. Aliás, ele foi o primeiro a falar de várias pessoas que surgiam, como Luiz Melodia (1951-2017), então eu acho que existe essa intencionalidade dele, de realmente provocar essas parcerias para contribuir com esse parceiro, contribuir generosamente com esses parceiros, mas contribuir também para a construção desse campo da cultura brasileira, especialmente da música brasileira, que ele via, ele e sua geração, como um artigo poderoso do país perante o mundo. Acho que existe esse gesto consciente, generoso e plural, de buscar, de provocar essas parcerias com vários nomes. É como se ele dissesse: a gente pode, vamos crescer. Sobre a contradição em relação a essa imagem cristalizada do poeta suicida, a pessoa ensimesmada, é muito curioso, porque nesse gesto, sem querer romantizar o suicídio de Torquato, de outros tantos que na mesma idade dele cometeram suicídio, a gente não pode romantizar, é triste, mas o Torquato tinha um comprometimento absurdo com a vida, uma das maiores marcas dele, quando a gente lê as cartas, as colunas, a história dele, as letras das músicas, há um vínculo muito forte com o presente e com o futuro, e talvez por isso mesmo, por essa urgência, essa necessidade de ver a vida acontecendo, de vivenciar ao mesmo tempo as contradições tão profundas, nesse nosso tempo histórico, que até hoje nós vivemos, ele não tenha dado conta, estava muito à frente do tempo dele; ainda está, a gente lê e ainda nos impacta, nos provoca. A gente não sabe o que ele passou emocionalmente, internamente, para não dar conta desse tranco, mas eu enxergo Torquato nesse lugar de comprometimento com a vida, por isso a gente talvez não compreenda: por que se suicidou? É contraditório mesmo, mas ele era um cara das contradições, das dialéticas.

ZR: Essa tua homenagem marca também um reencontro com Zeca Baleiro, que produziu teu disco de estreia. Quero te ouvir sobre essa relação de trabalho e amizade e este reencontro.
PA: O Zeca Baleiro realmente é muito marcante na minha carreira. Há muitos anos eu não mantinha contato com Zeca e um pouco antes de eu começar a trabalhar no álbum do Torquato, eu tive um encontro com ele, fomos tomar um café, e contei que ia fazer um show, eu ia repetir o show “Torquatotal”, que eram 20 anos, se não me engano, em 2018 fariam 20 anos daquele show “Torquatotal”, lá em 1998, e eu ia repetir esse show num gesto de retomada da minha carreira. Foi o primeiro show que eu fiz de retomada, escolhi fazer esse show do Torquato Neto. Eu contei a ele e perguntei, já naquele café: Zeca, se eu for fazer um disco, se eu conseguir fazer esse álbum você me ajuda de alguma forma? E aí naquela época ele comentou que tinha feito a “Jardim da Noite (Esses Dias)”, ele falou: “olha, eu fiz uma canção sobre um poema do Torquato, se você quiser cantar”, e ele até comentou: “quem sabe você faz um disco de inéditas do Torquato”. E eu agradeci a ideia, mas pensei que eu queria de fato gravar essas canções que já existiam, além das inéditas que surgissem, claro, porque é uma obra que está em construção ainda, mas eu queria muito reunir esse repertório que nunca tinha sido gravado nessa forma de songbook. O que havia eram coletâneas com as gravações originais, de diversas épocas, com diversos intérpretes. Esse foi o meu reencontro com o Zeca. A partir dali a gente já ficou com esse combinado. Quando eu decidi que eu ia começar de alguma forma, mesmo que eu gravasse tudo bem devagarinho, eu perguntei de novo se ele podia me ajudar e a gente estabeleceu uma relação informal de direção artística dele. E essa relação acabou se formalizando, segundo ele foram tantas semanas que eu acabei formalizando essa direção artística [risos]. E por que eu o procurei? Embora eu mantivesse uma interlocução com o Ricardo Aleixo, que eu já citei, que foi a pessoa que me colocou em contato com a obra de Torquato pela primeira vez, eu achei que era muito importante eu ter uma interlocução com alguém da música, que tivesse a dimensão da história do Torquato Neto e que pudesse me ajudar a fazer a conexão na cena de hoje, do Torquato musical hoje, como seria isso? E o Zeca é uma pessoa que tem muita ligação com a poesia, inclusive nas letras dele tem muita coisa semelhante ao gesto de Torquato, de citação de outras obras, muita coisa de colagem. Então era a pessoa perfeita para me ajudar, com aquele arrojo criativo, eu sabia que ele ia me ajudar a trazer provocações para a obra do Torquato, me ajudar a trazer a borda pro repertório, que era uma coisa realmente muito difícil de fazer sozinha. E o Zeca eu conheci nos anos 1990, através da Rossana Decelso, uma amiga em comum, cantora, e que veio depois a ser empresária do Zeca por muitos anos. A Rossana teve um papel muito importante na minha vida, no início da carreira, me apresentando estes artistas que surgiam ali na cena, como Zeca Baleiro, Chico César, me trouxe também o lado menos conhecido de Sérgio Sampaio, Edvaldo Santana, ela me ajudou muito a abrir esse caminho que está lá na primeira pergunta, o link com essa cena desses compositores. Ela me apresentou, o Zeca ainda não tinha disco gravado, e ela me apresentava canções inéditas dele, eu cantava no meu show, e ela mostrou pra ele também uma fita demo, que eu gravei, a gente falava fita demo na época, e ele gostou do meu trabalho, e por isso foi possível que ele produzisse o meu primeiro disco em 1999. Essa retomada é uma história de vida também para minha retomada dessa colaboração com o Zeca, é um artista que eu admiro demais, muito farol para minha geração, ele, Chico César, dentro dessa herança tropicalista.

ZR: Além de Zeca, vamos falar um pouco do time que está contigo entre músicos, convidados, produção, enfim, todo mundo que colocou a digital para que esse tributo a Torquato Neto se tornasse realidade.
PA: É muita gente. Torquato Neto não poderia se fazer só, porque ele realmente era uma pessoa gregária e plural, como a gente já falou. Conexões com muitas pessoas diferentes dentro da música mas também com várias expressões da arte. Então era natural que esse trabalho acontecesse com muitas e diversificadas colaborações. A direção musical, acho que é importante destacar, o Zeca não fez a direção musical, fez a direção artística, mas ele foi um grande regente, na verdade, para apontar caminhos musicais, trazer algumas bordas para arranjos que chegavam da produção, mas a produção eu devo a três grandes artistas: Rogério Delayon, um multi-instrumentista, um grande produtor musical de Belo Horizonte, que estava comigo no show de 1998; o Walter Costa, que é um engenheiro de áudio que tem alma de artista e produtor, que conhecia meu trabalho desde 1999 e mixou o meu segundo disco, Vitrola Alquimista, de 2004. Quando a gente estava pensando em quem poderia produzir, já na pandemia, o Rogério Delayon era um nome certo, mas a gente queria trazer mais de um produtor, primeiro para não pesar sobre uma pessoa só, e tudo muito remotamente, e segundo para trazer esse colorido também; então chegamos ao nome do Walter, que já estava tão acostumado a trabalhar remotamente, e o Walter trouxe a Marion Lemonnier, que é uma produtora da França, mas que viveu muitos anos no Brasil. Então eles dois trabalharam em dupla e o Delayon trabalhou isoladamente em algumas faisxas. Então a produção musical conta com esse trio e as faixas foram chamando as participações. A participação da Banda de Pau e Corda nasceu de um insight que eu tive, porque eu não ia gravar “Louvação”, a princípio ela não estava no repertório, porque ela é de uma estética muito diferente, eu achei que seria incapaz de cantar essa canção e acrescentar alguma coisa a ela. Eu estava ouvindo direto o álbum que a Banda de Pau e Corda tinha lançado, Missão do Cantador, e ouvindo o disco, pensei, quem sabe a Banda de Pau e Corda assume o arranjo de “Louvação” e eu posso colocar essa canção no disco, é uma canção muito importante. Foi feito o convite, eles assumiram o arranjo, fizeram um belo coco de Arco Verde, foi incrível, é uma honra ter a participação da Banda de Pau e Corda, acho uma participação muito simbólica. Jards Macalé também foi algo bem natural, eu queria muito gravar “Let’s Play That”, que eu acho que é uma canção muito simbólica tanto no repertório do Macalé quanto na obra do Torquato Neto, por conta do texto, onde se propõe desafinar o coro dos contentes, é uma certa paródia que o Torquato faz ao “Poema de Sete Faces” do [Carlos] Drummond [de Andrade (1902-1987)], que é um poeta que ele admirava demais, e naturalmente veio o desejo que o Macalé participasse dessa faixa. Eu só não contava com o fato de ele reler o próprio arranjo, de 1972, o arranjo original, a gravação do Macalé, do álbum de estreia dele, ele fez um novo arranjo no violão, para adequar a tonalidade da música à minha voz e foi um presente inestimável. Ele gravou o violão e fizemos um dueto de voz. Me ajuda a lembrar aí [risos], é muita gente. O grupo Moda de Rock, que é uma dupla de viola caipira que tocam rock’n roll, as violas do Ricardo Vignini e Zé Helder, foi uma ideia do Zeca. Eu queria trazer pra “Marginália II”, uma interpretação mais acústica, por conta de ter visto o Gil cantar dessa maneira mais acústica, naquele álbum “Dois Amigos, Um Século de Música” [com Caetano Veloso], e eu achei muito bonito, e eu quis trazer uma interpretação mais acústica, e o Zeca trouxe a ideia de fazer com essa dupla de viola, e eu achei muito simbólico trazer um instrumento do Brasil profundo, onde nessa canção, de maneira meio alegórica, o Torquato fala das contradições do país. Chico César participa com uma canção, parceria dele sobre os versos do Torquato, “Quero Viver”. Essa música eu já havia cantado em show, queria gravá-la, convidei o Chico para participar. Chico fez uma participação incrível, me honrou muito estando junto ali. “Mamãe, Coragem” eu já havia gravado no meu terceiro disco [Superpoder], um arranjo bem rock’n roll dessa canção, mas eu não podia deixá-la de fora desse tributo. Então ficamos pensando numa maneira de trazer algo novo ainda, diferente de algo que eu já tinha feito, e novamente me veio o insight de convidar o Maurício Pereira, que é um compositor que eu admiro demais, e que eu achei que se ele trouxesse aquele canto tão peculiar que ele tem, aquela leitura tão peculiar da vida, como compositor, como intérprete, para “Mamãe, Coragem”, eu achei que a gente ia conseguir provocar um pouco a “Mamãe, Coragem” de uma forma diferente, e acho que foi o que aconteceu. O Maurício sugeriu de fazermos a música com o Tonho Penhasco, apenas, na guitarra, e depois o Rogério Delayon trouxe alguns elementos e complementou o arranjo que nasceu do Penhasco. E eu acho interessante porque são universos muito diferentes, Maurício Pereira, Chico César, Banda de Pau e Corda, acho que isso aí acabou provocando a obra musical que a gente selecionou e talvez Torquato gostasse disso. No volume dois tem menos participações, mas também são muito simbólicas, eu acho, e também trazem as suas camadas de diversidade. Ná Ozzetti em “Que Película”, que é uma parceria com Nonato Buzar, um produtor musical contemporâneo de Torquato, fazia trilhas para novela, inclusive, maranhense, e quando o arranjo de “Que Película” ficou pronto eu logo imaginei convidar a Ná Ozzetti, que é uma cantora muito referência para mim, é uma cantora que eu ouço quase diariamente, e realmente ela fez algo muito bonito na faixa, eu fiquei muito honrada de ter um dueto com a Ná. O Zeca Baleiro assumiu a produção musical de “Go Back”, que é uma faixa de difícil releitura, porque é uma canção originalmente muito forte, ele convidou o Érico Theobaldo para coproduzir e naturalmente veio esse desejo de convidar o Zeca para cantar e ele arrasou, tanto no arranjo quanto na interpretação, e eu fiquei muito feliz com esse dueto, muito feliz e honrada com esse dueto também. E o Paulinho Moska, que eu conheci muitos anos atrás, através de um projeto em Minas Gerais, que focava no show de um artista local convidando um artista de nome nacional e o Moska participou de um show que eu fiz muitos anos atrás nesse projeto, junto com a Titane, que é uma outra cantora referência para mim, de Minas, nós tivemos um carinho mútuo, embora a gente não conviva, e quando o arranjo de “Jardim da Noite” ficou pronto eu também ouvi assim o canto entregue e emocional do Moska ali na canção, arrisquei fazer o convite e ele generosamente aceitou, então eu estou cheia de duetos com meus ídolos. Muito agradecida por Torquato me proporcionar esses encontros.

ZR: E como está a agenda de divulgação desse trabalho? Shows?
PA: Eu estou nesse momento nesse trabalho de enviar material do álbum para equipamentos culturais como Sescs, inscrevendo a elaboração do show e a apresentação do show em editais culturais, editais públicos, em todos os editais que estão aparecendo aí, para conseguir levar o disco pro teatro, transportar o disco para o palco. Eu quero fazer isso com muito carinho e estou aguardando essa oportunidade, eu preciso me estruturar, ter uma estrutura financeira para poder elaborar a criação do show, vai envolver bastante coisa. Quero fazer com muito carinho. Vou pedir às pessoas que têm perguntado para ter um pouquinho de paciência. Daqui a pouquinho esse disco chega no palco e a gente começa a rodar com ele. Fazer um trabalho desses sem patrocínio, sem incentivo é um pouco complicado, é um risco. A arte depende desses apoios.

ZR: Eu tenho muito orgulho de ter todos os cds teus que saíram, que tiveram edição física em casa. Aí eu te pergunto se essa homenagem dupla a Torquato Neto vai ter edição física ou vai ficar apenas nas plataformas?
PA: Precisa ter uma edição física, para além do meu orgulho em ter feito essa homenagem, é o primeiro songbook do Torquato, no sentido de gravação da obra de um autor por uma intérprete, eu me orgulho disso, acho que realmente era um projeto quase que de vida, foram 25 anos pensando nisso, amadurecendo, e feito com muita verdade, muita sinceridade, muita paixão por essa figura e por essa obra, que continua em construção. Mas eu acho que é necessário que tenha uma materialidade para esse trabalho, um cd físico, pelo que representa mesmo, é a obra musical, não total, mas uma grande parte da obra musical de Torquato Neto, que eu acho que é uma das figuras mais emblemáticas da nossa cultura e um letrista muito seminal da canção moderna brasileira. Um cd físico é importante para marcar esse recorte dentro da história da canção brasileira, no que tange o papel do Torquato Neto. Assim como o show eu também estou ainda buscando selos que possam se interessar e fazer essa prensagem do cd físico e ao mesmo tempo nos editais em que estou me inscrevendo eu estou prevendo a prensagem do cd físico e quem sabe um vinil. Obrigado por ter os meus discos e por valorizar isso. O disco físico traz também essa possibilidade de ler as letras, a ficha técnica, de apreciar a obra do designer, da fotografia, a gente fez um encarte digital para esses álbuns, por enquanto, um encarte muito incrível do Chico Amaral, que por acaso é meu irmão, com fotos sensacionais da Kika Antunes, que é uma fotógrafa de Belo Horizonte, que sempre me fotografou desde o início da carreira e ela fez um trabalho muito especial nesse do Torquato.

ZR: Eu gosto muito desse exercício de ouvir música acompanhando a letra no encarte, conhecendo a ficha técnica, enfim, apreciando mesmo o objeto, e acho que nada substitui o pegar, o tocar. O digital resolve em parte a coisa da informação, já que as plataformas não colocam quem toca o quê, por exemplo.
PA: O tato com as coisas, a gente foi perdendo, e o ritual. Eu ouvi muito poucos discos ultimamente do início ao fim. Porque o tempo está nos oprimindo, ele está nos tirando desse espaço, é tanta coisa, é sobre-humano, esse modo de produção e consumo digitais, a gente não tem esse tempo, tudo ficou muito fragmentado. Então poucos discos eu ouvi do início ao fim e eu fico bem chateada com isso, eu fico tentando recuperar esse ritual. O físico, o tato nos leva a esse ritual.

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Ouça “Um Poeta Desfolha a Bandeira” e “A Coisa Mais Linda Que Existe”, os dois volumes de “Patrícia Ahmaral Canta Torquato Neto”:

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